Deus é quem menos cumpre as nossas expectativas. Tal como
quem amamos acaba por ser quem mais nos falha, Deus está frequentemente a jeito
para que lhe apontemos o dedo - mais ou menos piedoso - da desilusão. Em geral
exigimos-lhe que seja mestre no campeonato das grandes contradições: esteja
perto sem nos chatear, seja previsível mas surpreendendo-nos, esteja longe mas
fazendo companhia, nos dê o possível na medida do impossível e nos dê o
impossível na medida do possível, em suma, também já estará habituado a que ter
de ser só nosso mesmo sendo de todos. Quem já se sentiu abandonado por quem ama (e quem nunca
sentiu isso não sabe o que perde) entenderá facilmente que não há maior
desilusão que uma ausência incompreensível. A religião permite apenas uma
ligação imperfeita, o Deus que nos foi concedido não passa da clássica sombra
projectada no fundo da Caverna, e a sua graça pouco mais efeito dá que uma
terminação de lotaria. Sendo que a espiritualidade é uma técnica de gestão da desilusão,
tal como uma palavra não passa de um beijo que não foi possível, (nenhuma
declaração por mais solene que se apresente substitui um carinho por mais fugaz
que seja), Deus só é compatível com uma profunda tristeza de nunca sabermos por
que age Ele assim, por que faz Ele assado ou cozido. As chamadas virtudes
teologais são de certa maneira panaceias de quem sabe que não terá talentos
para viver mano-a-mano com um Deus que está sempre Além mas que é sentido como
estando sempre Aquém. Como alguém que está sempre com medo que o seu coração
falhe por não aguentar um amor que não é correspondido, a maior força de um
crente é saber desiludir-se com uma resistência de maratonista, que sonha ter
depois de cada curva um posto de abastecimento , ou um aceno com sorriso. É
mesmo aconselhável que Deus seja pai e seja Perfeito, pois para nos
aproximarmos de Deus temos de saber viver desiludidos com Ele.
Teologia da Abstracção
Por regra, no excêntrico universo da análise moral,
consideramo-nos pecadores em abstracto mas boas pessoas em concreto. Com
facilidade assumimos uma contrição quase estética sobre uma tendência genérica
para a imperfeição (não confundir com a maldade) mas confrontados com um
contacto objectivo com ela somos facilmente levados a descartá-la, ou a
camuflá-la sob capas do psicoloden, quando não a veementemente negá-la. A
experiência da culpa definida e circunscrita é muito mais penosa que a falha
assumida como uma tendência imanente de malandragem, ora literária, ou mesmo
cómica. Por outro lado todos temos pecados de currículo, pecados que nos ficam
bem, como adereços de moda ou relações de conveniência. Ou seja, a imoralidade-como-composição
é uma das boas invenções do espírito humano no intuito de se proteger desse
peso esmagador que é a existência duma lei moral omnipresente. Assim, a batalha
essencial da alma malabarista é conseguir transferir do concreto para o
abstracto a sua ligação à imperfeição, à culpa, ao pecado. A experiência
amorosa costuma ser boa e didáctica companheira neste processo pois nela
geralmente encontramos bons exemplos de grandes amores abstractos que se
transformam sem grande esforço em indiferenças, quando não mesmo negligências ,
objectivas e concretas quando o suposto-amado está ali disponível para ser pau
para toda a colher. O fenómeno da diluição da experiência por força da
capacidade de criação do eu-de-referência permitirá ao homem apresentar-se
perante o Criador com uma limpeza que seria imprevisível face aquilo que hoje
se chama de vidas complicadas. No
entanto, o contacto com o eu-de-experiência também não será totalmente
descabido uma vez por outra, até como molho agridoce duma existência que tudo tem para ser enfadonha, mas a grande aventura
humana é mesmo elevarmo-nos a seres de ficção, avatizáveis, imunes a essa
contaminação de catecismo a que se chama a culpa concreta. Filhos da grande Mãe
Inocência e apenas amamentados por uma Eva de Percalço, estamos talhados para
ser santos, o pecador é um tipo que se distraiu com os detalhes.
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teologias alternativas
Liga da Solidariedade
Resultados da 1ª jornada
Sport Lisboa e Bem-fazer - 1 / Companhia Portuguesa da Caridade - 0
Depois de uma primeira parte muito equilibrada, o S.L.B.
soube aproveitar muito bem uma falha da C.P.C. numa distribuição de fanecas
fritas com arroz de tomate demasiado apurado e depois segurou a vantagem até ao
fim, tendo até desperdiçado uma ocasião soberana de aumentar a vantagem com uma
entrega de leite magro no banco alimentar de Elvas mas que acabou por ser
substituída à ultima hora por duas toneladas de lingueirão de conserva que não
foram aceites por pacheco pereira devido à sua origem religiosa das reservas da
quermesse de páscoa da paróquia de benavente.
Desportivo das Sopas - 2 / Cobertores Sport Club - 2
Foi um jogo bastante bem disputado com incerteza constante
no resultado. Se o C.S.C. com a sua primeira distribuição de edredons com
enchimento de poliester conseguiu adiantar-se no marcador, rapidamente o D.dS.
não enjeitou a possibilidade de empatar com uma deliciosa sopa juliana
distribuída em tigelas com a imagem de kate middleton em top less no fundo. No arranque da
segunda parte, quando parecia até que o DdS. se iria impor sem dificuldades com
o seu famoso Creme de Cáritas, o C.S.C surpreende com uma fantástica remessa de
cobertores num padrão igual à gravata de lobo xavier. No entanto, já ao cair do
pano, uma rodada de caldo verde nas avenidas novas repõe justiça no resultado,
já não dando tempo para nenhuma reacção de pacheco pereira que esbracejava
junto ao Saldanha apontando para um crucifixo no pescoço do massagista da D.dS . Ainda saltaram do banco umas trouxas com mantas em imitação da burberis mas pouco mais fizeram que justificar o duche, ou melhor, a centrifugação a baixa temperatura.
Racing do Cesto Cheio - 5 / Lokomotiv de Enlatados - 0
Uma verdadeira demonstração de classe por parte do R.dC.C.
Desde cedo se percebeu que não iriam facilitar e depois duma primeira cabazada
de pêssegos em calda seguida de um fornecimento de shortcake, deixaram o L.dE.
praticamente sem reacção palpável. Ainda esboçaram uma situação de perigo
quando Pacheco Pereira apareceu com uma palete de sardinha com a inscrição
'este óleo vegetal não serve para utilização em unguentos sacramentais' mas foi
sol de pouca dura face ao rolo compressor do R.dC.C. que não desperdiçou
nenhuma oportunidade. Mais perdulários se mostrariam na parte final do
encontro, quando perdoaram a meia dúzia, num falhanço incrível à boca dum lar
de reformados do parlamento em que antónio costa acenava desesperadamente
trajando à sans culottes.
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Dívida Metódica
Subsídios para uma reestruturação
Primeiro pega-se numa dívida e analisa-se o credor; antes de
nos pormos a verificar para que teríamos precisado nós do dinheiro, haverá que
escalpelizar porque teria precisado o credor de nos emprestar.
Em segundo lugar haverá que dividir a dívida em várias
parcelas: nunca o dinheiro serve para apenas uma coisa, a dívida é como a dor
de rins: 1/3 é má postura, 1/3 é deficiente movimento de fluidos e 1/3 é a
presença de cálculos agressivos. Por isso, quando nos pedem que paguemos algo,
comecemos primeiro por alterar apenas a postura. É péssimo fazer reembolsos de
cócoras.
Terceiramente (é o adverbio de modo de estar em terceiro) devemos
considerar que antes de chegarmos ao milhão temos de passar pela dezena, depois
pela centena, de seguida para o milhar e por aí adiante, e apenas se der tempo
analisaremos os seguintes, pois ninguém percebe decentemente o valor de um milhão
se não tiver derretido antes uma boa centena de milhar. Ou seja, antes de pagar
uma centena que seja devemos pagar primeiro uma ou duas dezenas para ver a
reacção. Credor que não saiba valorizar o pouco não é digno de receber o muito.
Por quarto e último, como fez o nosso descartes, a dívida
deve ser revista. Uma dívida com o tempo vai-se alterando e quando chega à sua
maturidade pode perfeitamente já não estar em perfeitas condições e o credor
terá obrigação de nos dar uma nova. Ou seja, a renovação da dívida é uma
obrigação do credor, tal como é o senhorio que tem de garantir que a casa está
em boas condições de uso para o inquilino.
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Porta 9B
Encontraram-se num restaurante que ocupava o espaço ao lado
da galeria. Era um restaurante popular, com uma clientela fixa e onde nem
Arménio nem Áurea, curiosamente, alguma vez tivessem entrado. Não seria o local
mais aconselhado para uma conversa de reatamento, ou balanço, ou até de
reconciliação, mas foi o que ela escolheu, e mais uma vez ele,
inexplicavelmente, se mostrou incapaz de a contrariar. O prato do dia era
cozido, um grupo de padres e seminaristas ria-se numa mesa próxima, como que
querendo demonstrar que sob determinadas condições afinal a carne vale, por
mais fraca que possa ser. Seria a carne algo que os unia ou os separava, pensou
Arménio enquanto observava o excesso de formalismo de Áurea. Ainda ele não se tinha refeito de uma certa estranheza
em relação ao seu comportamento, quando ela o convidou a sair e a darem uma
volta pela rua. Passaram por uma loja de sofás e entraram, ela queria renovar a
decoração do seu escritório e pretendia comprar uns sofás para o seu gabinete -
para alguns clientes especiais se sentirem mais à vontade, estás a ver? Ele
estava a ver tudo. Lembrou-se do dia em que a vira pela primeira vez,
lembrou-se do primeiro dia em que ela lhe embrulhara o primeiro não, lembrou-se
do primeiro beijo que lhe deu a medo, lembrou-se dos repetidos calculismos dela,
lembrou-se das aguarelas que ela lhe devolveu, lembrou-se das certezas que
tinham trocado, lembrou-se daqueles momentos longínquos em que todas as dúvidas
pareciam estar dissipadas. Ela subiu para o escritório e ele continuou a descer a rua, passando para o
lado dos números pares. Poderia ser que ela ainda lhe viesse acenar à janela. Não
veio.
