Porta 9


Arménio Jasmim subia aquela rua íngreme como o começara a fazer regularmente desde o início do ano. Por regra não assumida escolhia o lado da numeração par, mas naquele dia frio e seco preferiu o sol que se apresentava acolhedor do outro lado. As portas não lhe eram tão familiares, as caras dentro das lojas também não, uma ou outra talvez, do café ou da papelaria onde entrara três ou quatro vezes, se tanto. Ia observando com alguma atenção mas sem aquela curiosidade que produz verdadeiras descobertas. Foi assim com um ar meio displicente que deu de caras com uma tabuleta no número 9 que anunciava 'Drª Áurea Martins - Solicitadora'. Poderia ser mais um escritório entre muitos, mas um impulso sem explicação perceptível fê-lo entrar. Uma solicitadora poderia ser aquilo que ele precisava ou mesmo ansiava inconscientemente. Mas uma dúvida tinha-se-lhe instalado logo nos primeiros lances de escada: seria alguém que faria o que ele solicitasse, ou alguém que solicitasse por ele, ou que o representasse em actos oficiais, ou apenas uma pessoa formalmente solícita que se disponibilizava a ajudar os clientes em geral naquilo que eles precisassem. Iria descobrir. Mas convém dizer que de facto Arménio nada procurava em especial, parecia apenas movido por uma simples mas determinada intuição de que ali estava algo - alguém, mais propriamente - que lhe iria mudar o rumo da vida.

Quando entrou, Áurea estava num corredor amplo, em forma de meia-lua, uma espécie de recepção, e tinha um vestido preto que lhe dava um ar simultaneamente sensual e competente, aquilo que se poderia considerar uma combinação ideal, e que ele nem suspeitava, mas rapidamente mais que suspeitou, lhe iria dar a volta à cabeça, sendo a cabeça apenas um tudo por representação. Teve de arranjar um motivo para a visita e perguntou-lhe se estava disposta a representá-lo junto de uma galeria célebre onde ele queria expor um conjunto de aguarelas que  ilustravam de forma inovadora sem inovar, foi essa a expressão que usou, algumas cenas de 'Os Maias' de Eça de Queirós. Apesar de ser a primeira vez que lhe aparecia alguém com um pedido daqueles, claramente fora da sua actividade normal junto de entidades oficiais, não estava na sua marca genética nem comercial desdenhar qualquer cliente que fosse e aquele até lhe parecia um trabalho curioso e original, à noite sonhou-o até como raro e luminoso, mesmo que apresentado por um potencial cliente sem especiais atractivos de qualquer espécie ou jeito.

Iniciaram a colaboração e a porta 9 tornou-se um destino comum para Arménio. Com o tempo Áurea começou a gostar do seu cliente e não foi de estranhar que acabassem por criar uma relação de grande intimidade, não tanto física, mas física porque na pele e no olhar começa o corpo, numa enorme cumplicidade, termo que por aqueles tempos se tornava corrente ler nas revistas da especialidade sentimental. Áurea sempre conseguiu manter uma postura fria e distante - devia colocar um iceberg na sua tabuleta, dizia-lhe ele de vez em quando - com Arménio e este não a queria forçar a dar nenhum passo do qual não estivesse seguro da vontade dela, numa mistura de ingénuo, tímido e cerebral, se não lhe quisermos destruir já o carácter antes de acabar o terceiro parágrafo. Se algo a definia a ela era um superioridade assumida, um ascendente emocional próprio de quem gere a dúvida e a insegurança alheia. E assim, ou mesmo assim, de impasse em impasse, foram construindo uma ligação forte, inequívoca e singular, praticamente um erosmilhões para quem observasse de fora; mas ninguém observava de fora. Romântica, como qualquer ligação que desafie as regras da causalidade amorosa, Esforçada, como qualquer relação que não tem um suporte logístico a justificá-la, e Livre, como qualquer relação em que nenhuma parte tem compromissos com a outra que não a lealdade. Com o tempo o enredo estava marcado pela intensidade e pela extraordinária união de afectos, mais aguarela menos aguarela. Também com o tempo vieram as previsíveis primeiras frustrações dele, que não sentia provocar a mínima atracção em Áurea que não aquela que resultasse da curiosidade intelectual ou da mera companhia agradável. Nenhum homem gosta de concorrer na liga dos caniches, chegou a dizer-lhe naqueles momentos de balanço que aparecem sempre no meio duma onda mais atrevida que prenuncia uma tempestade.
Num inevitável-evitável dia deu-se um solavanco que os afastou. Ele continuou a subir a rua mas ela já não tinha tabuleta afixada no nº9, tinha-se mudado para outro escritório, nem muito longe dali, tinha escolhido uma clientela mais certa, achava que Arménio não lhe garantia estabilidade, era errático nas suas aguarelas e nos textos que ilustravam, ora um dia comédias, noutros dramas, tragédia e sátira demasiado juntas. Ele sentiu aquele abandono duma forma cruel, sim cruel não é excessivo, mas se abandonado estava, morto não estava, era um evidência, o que me lixa são as evidências, haveria ele de repetir muitas vezes para si próprio.
Quando ela lhe fez chegar um conjunto de aguarelas ele destruiu-as de imediato, uma saudade não correspondida é um sofrimento sem cruz. O tempo foi passando como um nada sem fundo. Um dia, Arménio descia a rua pelo lado dos números pares e viu luz num dos andares da porta 9. Áurea estava à janela e acenou-lhe, tímida, mas resoluta, aliás, mais resoluta que tímida, pois tinha a certeza que ele subiria. Ele subiu.

[continua]

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