Porta 9A


Enquanto Arménio subia era assaltado pelos pensamentos mais vulcânicos que jamais tinha experimentado. Ainda estava a meio das escadas quando ouve a voz de Áurea, vinda dum patamar mais acima, pedindo-lhe para ir andando para a loja que ela já lá iria ter. Que saudades ele tinha daquela voz que já lhe revolvera todas as glândulas num passado não muito distante. Desceu de forma automática - sempre lhe tinha obedecido, como que movido por uma força inexplicável - sem sequer ter pensado no que significava a tal loja na qual ele nunca tinha reparado, nem sequer sabido da existência. Mas lá estava, era uma galeria de arte novinha em folha, aberta certamente havia poucos dias e onde se podiam ver, entre outros quadros, algumas das suas aguarelas.

Mal sabia Arménio que nunca mais subiria ao escritório de Áurea. Os seus clientes tradicionais tinham-lhe feito ver que ela não poderia prestar tanta atenção ao portfólio de Arménio e que isso a estaria a dispersar, desperdiçando eficiência e fiabilidade. Estava ele com o seu olhar vago e opaco quando ela entrou na loja. Os seus olhos expressavam uma tristeza ainda sem lágrima e uma revolta revestida de expectativa. Não perdeu tempo a perguntar: Porque andou a expor noutras galerias? Ele ficou espantado, não esperava a pergunta, ou melhor, a pergunta parecia-lhe despropositada, fora ela que o tinha abandonado por razões que eram apenas dela. E ele não tinha feito exposição alguma, tratavam-se de informações deturpadas a que Áurea tinha dado ouvidos. Criou-se um momento de violência silenciosa, como que tudo o que fosse dito só servisse para se agredirem, e os deuses promoveram a paz do consenso possivel. De todo o modo se houvesse algo a perdoar imediatamente ficou perdoado. Corroído pela memória, sufocado pelas frustrações reprimidas, Arménio naquele momento via a sua revolta ser totalmente diluída pela presença de Áurea. Naquele período de ausência algo se teria perdido e algo se teria ganho, mas naquele momento ele não tinha capacidade para grande saltos analíticos. Deveria ter sido claro para ele que Áurea o tinha marcado com o ferro do abandono e lhe quisera transmitir a real posição dele na vida dela: era apenas um cliente diferente, diversificava-lhe o risco, mas não estava no seu cuore business. Mas ele não percebeu, os seus sentimentos despidos de calculismo impediam-no de ver tão distintamente.

Todos os dias ia passando pela rua, como habitualmente, sempre à espera que ela o convidasse outra vez a entrar na loja, mas o mais que dela foi tendo notícias era pelos convites para inaugurações de exposições alheias. A suas aguarelas tinham passado à história , mesmo que ela se esforçasse por lhe fazer chegar aos ouvidos que não havia ilustrações como as dele. A sua ingenuidade foi-lhe alimentado uma ilusão crescente até que um dia ela o convidou para se encontrarem, em terreno neutro. Ele foi.

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