Ela telefonou-lhe passado uma semana, disse-lhe que naquele
dia quisera perceber se estava preparada para o receber outra vez no
escritório, de voltar a trabalhar com o portfólio dele, e tinha ficado contente
por concluir que ainda sentia o mesmo por ele. Achara-o distante, mas queria
saber se ele estaria disposto a pintar uma nova série de aguarelas a ilustrar
uns poemas que ela escolheria. Pintar só para ela - como nos velhos tempos.
Fazê-la rir - como nos velhos tempos. Ele nem sabe bem o que respondeu. No dia seguinte Arménio dirigiu-se ao
restaurante do 9B. O prato do dia era cozido outra vez mas os padres tinham ido
pregar para outra freguesia. Enquanto se encostava no balcão viu passar um sofá
novinho em folha para o escritório de Áurea e pensou que tinha guardado uma
aguarela que calharia bem na parede que recebesse aquele couro em tons de terra
barrenta. E foi nesse preciso segundo que descobriu que não passava de um
parvo. E que merece um parvo?
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contos
Porta 9A
Enquanto Arménio subia era assaltado pelos pensamentos mais
vulcânicos que jamais tinha experimentado. Ainda estava a meio das escadas
quando ouve a voz de Áurea, vinda dum patamar mais acima, pedindo-lhe para ir
andando para a loja que ela já lá iria ter. Que saudades ele tinha daquela voz
que já lhe revolvera todas as glândulas num passado não muito distante. Desceu
de forma automática - sempre lhe tinha obedecido, como que movido por uma força
inexplicável - sem sequer ter pensado no que significava a tal loja na qual ele
nunca tinha reparado, nem sequer sabido da existência. Mas lá estava, era uma
galeria de arte novinha em folha, aberta certamente havia poucos dias e onde se
podiam ver, entre outros quadros, algumas das suas aguarelas.
Mal sabia Arménio que nunca mais subiria ao escritório de
Áurea. Os seus clientes tradicionais tinham-lhe feito ver que ela não poderia
prestar tanta atenção ao portfólio de Arménio e que isso a estaria a dispersar,
desperdiçando eficiência e fiabilidade. Estava ele com o seu olhar vago e opaco
quando ela entrou na loja. Os seus olhos expressavam uma tristeza ainda sem
lágrima e uma revolta revestida de expectativa. Não perdeu tempo a perguntar:
Porque andou a expor noutras galerias? Ele ficou espantado, não esperava a
pergunta, ou melhor, a pergunta parecia-lhe despropositada, fora ela que o
tinha abandonado por razões que eram apenas dela. E ele não tinha feito
exposição alguma, tratavam-se de informações deturpadas a que Áurea tinha dado
ouvidos. Criou-se um momento de violência silenciosa, como que tudo o que fosse
dito só servisse para se agredirem, e os deuses promoveram a paz do consenso
possivel. De todo o modo se houvesse algo a perdoar imediatamente ficou perdoado.
Corroído pela memória, sufocado pelas frustrações reprimidas, Arménio naquele
momento via a sua revolta ser totalmente diluída pela presença de Áurea.
Naquele período de ausência algo se teria perdido e algo se teria ganho, mas
naquele momento ele não tinha capacidade para grande saltos analíticos. Deveria
ter sido claro para ele que Áurea o tinha marcado com o ferro do abandono e lhe
quisera transmitir a real posição dele na vida dela: era apenas um cliente
diferente, diversificava-lhe o risco, mas não estava no seu cuore business. Mas ele não percebeu, os
seus sentimentos despidos de calculismo impediam-no de ver tão distintamente.
Todos os dias ia passando pela rua, como habitualmente, sempre
à espera que ela o convidasse outra vez a entrar na loja, mas o mais que dela
foi tendo notícias era pelos convites para inaugurações de exposições alheias.
A suas aguarelas tinham passado à história , mesmo que ela se esforçasse por
lhe fazer chegar aos ouvidos que não havia ilustrações como as dele. A sua
ingenuidade foi-lhe alimentado uma ilusão crescente até que um dia ela o
convidou para se encontrarem, em terreno neutro. Ele foi.
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Porta 9
Arménio Jasmim subia aquela rua íngreme como o começara a
fazer regularmente desde o início do ano. Por regra não assumida escolhia o lado da
numeração par, mas naquele dia frio e seco preferiu o sol que se apresentava
acolhedor do outro lado. As portas não lhe eram tão familiares, as caras dentro
das lojas também não, uma ou outra talvez, do café ou da papelaria onde entrara
três ou quatro vezes, se tanto. Ia observando com alguma atenção mas sem aquela
curiosidade que produz verdadeiras descobertas. Foi assim com um ar meio
displicente que deu de caras com uma tabuleta no número 9 que anunciava 'Drª
Áurea Martins - Solicitadora'. Poderia ser mais um escritório entre muitos, mas
um impulso sem explicação perceptível fê-lo entrar. Uma solicitadora poderia
ser aquilo que ele precisava ou mesmo ansiava inconscientemente. Mas uma dúvida tinha-se-lhe instalado logo nos
primeiros lances de escada: seria alguém que faria o que ele solicitasse, ou
alguém que solicitasse por ele, ou que o representasse em actos oficiais, ou apenas uma pessoa formalmente solícita que se
disponibilizava a ajudar os clientes em geral naquilo que eles precisassem.
Iria descobrir. Mas convém dizer que de facto Arménio nada procurava em especial,
parecia apenas movido por uma simples mas determinada intuição de que ali estava algo - alguém, mais propriamente -
que lhe iria mudar o rumo da vida.
Quando entrou, Áurea estava num corredor amplo, em forma de meia-lua, uma espécie
de recepção, e tinha um vestido preto que lhe dava um ar simultaneamente sensual
e competente, aquilo que se poderia considerar uma combinação ideal, e que ele nem
suspeitava, mas rapidamente mais que suspeitou, lhe iria dar a volta à cabeça, sendo a cabeça apenas um tudo por representação. Teve de arranjar um motivo para a
visita e perguntou-lhe se estava disposta a representá-lo junto de uma galeria
célebre onde ele queria expor um conjunto de aguarelas que ilustravam de forma inovadora sem inovar, foi essa a expressão que usou, algumas cenas de
'Os Maias' de Eça de Queirós. Apesar de ser a primeira vez que lhe aparecia
alguém com um pedido daqueles, claramente fora da sua actividade normal junto de entidades oficiais, não estava na sua marca genética nem comercial
desdenhar qualquer cliente que fosse e aquele até lhe parecia um trabalho curioso
e original, à noite sonhou-o até como raro e luminoso, mesmo que apresentado por um potencial cliente sem especiais atractivos de qualquer espécie ou jeito.
Iniciaram a colaboração e a porta 9 tornou-se um destino
comum para Arménio. Com o tempo Áurea começou a gostar do seu cliente e não foi
de estranhar que acabassem por criar uma relação de grande intimidade, não
tanto física, mas física porque na pele e no olhar começa o corpo, numa enorme cumplicidade, termo que por aqueles tempos se tornava corrente ler nas revistas da
especialidade sentimental. Áurea sempre conseguiu manter uma postura fria e
distante - devia colocar um iceberg na sua tabuleta, dizia-lhe ele de vez em quando - com Arménio e este não a queria forçar a dar nenhum passo do qual não
estivesse seguro da vontade dela, numa mistura de ingénuo, tímido e cerebral, se não lhe quisermos destruir já o carácter antes de acabar o terceiro parágrafo.
Se algo a definia a ela era um superioridade assumida, um ascendente emocional próprio de quem gere a dúvida e a insegurança alheia. E assim, ou mesmo assim,
de impasse em impasse, foram construindo uma ligação forte, inequívoca e
singular, praticamente um erosmilhões para quem observasse de fora; mas ninguém observava de fora. Romântica, como qualquer ligação que desafie as regras da causalidade
amorosa, Esforçada, como qualquer relação que não tem um suporte logístico a
justificá-la, e Livre, como qualquer relação em que nenhuma parte tem
compromissos com a outra que não a lealdade. Com o tempo o enredo estava marcado pela intensidade e pela extraordinária união de afectos, mais aguarela
menos aguarela. Também com o tempo vieram as previsíveis primeiras frustrações dele, que não
sentia provocar a mínima atracção em Áurea que não aquela que resultasse da
curiosidade intelectual ou da mera companhia agradável. Nenhum homem gosta de
concorrer na liga dos caniches, chegou a dizer-lhe naqueles momentos de balanço
que aparecem sempre no meio duma onda mais atrevida que prenuncia uma
tempestade.
Num inevitável-evitável dia deu-se um solavanco que os afastou. Ele continuou a subir a rua mas ela já não tinha tabuleta afixada no nº9, tinha-se mudado para outro escritório, nem muito longe dali, tinha escolhido uma clientela mais certa, achava que Arménio não lhe garantia estabilidade, era errático nas suas aguarelas e nos textos que ilustravam, ora um dia comédias, noutros dramas, tragédia e sátira demasiado juntas. Ele sentiu aquele abandono duma forma cruel, sim cruel não é excessivo, mas se abandonado estava, morto não estava, era um evidência, o que me lixa são as evidências, haveria ele de repetir muitas vezes para si próprio.
Quando ela lhe fez chegar um conjunto de aguarelas ele destruiu-as de imediato, uma saudade não correspondida é um sofrimento sem cruz. O tempo foi passando como um nada sem fundo. Um dia, Arménio descia a rua pelo lado dos números pares e viu luz num dos andares da porta 9. Áurea estava à janela e acenou-lhe, tímida, mas resoluta, aliás, mais resoluta que tímida, pois tinha a certeza que ele subiria. Ele subiu.
