Teologia da Hibernação


Com um deus distante e uma fé invernosa escolheu o seu deserto interior para refúgio maldito. Mau conselheiro de si próprio mas desconfiado do conselho de alheio, entregou-se a memórias vagas e recalcamentos persistentes, desatou os nós que trazia no estômago e esperou pela pancada. Veio ao terceiro dia, como uma ressurreição pagã, disfarçada de dor de garganta, pois tudo que vale a pena precisa da dor para ter dignidade. Agarrado pelas entranhas superiores perdeu-se em divagações sobre a culpa e o destino, a sorte e a má sorte, o reconhecimento e a incompreensão. Estava no consolo que toda a ingratidão propicia quando um Espírito Santo sem orelha lhe sussurrou duas verdades de demonstração inacessível para o seu grau de sofisticação no momento. Forçado a crer como alternativa viável, aconchegou-se naquele prazer demoníaco que é todo o desprezo pelo que nos rodeia e soltou a língua em forma de avé-maria sem graça. Recolhido na oração dos simples, deixou o coração divagar pelos pecados que nunca tinha cometido, mas que lhe tinham sido prometidos pela imaginação em estado de flor, e ruminou uma contrição de circunstância abrilhantada por dois toques em solavanco por um peito ainda em posição de pós insuflação arrítmica. Caçado pelo cruel predador que é a solidão imposta, um felino que nem sequer mija por onde passa, deixou-lhe as feridas para lamber, qual retalhista de almas para chulos montados em estofos de pele. Com o arrependimento a aproximar-se em pezinhos de lã, deu duas voltas à goela embebida em conhaque e suspirou como só um grande falso incompreendido sabe fazer. Coladas as bem-aventuranças com cuspo, citado o filho pródigo como quem limpa o rabo a meninos, e enfiadas duas bojardas evangélicas ao ritmo de quem cose uma gengiva, ei-lo com o espelho da alma bem espetado nos cornos, verdadeiros talentos à espera de parábola. Nem pestanejou. Abriu os olhos com a rapidez e a precisão duma vítima furtiva e pôs-se na mira do anjo da guarda. O grande mar vermelho abriu-se outra vez para a sua passagem e quando chegou ao outro lado abraçou um novo verão de promissórias várias, montado numa cavalgadura de tentações de fazer chorar qualquer menino jesus devidamente recenseado. Cada Estio deve ter direito à sua caverna invernosa.

2 comentários:

maria disse...

uma delícia! :)

beijinhos

aj disse...

É que ficou mesmo um brinquinho! eheh

beijinhos