[continua]
Num inevitável-evitável dia deu-se um solavanco que os afastou. Ele continuou a subir a rua mas ela já não tinha tabuleta afixada no nº9, tinha-se mudado para outro escritório, nem muito longe dali, tinha escolhido uma clientela mais certa, achava que Arménio não lhe garantia estabilidade, era errático nas suas aguarelas e nos textos que ilustravam, ora um dia comédias, noutros dramas, tragédia e sátira demasiado juntas. Ele sentiu aquele abandono duma forma cruel, sim cruel não é excessivo, mas se abandonado estava, morto não estava, era um evidência, o que me lixa são as evidências, haveria ele de repetir muitas vezes para si próprio.
Quando ela lhe fez chegar um conjunto de aguarelas ele destruiu-as de imediato, uma saudade não correspondida é um sofrimento sem cruz. O tempo foi passando como um nada sem fundo. Um dia, Arménio descia a rua pelo lado dos números pares e viu luz num dos andares da porta 9. Áurea estava à janela e acenou-lhe, tímida, mas resoluta, aliás, mais resoluta que tímida, pois tinha a certeza que ele subiria. Ele subiu.
[continua]
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úlcera no duodécimo
Desde que o homem decidiu que os astros lhe comandariam a
vida que dividimos o tempo em anos e os anos em meses. Daí até duodecimarmos a
existência foi um pulinho mais curto que aquele que leva a gosma da faringe ao
céu da boca. Assim, confrontados com uma marcação de passo que era
imposta pela posição da nossa lua face ao nosso sol, quisemos libertar-nos desse
espartilho astrológico através daquelas delicatessens
cronológicas chamadas décimo terceiro mês e subsídio de férias. Foram épocas em
que o homem se pensou um mago do tempo, um esticador de horas, um novo deus do
calendário. Foram décadas bonitas, em que espatifávamos uma bastilha em cada
seis meses, mesmo sem ser preciso ver a praia debaixo das pedrinhas da calçada.
Mas vamos agora voltar ao mísero ano-de-doze-meses, ficando novamente reféns da
ditadura da traslação e teremos de pôr a imaginação outra vez a trabalhar para driblarmos
o inexorável. Como se não bastasse termos perdido a companhia desses dois
duodécimos suplementares, aos quais inclusivamente já tínhamos o próprio corpinho
habituado, verificamos que os restantes ficam mais vulneráveis à fiscaloscopia e observamos então que nos enfiarão pelo duodécimo adentro, qual fanáticos da biopsia
e do folículo, um tubinho frenético e curioso que não vai descansar enquanto o
ano não ficar com onze meses.
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ano karenine
(...) já tinha notado há muito que quando as pessoas se
sentem incomodadas pela sua excessiva docilidade e submissão, muito depressa se
tornam insuportáveis por uma excessiva exigência e susceptibilidade
Início do cap. XXXII
Teologia da Hibernação
Com um deus distante e uma fé invernosa escolheu o seu
deserto interior para refúgio maldito. Mau conselheiro de si próprio mas
desconfiado do conselho de alheio, entregou-se a memórias vagas e recalcamentos
persistentes, desatou os nós que trazia no estômago e esperou pela pancada.
Veio ao terceiro dia, como uma ressurreição pagã, disfarçada de dor de
garganta, pois tudo que vale a pena precisa da dor para ter dignidade. Agarrado
pelas entranhas superiores perdeu-se em divagações sobre a culpa e o destino, a
sorte e a má sorte, o reconhecimento e a incompreensão. Estava no consolo que
toda a ingratidão propicia quando um Espírito Santo sem orelha lhe sussurrou
duas verdades de demonstração inacessível para o seu grau de sofisticação no
momento. Forçado a crer como alternativa viável, aconchegou-se naquele prazer
demoníaco que é todo o desprezo pelo que nos rodeia e soltou a língua em forma
de avé-maria sem graça. Recolhido na oração dos simples, deixou o coração
divagar pelos pecados que nunca tinha cometido, mas que lhe tinham sido
prometidos pela imaginação em estado de flor, e ruminou uma contrição de
circunstância abrilhantada por dois toques em solavanco por um peito ainda em
posição de pós insuflação arrítmica. Caçado pelo cruel predador que é a solidão
imposta, um felino que nem sequer mija por onde passa, deixou-lhe as feridas
para lamber, qual retalhista de almas para chulos montados em estofos de pele. Com o
arrependimento a aproximar-se em pezinhos de lã, deu duas voltas à goela
embebida em conhaque e suspirou como só um grande falso incompreendido sabe
fazer. Coladas as bem-aventuranças com cuspo, citado o filho pródigo como quem
limpa o rabo a meninos, e enfiadas duas bojardas evangélicas ao ritmo de quem
cose uma gengiva, ei-lo com o espelho da alma bem espetado nos cornos, verdadeiros talentos à espera de parábola. Nem pestanejou. Abriu os olhos com
a rapidez e a precisão duma vítima furtiva e pôs-se na mira do anjo da guarda.
O grande mar vermelho abriu-se outra vez para a sua passagem e quando chegou ao
outro lado abraçou um novo verão de promissórias várias, montado numa cavalgadura
de tentações de fazer chorar qualquer menino jesus devidamente recenseado. Cada Estio deve ter direito à sua caverna invernosa.
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teologias alternativas
Ali Bábá e os quatro-mil-milhões
Quando Gaspar descobriu que na caverna do estado social
estavam escondidos quatemimnhões foi a correr contar a Passos.
- E como é que lá
entramos?
- 'Abre-te selassié',
acho que é a senha, e se lá conseguirmos entrar vai ser canja pormos as mãos
nos quatemimnhões!
- Achas que não vai estar lá mais ninguém?
- Vamos num dia em que haja manifestações!
Gaspar e Passos esfregavam já as mãos com a imagem de um
pote cheio de quatemimnhões quando lhes apareceu Portas a dizer que também
queria ter uma palavra a dizer sobre os quatemimnhões.
- Mas tu não sabes qual é a senha! - rematou logo Gaspar.
- Sei sissinhora, é:
'Abre-te Lagarde'!
- Não é, Toma! E essa só manda no departamento de bijutaria
e marroquinaria e os quatemimnhões são despesas sociais.
- Então vou perguntar ao Bagão Felix e ele diz-me a senha
- Ora, ora, espertinho, a senha já não é a mesma, ehehe,
pensas o quê!?
Portas irritado manda chamar Mota Soares.
- Mota, então não eras tu o dono do estado social, porra!?
Mandei-te para lá e agora deixaste mudar a senha e perdemos o controlo à coisa!
- Chefe, desde que descobriram que estavam lá os
quatemimnhões andam todos fechados em copas e a fazer panelinha com o selassié
- Sabes o número desse gajo?
- Não, ele liga-me sempre dum anónimo
- Cabrão...e agora fazemos o quê?
- Sei lá, olha, para já pomos o puto-almeida a esbracejar e depois
logo se vê
Entretanto Gaspar e Passos foram para a porta do estado
social e começaram a dizer baixinho:
- Abre-te selassié, abre-te selassié...
E então, num movimento lento e majestoso, as portas blindadas
do estado social abrem-se de par em par e eis que um tesoiro exuberante,
doirado e resplandecente de subsídios de desemprego e pensões de reforma lhes aparece a tilintar
e luzir.
- Meu Deus, tanta riqueza?! Já viste ali aquela pensão de
viúva? Linda de morrer!? e aquele subsídio de funeral!? Que jóia...
- Sim, Gaspar, sim, deslumbrante, e olha ali para aquela
bolsa de estudo! Parece um pergaminho raro!
- Estava aqui um pote de quatemimnhões e nós nem sabíamos!
- Olha, começa a meter no saco aqueles abonos de familia que
estão todos espalhados e ainda podem voar com a corrente de ar
- E cheiram tão bem...são uma autêntica especiaria social
- Não sejas depravado, Gaspar, não é para brincares com
isso!
- Ao menos deixa-me ficar só esta noite com uma taxa
moderadora, para brincar com ela, vá lá, depois amanhã eu trago
- Sim, mas não digas nada ao Macedo, que o gajo é invejoso,
e ainda vai querer meter a unha nos nossos quatemimnhões!
- Nada disso, os quateminhões são nossos! Fomos nós que os
descobrimos!
- Sim! Credo, já viste, nem pensar, com os nossos quatemimnhões
ninguém brinca...Eu sou o número dois, não sou?...
- Claro, Gaspar, meu rei mago, tu és o meu número dois, pronto.
- E mais ninguém vai saber do nosso segredo, pois não,
número um?
- Não, ninguém!
- Nem o Marques Mendes?
- Não...
- Humm...quatemimnhões só para nós e para os nossos modelos
escanzelométricos, nham, nham.
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La vie au Rachat
the dark side of the wool #n+k+l
Um dia o pastor enquanto tosquiva uma ovelha descobriu uma
moeda dobrada no meio da lã. Olhou à volta e no cimo de um monte viu o lobo a
rir-se atrapalhado e com um dente partido. Depois virou-se para o lado da planície
e viu o fiel cão com o seu mealheiro ao pescoço. Fez-lhe uma festa rápida e
tirou-lho. Já se preparava para o abrir e contar as moedas quando constatou que
tinha lá inscrito em tempos: nem tudo o que é fofo é lã.
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Dark side of the wool
Dead Can Dance II
Uma das principais conquistas do novo Purgatório-social é
que Deus Nosso Senhor doravante apenas terá acesso ao visionamento das nossas
vidas depois de criteriosamente editadas. Enquanto antes nos apresentávamos ao
Criador e seus acólitos de forma bruta, desde a refundação do Purgatório que
temos direito a pequenos ajustes efectuados por anjos especializados em limar
as arestas do pecado. Muito boa gente hoje ainda amocha anos e anos à espera duma
vaga no Céu porque pura e simplesmente ninguém teve o cuidado de cortar
pedacinhos sem importância da sua passagem por este degredo de Eva, muitos
deles até certamente apenas pequenas distracções ou mesmo meras manifestação de
respeito perante tentações que se apresentavam generosas e determinadas. Todos
sabemos perfeitamente que mudar um enquadramento ou desfocar um ou outro plano
são suficientes para transformar momentos de natureza mais duvidosa da nossa
vida em meras circunstancias de confraternização e formas alternativas de viver
alguns dos mandamentos, certamente apreciadas pela corte de Anjos, sempre ciosa
de confirmar as nossas performances proselitistas; ora não há conversão sem
contacto, como é sobejamente reconhecido. A edição de vidas para efeitos de
visionamento e apuramento de responsabilidades morais é assim uma das
principais conquistas do pecador moderno e deverá ser salvaguardada, sem
quaisquer compromissos com arrivismos de escrupulosos ou puritanos de ocasião.
Dead Can Dance
Deus, como seria de esperar, olha para nós com curiosidade
divina. A curiosidade divina consiste numa espécie de auto-redenção do criador
que recebe o homem-feito-deus e lhe administra a eternidade chave-na-mão com
uma paciência infinita. Mas o homem há muito que pôs Deus na borda do prato (há
quem diga que é o local onde guardamos o que gostamos mais para depois degustar
com cuidado) e Ele teve de reestruturar o Purgatório face à nova realidade
religiosa. Podemos chamar a este novo local, para utilizar uma terminologia d'época:
o Purgatório-social. A meio caminho entre a eternidade-ameaça e a
eternidade-protecção este novo purgatório tem apenas para fornecer aos penitentes
os serviços mínimos de penitência e adoração. A comissão instaladora definiu
assim as suas funções: garantir apenas que perceberam a merda que fizeram e a
merda que deixaram por fazer. Ou seja, deixamos de ter a possibilidade de
vislumbrar antecipadamente a experiência de O ver face a face, mas por outro
lado também não nos consumimos demasiado com a pecadilhada que distribuímos
enquanto por aqui andámos. O novo Purgatório-social permitirá que nos
habituemos mais gradualmente à nossa nova condição de mortos-pendentes do Juízo
Final e que mantenhamos as virtudes teologais a um nível que nem envergonhe os
santos nem desespere mais os que ficaram entalados noutros braseiros. Revistos
os serviços mínimos deste Purgatório livre de expectativas que a fé de um
penitente moderno já não consegue acompanhar, restam-nos agora uns quantos
séculos de misericordiodependência e , quanto muito, um ou outro período de
graças gordas.
A sexta avaliação
Carlos Fontes estava ansioso naquela terça-feira que
arrancou com uma desconsoladora neblina. Iria estar com Luísa pela sexta vez e
dos outros encontros não conseguira retirar um percurso, uma casualidade de
emoções, reacções, suspiros ou sequer sorrisos, um love path. Cada encontro era um universo
novo a descobrir, nem sequer percebia se se daria uma translação ou uma mera
rotação, nos momentos que estiveram juntos o tempo parecera-lhe saído da cauda dum cometa desgovernado. Umas vezes faladora e expansiva, noutras circunspecta, em momentos
lúcida e racional, noutros lúdica e enigmática. E como seria que ela o veria? Nunca
conseguira perceber. Cada abraço era um exame, o simples olhar dela era uma
cirurgia, cada carícia uma ecografia, cada beijo fugaz era saboreado como se
duma ressonância magnética se tratasse. Desta vez encontraram-se num pastelaria
de bairro junto a uma praça quase vazia duma zona antiga da cidade. Luísa
apresentou-se calada e na expectativa. Parecia querer fazer do seu silêncio uma
bancada de laboratório onde ele se teria de deitar para observação. Será que o
verdadeiro teste a um homem é quando uma mulher se deixa ficar calada? Foi este
o pensamento que o arrebatou imediatamente. Mas Carlos sentia-se um grande
polidor do silêncio feminino e encarou aquela sexta avaliação como uma
oportunidade de a conquistar irreversivelmente, de a cobrir com uma patine de
sensualidade que a deixaria brilhante, como uma santa queirosiana de colo
ebúrneo e trança de oiro. Quando ela esboçou a primeira intenção de falar ele
chamou o indicador à frente de batalha e traçou-lhe os lábios, ainda
ressequidos mas já carnudos e puníceos, como numa benção pagã, preparando um
ritual de palavras ternas, doces. O silêncio de Luisa seria coberto por uma
manta de sussurros, qual paramentária de pentecostes, rubra e festiva,
eloquente, como só eloquente consegue ser um homem que ama sem razões. Deixou-a
sem fala, presa num torpor de encantamentos inesperados e pronta para lhe
fornecer o seu amor em tranches voluptuosas e ardentes, que ele trincaria
reverberando uma constelação de estrelas. Serás o cobridor do meu silêncio, Amor,
foi este o seu relatório, austero, mas digno duma rainha das palavras difíceis, dos sentimentos escondidos e das carências amarguradas.
À espera de Murphy
Não há muito tempo o blog 'dias felizes' (hoje com outro
nome não menos beckettiano) numa série de 'aforismos naturais' (melhor que o
natural só mesmo aquele com pedaços de frutas silvestres) escreveu: «Não se
deve esperar muito de um feitio que balança entre o ensimesmado e o trocista».
Dos vários garruços que pulularam de imediato à minha volta quando li aquilo,
praticamente todos me assentaram que nem uma luva feita à medida, no entanto
não comentei a descoberta com ninguém, não fosse deixar a descoberto a minha
careca de gajo-do-qual-não-se-pode-esperar-grande coisa. Retive no meu
ensimesmamento (que tem tanto de estéril quando de oportuno) a consciência de
grande inútil e trocei (na medida do possível) comigo próprio naquela base de
que antes estar quieto que estragar, pois antes um murphy na mão que dois
godots a voar.
valha-nos nossa senhora da emasculada conceptualização
Senhores de uma pívia intelectual de bom porte os
novos-sábios vieram tomar o lugar dos novos-ricos. Aparentemente tudo apontaria
para que ficassemos mal servidos. Mas até não. A energia que antes fazia
desabrochar fábriquetas de peúgas e tshirts, se bem que algumas de duvidoso
porte vindas do grande maná da esperteza saloia, hoje dá à luz dondocas de salão
de chá não dançante com o pomposo nome de comentadores. Gente incapaz de
produzir um mínimo de riqueza que se possa apalpar com dedos de gente, (aquilo
que agora a gíria chama de bens transaccionáveis) encaixou-se na fresta dos grandes
bordéis do pensamento e fez nascer o novo cluster dos entertaineres de opinião,
opinioristas praticamente de cédula garantida e com rodado preparado para
qualquer tipo de piso. Mas o facto é que dalguma forma houve bom time to market
nesta decisão dos mediamakers. Os canais generalistas têm novelas, reality
shows e um ou outro concurso, e os canais de notícias fazem a festa com estes banality
shows, permitindo até a alguns dos artistas-da-opinião saltarem de canal em
canal para que ninguém se fique a rir. A chamada opinião livre está para a
sociedade livre como o tremoço está para as terras cansadas. Ou seja, para o
povo relaxar da ficção redundante ou da notícia anestesiante, os media fornecem
um entretenimento que propicia algum fôlego benigno, algo que também dá muito
boa serventia enquanto se passa a ropinha da máquina da lavar para a de secar,
e que se pode ir desbastando sem comprometer nenhuma colheita essencial; não
chega a dar sombrinha mas também não dá guarida a nenhum pássaro que acabe por
nos cagar em cima. Ou seja, os opinioristas revelam-se não tanto os exemplares
menores da caderneta da liberdade de expressão, mas antes os grandes guardiões
do pensamento inerte, verdadeiras pílulas do nem-aquece-nem-arrefece,
ventiladores de baixo custo e brisa morna garantida. Estes retalhistas do
pensamento livram-nos da conceptualização cartelizada dos grossistas das academias e da erudição, e permitem-nos aceder à eterna graça que é esterilidade do raciocínio
humano, consolidando-se como uma das bem-aventuranças dos tempos modernos em
que o melhor que se pode fazer com uma notícia é tricot e, vá, um ou outro
crochet decorativo para consciências em estado cívico.
blocogamia
De todos os grandes temas do momento, designadamente, o
video-do-marcelo, as declarações-da-jonet, a visita-da-angela-doroteia, e o
novo casal-do-bloco, apenas este último me parece de real importância. Não se
trata, como aparentemente se poderia supor, de uma liderança bicéfala, (aliás,
é até aos homens, isoladamente considerados, a quem geralmente é atribuída essa
qualidade de pensar com duas cabeças) trata-se antes, e numa primeira análise, de uma tentativa de
re-hormonização do poder. Face à carga erótica que geralmente está acometida a
qualquer liderança, o bloco de esquerda enveredou por dessexualizar o exercício
do poder e fê-lo precisamente: sexualizando-o. Face à herança hermafrodita de
Louçã não seria fácil encontrar uma solução que não esta de amancebar heterosexualmente dois
espíritos de esquerda num único casulo trotskista. E é assim que se traz para o
maravilhoso mundo da termodinâmica homem-mulher uma nova e empolgante categoria. Face
a relações menos ortodoxas entre um homem e uma mulher, que geralmente dão
origem às explicações tipo: a) ah, são apenas amigos; b) ah, são apenas sócios
num negócio; d) ah, têm apenas os filhos no mesmo colégio; e) ah, foram apenas
colegas desde o infantário; f) ah, apenas tiram fotografias juntos; g) ah, são
apenas vizinhos, junta-se agora o h) ah, são apenas co-líderes. A co-liderança
é, assim, uma relação meta-sexual em que tudo funciona em vasos comunicantes,
sendo que a troca de fluidos é substituída por uma comunhão de ideais de
esquerda partisanica, também conhecidos como trostkosterona. Esta hormona revolucionária, produzida pelas
glândulas quando funcionam em bloco, é a responsável pela orientação do organismo
para todas as causas desfavorecidas, permitindo-lhe a adesão à polémica
incontinente e à abolição de todas as indulgências aos consagrados. Assim, o
bloco-casal (que enche um chouriço diferente da sicasal) tem ao seu alcance
proporcionar todo um tipo de sensações de libertação e empatia com o mundo em
geral até hoje apenas verificáveis em ambientes de espiritismo ou amor livre, mas agora numa confluência de energias propiciadora de revolução, serenidade e compreensão mútua.
Deixo então aqui, aquele que será o novo hino do bloco, numa
adaptação do êxito de Lara Li ('Telepatia')
Blocogamia, revolução e calma,
Feitiçaria na nossa alma
Passo a passo, sem ter medo
Abrímos, soltámos o nosso segredo
E a sorrir, devorámos o mundo
Num abraço tão profundo.
Feitiçaria na nossa alma
Passo a passo, sem ter medo
Abrímos, soltámos o nosso segredo
E a sorrir, devorámos o mundo
Num abraço tão profundo.
a (refundação da) mulher de confiança #2 - a bota chelsea
Neste processo de minúcia que é a reforma profunda da mulher
portuguesa não devemos encolher-nos perante estigmas ou preconceitos de
qualquer espécie. Assim, ao 'diz-nos com quem andas dir-te-ei quem és» há que
juntar o, até mais óbvio e consensual, julgo,
'diz-me o que tens nos pés dir-te-ei como andas'. Se no primeiro
capítulo deste breve ensaio comecei pela cabeça, será agora de elementar
justiça dar cobertura à outra extremidade. O pé-de-mulher (conceito que se
situa nos antípodas do também familiar pé-de-atleta ) constitui-se não só como
um dos grandes mistérios do erotismo feminino mas principalmente na consagração
da mulher como o real sustentáculo duma sociedade em permanente volatilidade e
ciclomaníaca. Deixo desde já claro que não pretendo elaborar aqui nenhum libelo
contra modas como o salto ou o cano alto, mas antes reforçar aquilo que
constitui o núcleo de confiança que se pretende encontrar numa mulher: firmeza
e flexibilidade. A bota chelsea consegue concentrar estes dois atributos numa
economia de meios notável e, ainda para mais, deixando em aberto uma ampla gama
de soluções de nível estético que mantêm a mulher no pináculo da atracção sem
lhe atraiçoar o pudor, nem a respeitabilidade. Num notável equilibrismo de
forma, proporção e funcionalidade, a bota chelsea envolve o pé feminino sem que
este se perca num deslumbramento de subtileza ou numa ilusão de força, que deitariam
tudo a perder nessa missão essencial de transmitir confiança ao homem que cada
mulher leva pela mão, ou por qualquer outra ponta por onde se lhe pegue. Com a
imaginação e a insegurança masculina nas doses e temperos certos, o homem sabe
que tem na mulher-com-bota-chelsea, não uma vulgar bota de elástico, mas antes
uma companheira serena, segura, sóbria e sinuosa quanto baste, pois, como está
demonstrado, a curva feminina é tanto um lugar de derrapagem como de contorno
táctico.
Neste momento histórico de redefinição do papel da
mulher-junto-do-homem, quer ela se assuma mais mulher-previdência ou mais
mulher-desfrute, a discreta e eficiente bota chelsea é essencial não só para que não
se tenha de preocupar com as falhas na calçada portuguesa nem com os calos, mas
para que igualmente possa traçar a perna sem que o homem desvie a atenção para o que
é realmente providencial.
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refundação da mulher
Lafayette & Talleyrand
A revolução em Portugal acabou por não conseguir gerar uma
mitologia decente e consistente. Se, por um lado, Soares ainda se aproximou do
brilho da liturgia aristocratico-revolucionária, dando cores persistentes à
primavera politica e construindo em seu torno uma película lafayettiana de esplendor e espontaneidade,
nada de jeito se produziu no outro extremo. Chegados à troikicidade do momento
olhamos à nossa volta e não encontramos nenhum grande calculista, nenhum grande
e perene manipulador de bastidores. Vários candidatos foram ficando pelo caminho
(marcelos, almeidas santos, jaimes gamas, angelos correias, etc) sem deixarem
nenhuma marca que não o episódio ou flirt irónico e conspirista. Chegados aqui
vemos que a revolução em Portugal não produziu nenhum Grande Cínico, alguém que
trouxesse no sangue a dissimulação em estado puro, um reflexivo obsessivo. E
que falta nos faz a existência desse pólo agregador de todas as forças da
especulação e do genuíno amor aos bastidores e aos cordelinhos. Fosse por
incompetência, por excesso de vaidade mediática ou por mera mesquinhez
genética, estamos órfãos desse talleyranico poder, e o país rumina pelos cantos sem descobrir nem
redenções nem conspirações que o salvem. Em nos ter falhado o poder mítico dum
cavaleiro andante e duma eminência parda estamos confiados a pardos andarilhos
de poder. Sempre com o picotado ao pescoço.
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La vie au Rachat
aguentómetro
nível 1 - lembram-se
daquele tempo maravilhoso em que se discutia se o couvert devia ser pago em
separado?
nível 2 - lembram-se daquele tempo fantástico em que o
grande problema do mundo era o racismo na África do sul?
nível 3 - lembram-se daquele tempo em que a salazarenta ponte
25 de abril ficou bloqueada porque os camionistas não queriam pagar o aumento
das portagens?
nível 4 - lembram-se daquele tempo maravilhoso em que se era
a favor ou contra a invasão do Iraque?
nível 5 - lembram-se daqueles tempos em que evitávamos comer
carne de vaca por causa da espongifórmica?
nível 6 - lembram-se daquele tempo em que a principal
questão nacional era um problema técnico sobre o novo aeroporto: ou em cima das
estacas da Ota ou entre os sobreiros de Alcochete?
nível 7 - lembram-se daquele tempo maravilhoso em que o
engenheiro guterres não sabia calcular percentagens do pib?
nível 8 - lembram-se daquele tempo em que o sporting tinha
equipa de futebol?
nível 9 - lembram-se daqueles anos luminosos em que cavaco
comia bolo rei?
nível 10 - lembram-se quando estávamos de tanga?
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salafixologia
Ao contrário do que somos levados a pensar, o epíteto
«salazarento» , que alegadamente terá ofendido Gaspar, victor e ministro, não se deve tanto ao mobilizador ideológico-idiomático
'salazar', mas antes ao sufixo 'ento' que, com o aditivo do 'z' já possuído
pelo referido salazar nos conduz directamente a 'cinzento', cor interessante
para combinações mais clássicas no vestuário, mas que nos remete para um
universo de retrogradismo e bafio. Vejo assim que está ao nosso alcance definir
uma nova classificação semântica dos vários salazarixos. Observemos. Se utilizarmos
o 'salazarosa' podemos lograr injuriar a
preceito alguém que esteja próximo do lobi gay; se quisermos dizer que um
politico está com um discurso mortiço e cambaleante poderemos chamar-lhe um
'salazarombi'; se por acaso alguém entrar por um discurso decadente de vaidade
e bazófia poderemos utilizar o novel adjectivo 'salazarófia'; se pretendermos
desconsiderar alguém e as suas ideias julgo que a utilização de 'salazareco'
será de muito bom efeito. Por outro lado, ao nos depararmos com alguém que
esteja a misturar tudo, naquela onda de que está tudo ligado e que tudo é igual
a tudo, dará muito boa serventia a expressão achocolatada de 'salazarame', e se
nos aparecer algum artolas com um estilo de romancista chato e arrastado não
ficará mal de todo chamá-lo de 'salazarola', com emílio ou sem emílio. E então,
por último, e para ir jantar, se quisermos arranjar uma designação acutilante para
o que acabei de escrever, muito bem ficará chamar-lhe um post da salazareta.
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a (refundação da) mulher de confiança #1 - a bandelette
Qualquer homem num determinado momento da sua vida precisa
de ter uma mulher de confiança. Seja
qual for a posição formal que ocupe na sua vida (cuidado que as mães nunca são
de confiança) trata-se de alguém em que ele possa encontrar aquilo que não tem,
nem nunca terá, por força duma fatalidade que se dá pelo nome de natureza. A mulher, sem deixar de ser
também uma construção social e cultural, (como o homem, de resto, mas este menos)
encerra em si um pouco daquilo que apenas a religião consegue fornecer com
estilo, ou seja: o mistério. Apesar de Pessoa ter alertado para que «o único
mistério é haver quem pense no mistério», é impossível fugir à inegável
capacidade que a mulher tem em se constituir numa espécie de metafísica com
pernas ( e mais qualquer coisa de bónus). A mulher, ciente dessa sua
característica desde muito tenra idade, (mantendo-se, muitas delas, inclusive
tenras por muito tempo) tem uma forte tendência para lhe ir acrescentando
muitos outros atributos que acabam por diluir o papel peri-religioso que
recebeu das entranhas da criação. É assim para o homem uma tarefa de primordial
importância saber discernir de todas as mulheres que as circunstâncias lhe
colocaram no caminho, qual ou quais as que podem ser realmente a sua ponte, a
sua ligação ideal, a sua chave, a sua ignição. Como a mulher é extremamente
permeável às iconografias de camuflagem, isso acaba por permitir ao homem
construir uma espécie roteiro de decifra que funcione como descodificador de
bolso. É desses sinais (mutáveis e vulneráveis à dissimulação feminina, claro)
que aqui falarei, nestes momentos históricos em que se irá definir qual o tipo de mulher a que temos direito.
O primeiro que me parece consensual é o uso de bandelette. A gestão (da forma) do
cabelo é uma das principais rotas de definição do humano ( o animal, por exemplo, pode arranjar as unhas ou garras mas não se auto-penteia) e a mulher
forçosamente não consegue fugir a esse processo. Com maior ou menor consciência o seu penteado vai
transmitir aquilo que ela é, e, mais precisamente, é para o homem. Ora a
bandelette é um instrumento de eleição para a mulher emitir um sinal inequívoco
de que: tem a consciência de que é um ser-da-selva mas que se sabe controlar. A
mulher bandeletizada prova com esse adereço que saberá constitui-se num
acondicionador para o lado desregrado do homem e que saberá estar ao lado dele
quando for preciso atravessarem o rio, esteja ele cheio de predadores ou apenas com uma corrente mais forte. O homem poderá
confiar nela pois nunca deixará que o vento lhe leve o cabelo a tapar a vista, a mulher com bandelette nunca perderá a perspectiva, nunca se deixará ficar
presa em nenhum ângulo morto ou arame farpado. Por outro lado, a mulher-de-bandelette não vai
perder tempo a cortar franjas, a endireitar linhas de penteado nem a empinar caracóis (tendo até mais disponibilidade para empinar outras curvas),
será sempre uma mulher prática que não deixará o homem perder-se em divagações,
em pensamentos inúteis ou de uma futilidade castradora. A mulher de bandelette
não terá a tentação de soprar a cortina de franjas, será muito menos atreita a
usar rabo de cavalo (o enfeite mais enganador para o homem), e nunca deixará
avolumar em excesso o seu cabelo, ou seja, manterá a sua nobreza sempre
conservada num banho de sobriedade. Sendo a mulher bastante atreita às
limitações impostas pelas convenções sociais (muito mais que o homem) o uso da
bandelette evidenciará que ela é das que, compenetrada nessa sua histórica fragilidade,
saberá pôr o homem que confia nela acima de todas as luxúrias de condição ou liturgias de ilusória libertação.
Podemos, pois, afirmar com alguma segurança, e sem recorrer a discurso fácil ou de cassete, que uma mulher em estado-de-confiança provavelmente usará uma bandelette.
Podemos, pois, afirmar com alguma segurança, e sem recorrer a discurso fácil ou de cassete, que uma mulher em estado-de-confiança provavelmente usará uma bandelette.
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refundação da mulher
O Estado Marsupial
Depois de ter sido decretado o óbito do chamado Estado Social
toda a comunidade politóloga e sociolofílica se reuniu para desenvolver um novo
modelo de Estado que, para além de lhes continuar a dar trabalho, pudesse igualmente
dar aviamento à quantidade de impostos que começariam a sobejar nas contas
públicas. Tendo acordado em manter uma posição de apriorismo na definição de
Estado, oposta, portanto, à recente tendência pragmatóina, (na qual o Estado é
o que derem os impostos, uma espécie de Estado em regime de trabalho temporário)
os especialistas começaram por construir o enquadramento conceptual para um
Estado neoplatónico, um Algo que tem de
estar ali, leviatanico e seguro, mesmo que não se veja nem sinta.
Arredada a vertente minimalista de Estado-central-da-securitas, em que cada cidadão estaria ligado a um posto de intervenção rápida que enviaria um piquete apenas em caso de arrombamento social, estabilizou-se num conceito de Estado-como-central-de-acolhimento. Afastados os extremos de Estado-sopa-dos-pobres e Estado-resort, as várias sensibilidades centraram-se em torno de modelos mais biológicos, procurando inspiração na natureza que deus nosso senhor nos propiciou na sua infinita magnanimidade e inclusive espírito prático, avant darwin.
A primeira sedução filosófica veio da corrente que desenvolveu o conceito de Estado-concha, naquilo que ficou conhecido como o neo-Bibalvismo. No entanto, rapidamente esta corrente desembocou nos previsíveis rousseauniamismos avulsos, chegando-se a ouvir afirmar que cada cidadão seria uma pérola em potência apenas à espera dum Estado-joalheiro que se enfeitasse com ele. Quando parecia poder instalar-se um impasse ideológico, um grupo de filósofos sugeriu que se deveria procurar uma fórmula de Estado naquilo que de mais íntimo a natureza humana albergava. Tentativamente simularam-se modelos de Estado-vulva, tomando em consideração que a sodomia já está demasiado usada e que haveria de voltar às origens, nas quais o Estado era o grande fecundador de consciências, uma espécie de viveiro de sonhos de cidadania, liberdades & magnas cartas. Alertados para o problema que se levantaria com o ressurgimento das nações-vulva, que automaticamente atrairiam uns problemas do caralho, souberam ainda assim não esmorecer e, vendo o entusiasmo crescente dos defensores dum Estado-balancete eternamente depende do espasmo fiscal, e em paralelo as mãos caídas dos herdeiros desfalcados do tal Estado-Social, alguns elementos dum think-tank denominado 'roer-o-osso' reuniram-se em segredo para formular uma Teoria de Estado que o voltasse a colocar no coração das pessoas.
Surgiu assim o modelo consensual de Estado-Marsupial. Este tipo de Estado é claramente uma mais-valia e uma solução de compromisso, no qual o cidadão pode encontrar o aconchego que precisa mas em que, simultaneamente, pode pôr de vez em quando a cabecinha de fora para tomar ar. O Estado-Marsupial tem uma característica fundamental: está sempre disponível; mesmo que não existam grandes recursos há sempre um mínimo de calor interior que permitirá aquecer o cidadão, dar-lhe guarida, e inclusivamente ajudá-lo a dar o salto para qualquer sítio. O próprio sub-grupo recentemente criado dos refundacionistas, que pretendiam criar um modelo de estado-das-sobras, considerou que este modelo marsupial não era incompatível desde que o cidadão não desse muitos traques fora da bolsa, pois nesta fase não se pode perder nada independentemente do que cheire. Espera-se agora que as instituições se adaptem progressivamente e inclusive não se dêem reacções despropositadas de lobis mais envolvidos em compromissos com o estado-coninhas, também conhecido como o estado liberal.
Arredada a vertente minimalista de Estado-central-da-securitas, em que cada cidadão estaria ligado a um posto de intervenção rápida que enviaria um piquete apenas em caso de arrombamento social, estabilizou-se num conceito de Estado-como-central-de-acolhimento. Afastados os extremos de Estado-sopa-dos-pobres e Estado-resort, as várias sensibilidades centraram-se em torno de modelos mais biológicos, procurando inspiração na natureza que deus nosso senhor nos propiciou na sua infinita magnanimidade e inclusive espírito prático, avant darwin.
A primeira sedução filosófica veio da corrente que desenvolveu o conceito de Estado-concha, naquilo que ficou conhecido como o neo-Bibalvismo. No entanto, rapidamente esta corrente desembocou nos previsíveis rousseauniamismos avulsos, chegando-se a ouvir afirmar que cada cidadão seria uma pérola em potência apenas à espera dum Estado-joalheiro que se enfeitasse com ele. Quando parecia poder instalar-se um impasse ideológico, um grupo de filósofos sugeriu que se deveria procurar uma fórmula de Estado naquilo que de mais íntimo a natureza humana albergava. Tentativamente simularam-se modelos de Estado-vulva, tomando em consideração que a sodomia já está demasiado usada e que haveria de voltar às origens, nas quais o Estado era o grande fecundador de consciências, uma espécie de viveiro de sonhos de cidadania, liberdades & magnas cartas. Alertados para o problema que se levantaria com o ressurgimento das nações-vulva, que automaticamente atrairiam uns problemas do caralho, souberam ainda assim não esmorecer e, vendo o entusiasmo crescente dos defensores dum Estado-balancete eternamente depende do espasmo fiscal, e em paralelo as mãos caídas dos herdeiros desfalcados do tal Estado-Social, alguns elementos dum think-tank denominado 'roer-o-osso' reuniram-se em segredo para formular uma Teoria de Estado que o voltasse a colocar no coração das pessoas.
Surgiu assim o modelo consensual de Estado-Marsupial. Este tipo de Estado é claramente uma mais-valia e uma solução de compromisso, no qual o cidadão pode encontrar o aconchego que precisa mas em que, simultaneamente, pode pôr de vez em quando a cabecinha de fora para tomar ar. O Estado-Marsupial tem uma característica fundamental: está sempre disponível; mesmo que não existam grandes recursos há sempre um mínimo de calor interior que permitirá aquecer o cidadão, dar-lhe guarida, e inclusivamente ajudá-lo a dar o salto para qualquer sítio. O próprio sub-grupo recentemente criado dos refundacionistas, que pretendiam criar um modelo de estado-das-sobras, considerou que este modelo marsupial não era incompatível desde que o cidadão não desse muitos traques fora da bolsa, pois nesta fase não se pode perder nada independentemente do que cheire. Espera-se agora que as instituições se adaptem progressivamente e inclusive não se dêem reacções despropositadas de lobis mais envolvidos em compromissos com o estado-coninhas, também conhecido como o estado liberal.
a economia da estupidez
Ser estúpido é algo que requer uma utilização criteriosa de
amplos recursos. Em geral podem encontrar-se 2 grandes tipos de estupidez: a natural
e a elaborada. O primeiro tipo está bastante bem difundido pela espécie e é uma
das chaves mestras da nossa sobrevivência a par do polegar pênsil, do uso do
fogo, do cartão de crédito e da roda. No entanto, mesmo esse nosso talento
inato para colocar a realidade ao serviço das nossas entranhas mais íntimas
exige treino e interacção com vários recursos, designadamente o desprezo pelo
semelhante e , nos casos mais sofisticados, o desprezo por nós próprios.
Deixando um pouco de lado este tipo de estupidez natural, debruçar-me-ei no
segundo tipo que chamarei de estupidez-elaborada. Quando se diz, por exemplo:
não há limites para a estupidez - é precisamente desta que estamos a falar.
A estupidez elaborada tem, desde logo, um ponto de contacto
muito relevante com a natural, trata-se da pose. A pose estúpida é a combinação
do talento natural-estúpido com um trabalho artesanal que inclui trejeitos,
tiques e fosquices, sem menosprezar esgares diversos. É, no entanto, objecto de estudo dos fisionomistas-pantomínicos
e deixamos para outra ocasião. Situemo-nos agora na observação dos mecanismos
mais recorrentes na elaboração da estupidez. Em primeiro lugar temos a fenómeno
da 'sobranceria'. O uso da sobranceria deve ser concretizado de forma muito parcimoniosa,
não se deve esbanjar sobranceria pois se ela transbordar poderá conduzir a que
não sejamos levados a sério. Um verdadeiro estúpido condimenta sempre a sua
sobranceria com momentos de comiseração patética. A comiseração patética
distingue-se da comiseração lúdica porque implica a maior utilização de
trejeitos de lábio e em menor grau os de nariz ou testa (os olhares terão
direito a dissertação específica). É talvez um tema demasiado técnico para este
documento e podemos passar ao segundo elemento constituinte da estupidez-elaborada, trata-se do convencimento-misterioso. Um estúpido-elaborado
apresenta-se sempre senhor de um conhecimento oculto, também conhecido nalguns
fóruns técnicos como o graal-de-merda. Este aleph do estúpido deve concentrar
um efeito anestesiante nos auditórios que o rodeiam e apenas tem de se ter
cuidado com o efeito-fronteira da irritação alérgica. Um estúpido no ponto
rebuçado deve sempre causar irritação mas jamais deve permitir que esta vire
alergia. A alergia é a grande inimiga do estúpido-elaborado e funciona quase
como o mau hálito do padre num confessionário, que, designadamente, pode
fomentar pensamentos perturbadores do género do foda-se perdoa-me lá esta merda
e afasta o bafo de cima de mim. Por último, e para não nos alongarmos neste
estudo que se quer sucinto, - e eu hoje sinto-me sucinto - devemos debruçar-nos
sobre o tema do olhar do estúpido-elaborado. Em primeiro lugar há que afastar o risco de
confusão com o olhar de peixe, pois nem todo o olhar de peixe está afecto a um
estúpido (por vezes é um peixe mesmo) e nem todos os estúpidos têm olhar de
peixe. Uma coisa é clara, e todos os trabalhos de campo que efectuei o
demonstram, o estúpido deve estar dotado de algum esgazeamento de olhar, algo
assim entre a névoa e o alheamento e que vai muito bem juntamente com umas
olheiras discretas. Há, contudo, certos patrimónios genéticos que não permitem
este tipo de olhar e têm de recorrer a outros mecanismos fisionómicos, como sejam o do
carneiro-mal-mortismo que é de bastante mais fácil acesso a qualquer estúpido-em-elaboração. Os olhares com tendência mais inerte poderão ter de se socorrer do
plano B que se encontra no esbugalhamento. Este olhar esbugalhado é algo arriscado, e já ouve
muitos espécimes que foram encarados como meros curiosos, mas afinal acabaram por
funcionar muito bem como estúpidos-cientistas sociais, uma nova sub-espécie em
expansão. À laia de conclusão poderemos dizer que a estupidez elaborada dá-se
muito bem em ambientes de credulidade assistida, ou seja, em situações
históricas nas quais, à falta de catacumbas para nos escondermos duns cabrões
em legião, nos refugiamos em pastiches econométricos, o verdadeiro paraíso
simbólico do novo-estúpido, fazendo as vezes daquilo que o mercedes já
significou para o novo-rico. Não queria no entanto deixar-vos sem uma breve
alusão à nova preciosidade da estupidez moderna que é o uso da filosofia
política como muleta de estupidez. Com o advento do estúpido-com-estudos veio a
tentação de sedimentar a estupidez em algo de semelhante ao que, no passado, o piolho já tinha representado
para o estúpido medieval ou a cabeleira postiça para o estúpido ancien regime.
Hoje o estúpido-culto ancora-se numa visão integrada do mundo, vivendo com uma
espécie de clister hiper-estruturalista sempre enfiado, camuflado, digamos. Assim, é uma estupidez
que resulta muitíssimo bem, sempre fornecida de eficientes retóricas de ocasião,
e permitindo o desenvolvimento sustentado de uma das quinta-essências da
estupidez-elaborada que é o desdém pelo semelhante, conferindo-lhe aquela
auréola de iluminismo requentado de tão belo efeito, e que inclusive vai bem com qualquer tipo de botão-de-punho.
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windianápolis #n
The wind
blew all my wedding-day,
And my wedding-night was the night of the high wind;
And a stable door was banging, again and again,
That he must go and shut it, leaving me
Stupid in candlelight, hearing rain,
Seeing my face in the twisted candlestick,
Yet seeing nothing. When he came back
He said the horses were restless, and I was sad
That any man or beast that night should lack
The happiness I had.
And my wedding-night was the night of the high wind;
And a stable door was banging, again and again,
That he must go and shut it, leaving me
Stupid in candlelight, hearing rain,
Seeing my face in the twisted candlestick,
Yet seeing nothing. When he came back
He said the horses were restless, and I was sad
That any man or beast that night should lack
The happiness I had.
Philip
Larkin in Wedding Wind
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windianápolis #4
O wild West
Wind, thou breath of Autumn's being,
Thou, from
whose unseen presence the leaves dead
Are driven,
like ghosts from an enchanter fleeing,
Yellow, and
black, and pale, and hectic red,
Pestilence-stricken
multitudes: O thou,
Who
chariotest to their dark wintry bed
The winged
seeds, where they lie cold and low,
Each like a
corpse within its grave, until
Thine azure
sister of the Spring shall blow
Her clarion
o'er the dreaming earth, and fill
(Driving
sweet buds like flocks to feed in air)
With living
hues and odours plain and hill:
Wild
Spirit, which art moving everywhere;
Destroyer
and preserver; hear, oh hear!
.
de Percy B. Shelley, in Ode to West Wind
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Pussy Diet
De todos os grandes compensadores psico-fisiológicos da
humanidade ( álcool, tabaco, velocidade e sexo) apenas o sexo não contribui
devidamente para a cobrança fiscal. Por estar muitas vezes associado a
actividades proibidas por lei, nalguns casos penalizado pela chamada moral
vigente, e em muitas culturas ligado aquilo que geralmente se chama a esfera
íntima de cada um, o sexo tem estado arredado da fiscalidade tradicional. Ora,
sendo, destes quatro compensadores, aquele que está presente junto de nós há
seguramente mais tempo e sendo aquele que, julgo, nos está mais amplamente consolidado,
não parece normal que viva arredado dum papel activo de contribuição para a
fazenda nacional. A dieta libidinosa a que o nosso orçamento do Estado se tem
submetido deverá pois chegar ao fim. Até há alguns anos, a prática sexual , ao
contrário dos outros compensadores, não compelia à utilização de nenhum
produto, costume esse que com o tempo se foi alterando via o uso e consequente
comercialização generalizada dos preservativos. Face à dificuldade da
tributação do acto sexual em si, a possibilidade de tributar o produto associado ao
acto parece ser o caminho mais razoável (da mesma forma que não se tributa o
acto de beber e sim os produtos alcoólicos conexos, não se tributa o acto de
fumar mas sim os cigarros ou afins e não se tributa o uso da velocidade mas sim
a compra de viaturas e de refinados petrolíferos). Mesmo que a prática
sexual possa estar associada a mais produtos para além dos referidos
preservativos (toalhetes, motéis, algemas, lingerie ou até vendas para os olhos,
entre outros) afigura-se-me pouco plausível que se alcancem resultados fiscais
convincentes sem a utilização daqueles como matéria colectável. Assim sendo,
dois caminhos se apresentam possíveis: ou a sua comercialização ser totalmente
controlada pelo Estado (como acontece com os produtos alcoólicos ou até o
tabaco nalguns países), ou a tributação ser exclusivamente efectuada no produto,
independentemente dos seus canais de distribuição, com a obrigatória e solene selagem oficial. Na primeira modalidade
poderiam utilizar-se as redes de lojas do cidadão, ou dos CTT, ou até a
monopolização de novas máquinas dispensadoras a licenciar. Poder-se-ia
inclusive conceder alvarás para lojas acreditadas (com a consequente receita
adicional) o que até permitiria revitalizar sectores actualmente em esforço
como a restauração ou as imobiliárias, constituindo-se assim um apetitoso
cluster dos preservativadores, ou , passe o trocadilho neologístico, os novos condomínios. Se esta medida pode causar,
à primeira vista, alguma estranheza, convenhamos que é meramente
circunstancial, pois, repare-se bem, também não está no núcleo conceptual dos
conceitos de beber álcool, fumar ou andar de carro a noção de que são actividades tributáveis, sendo
que a colecta a elas associada é absolutamente artificial e só nos está
entranhada por mera acostumação. Constataremos até que, neste caso, cada
contribuinte sentirá que a sua participação no Orçamento do Estado é algo que
lhe está bem junto ao corpo, numa verdadeira fiscalidade de proximidade, como
uma segunda pele. Será obviamente natural que esta medida de tributação avulsa,
e de alguma forma de emergência, leve a comportamentos de ajuste ou até evasão,
quer sejam eles a utilização de alternativas sexuais, quer sejam níveis de abstinência
mais elevados que os previstos pelos modelos, quer sejam o mero contrabando ou
contrafacção. No entanto, uma coisa é clara, poderá não ser o fim da pica mas
seguramente dará algum descanso à crica.
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a economia do pensamento
Desaparecidas as ideologias em parte incerta e depois de uns
anos à volta de super-estruturas de desenrasca tipo civilização, ocidente,
tolerância, ética e outras avulsas da família das convicções, aterrámos na era
dos conceitos. Como estamos ainda numa fase embrionária escondemo-nos frequentemente
em figuras de estilo de maior ou menor efeito, metáforas de atavio, fazendo
apelo a uma imaginação que vive descompensada por falta daquilo que antes lhe
dava gás que eram os famosos valores. Assim,
nesta era emergente dos conceitos - à qual ainda nos adaptamos quais
netherdales do pensamento abstracto - já tivemos de pôr de lado as grandes
motivações e os grandes desafios e estacionámos na berma, junto ao maravilhoso
mundo dos possíveis. Começamos, e bem, por baixo. Definimos os novos
sofrimentos, as novas decadências e assim pensamos fugir aos cálculos piedosos
da miséria e do desespero. De rabo a dar definimos como roubo a falta de jeito
e como bomba o apertão, dando assim algum lastro para os conceitos terem espaço
para montar a sua tenda. O Capital e a Bíblia, cumprindo o seu ciclo, voltam a alimentar os mesmos comensais.
Quando não se sabe, ensina-se, quando não se sabe ensinar, explica-se, quando
não se sabe explicar conceptualiza-se. Vivemos o conceptualismo criativo. Nem
está mal visto.
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a economia da virtude
Há muito que o consumo tinha substituído a fé como principal motor da
actividade e da ilusão humana. O consumo veio acompanhado de conceitos
sedutores como a imaginação, a felicidade, o bem-estar, a liberdade, o
progresso, e a fé foi ficando mais ligada a corrupção de almas, a liturgias
bafientas, a estruturas de opressão emocional, a fanatismo , a irracionalidade
e a regressão. Ora nestes tempos em que o processo de moeda ao ar que impregna
toda a evolução humana entrou numa fase em que nos é apresentada a outra face
temos para nos entreter o confronto semi-titânico entre a austeridade e a
temperança. Assim, enquanto a austeridade nos revela os lados negros da
privação, da insatisfação, da frustração, a temperança tem o seu tempo de
antena para nos indicar o caminho da sobriedade, da paciência e da discrição. A
opção para quem se sente fodido e mal pago é empertigar-se casto e ponderado. Se
antes era preciso separar o consumo do desperdício, hoje é preciso separar a
temperança da miséria.
Antes uma boa perspectiva na mão do que dois realismos
mágicos a voar.
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Windianápolis #3
No boughs
have withered because of the wintry wind;
The boughs
have withered because I have told them my dreams
WilliamButler Yeats, in The Withering of the Boughs
William
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Tsunicómio IV - Alvaladoscopia
Enfiaram um tubo pelo rabo do sporting adentro e foram
encontrar uma espécie de pandilha doutro mou, dum memorandum of unconsciousness;
mas nem tudo é o que parece. A parede estava bem lubrificada, todavia contraía-se
por tudo e por nada. O ecrã mostrava movimentos espasmódicos por dá cá aquela
palha, uns divertículos faziam de pombinho e outros de gralha, enquanto alguns
procuravam um treinador que os salvasse outros procuravam um árbitro que não os
tramasse, em ambos os casos evitando a cólica e aproveitando o flato para
energia eólica. Tratava-se dum exame de urgência não houve tempo de esvaziar
bem a tripa oleosa e ainda para lá havia restos de pentelhices misturadas com a
mucosa. Foi avaliada a situação e o diagnóstico dito um em formato solene, que lá
se instalara uma marosca perene. Seriam Lampiões? Sócrates? Um perdido par de
colhões? Algum benefício fiscal desgarrado? Ou restos dum penalty mal
assinalado? Uma virgula mal colocada num decreto? Uma maioria anulada por um
veto? Retirou-se um bocado para análise. Com a bosta bem posta na lamela,
ninguém dava por ela. Pediu-se paciência, circunspecção, coalescência e a uma
puta armada em menina pediu-se cuidado com a verrina. As células acabaram por
dar de si, e mesmo com um aspecto palúrdio houve quem dissesse que só servia um
treinador que custasse um balúrdio. Foram a sortes, e como não havia
treinadores incluídos no Plano Nacional de Leitura, optaram por contratar um
tsu, um treinador saído do olho do cú.
Tsunicómio III
A lagartada afunda-se e nós andamos preocupados com a merda
do país como virgens néscias. O afundamento leonino é algo que nos devia pôr
todos a pensar: há na realidade algo que está por dentro e tudo mina. Não pode
ser só incompetência, não pode ser apenas cancro, não pode ser apenas aldrabice,
não pode ser apenas azar. Mas também seria abusivo dizer que o Sporting encarna
o grande mistério da Impenetrabilidade do Ser, ou seja, meia dúzia de caralhos
que não conseguem - há anos! - pôr a jogar outra meia dúzia de caralhos (não se
escandalizem com tanto caralho e pensem como as boas gentes do norte que dizem
que caralho é virgula) não é o suficiente para definir um problema metafísico.
No entanto, algo estará quanticamente no interior daquele cabrão de sistema
chamado sporting club de portugal e que compete com o misticismo judeu, a
cabeleireira da judite de sousa e até aqueles modelos empíricos do gaspar devidamente
benzidos por borges & macedos. Temos excesso de interioridade e excesso de
litoral, somos demasiado densos, muita uva e pouca parra, concentramos
demasiada energia e precisamos de escapismos seleccionados, mas desgraçadamente
as balizas adversárias não têm estado no caminho dos nossos escapes, tal como
não foi na praia do bom senso que desembarcaram as derivadas de gaspar. Pensemos estar a ensaiar mais um método de interrupção involuntária da sensatez, e
que algo eternamente adiado pode afinal ser apenas um embrião embriagado.
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Windianápolis #2
This is how
the wind shifts:
Like the
thoughts of an old man,
Who still
thinks eagerly
And
despairingly.
The wind
shifts like this:
Like a
human without illusions,
Who still
feels irrational things within her.
The winds
shifts like this:
Like humans
approaching proudly,
Like humans
approaching angrily.
This is how
the wind shifts:
Like a
human, heavy an heavy,
Who does
not care.
Wallace Stevens, «The Wind shifts» in Harmonium,
1923 (recolhido da "Antologia" ed. Relógio de Água, 2005)
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Tsunicómio II
No dia da sua implantação o presidente da dita nem sequer
pode sair à rua. Não é bonito e não há busto que disfarce o desconforto que
isso devia significar para quem tenha um pingo de sensibilidade e bom senso na
pinha. Não se trata de um efeito secundário da hibernação de soberania em que
vivemos, é importante que se diga, trata-se duma má ponderação do momento que
vive o País. Um presidente que não está próximo do país, mesmo que essa
proximidade fosse litúrgica ou fetichista, perdeu a sua função. Já não é
símbolo, já não é refúgio, já não é inspiração e muito menos referência,
tornou-se um saco de boxe, um desabafador, uma espécie de relvas com estudos.
Com a relação entre cidadão e Estado a ficar reduzida e estrangulada numa
relação de sacador-contribuinte vêm abaixo todos os pilares duma sociedade que
se arrastou nos séculos a tentar eliminar despotismos, prepotências e
iniquidades. O presidente eleito duma República devia dar o peito ao saque e ter consciência
que não está ali por nascimento ou golpe de estado, que tem um compromisso de
lealdade para com aqueles que aqui nasceram sob pena de, com a sua pose, se
tornar num portas de boliqueime. As instituições são importantes quando
significam uma organização de poderes e conhecimentos, quando anulam os efeitos
duma turba raivosa ou duma facção sinistra, quando fazem a ligação entre cada indivíduo e todos os indivíduos. O Presidente da República Portuguesa não pode
ser o Administrador duma Fundação de Senadores. Para ser a salvaguarda dos
direitos das pessoas não basta a representatividade, é exigível a comunhão. Ora
actualmente a comunhão que se vive nem mística é, resume-se a um solilóqio num qualquer pátio da galé. E cá fora o povo feito ralé.
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Tsunicómio
Um dos paradoxos básicos da eficiência é que: o mercado será tanto mais eficiente quanto
menor for o nível de eficiência apercebido pelos investidores. Foi como que apostando numa extrapolação teórica deste
paradoxo que muitas medidas orçamentais foram sendo tomadas: os contribuintes iriam eficientemente na onda
porque não percebiam o que estaria realmente por detrás da coisa. Alguma ignorância era assim uma variável
importante do modelo. Mas
aparentemente incorporamos um tal nível de ignorância que faz dar a volta aos
ponteiros do modelo e demos cabo dele. Nem os paradoxos resistem.
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Windianápolis
Who has
seen the wind?
Neither I nor you:
But when the leaves hang trembling,
The wind is passing through.
Who has seen the wind?
Neither you nor I:
But when the trees bow down their heads,
The wind is passing by.
Christina Rossetti, in «Who Has Seen the Wind?», The Complete Poems (Penguin Classics, 1993, p. 143)
Neither I nor you:
But when the leaves hang trembling,
The wind is passing through.
Who has seen the wind?
Neither you nor I:
But when the trees bow down their heads,
The wind is passing by.
Christina Rossetti, in «Who Has Seen the Wind?», The Complete Poems (Penguin Classics, 1993, p. 143)
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Ó da Guarda
Face às várias espirais e cornucópias do momento (recessiva, depressiva e
sodomitiva) o Reino dos Céus teve de reavaliar a sua ancestral estratégia para
os Anjos da Guarda. Foi assim devidamente empossada pelos Arcanjos Miguel e
Gabriel uma Comissão para a Análise do Papel do Anjo da Guarda Durante o
Resgaste e elaborado o respectivo livro branco.
Deste documento irei destacar alguns excertos das conclusões
que, dalguma forma, poderão dar uma iluminação a todos nós, designadamente no
nosso posicionamento face ao oculto, o desconhecido, e a todos os modelos
econométricos em geral, com ou sem projecção arenoso-ocular.
(...) A existência dum único modelo de simulação de Anjos da
Guarda para Portugal revela-se ineficiente pois
parece haver uma movimento axífugo nas ânsias mais elementares da alma
portuguesa que apresenta uma notória pendularidade entre: vontade de espetar um
ferro em brasa pelo cú de todo e qualquer governante e assimilado, ou pura e
simplesmente desprezá-los e viver cada um sua vidinha como se nem sequer o
medina carreira existisse. (...)
(...) O cluster dos Anjos da Guarda tem vindo a perder peso
junto do Grande Senado do Criador em detrimento dos sectores dos Santos
Protectores, das Senhoras das Ladeiras, do Imaculado Chip do Tablet, e até inclusive, nos últimos tempos,
para a própria Fundação dos Beatos Graxistas (...)
(...) Um Anjo da Guarda em ambiente de austeridade &
saque orçamental pode assumir diversas formas de posicionamento: a)
neutralidade orçamental: o Anjo não influencia o comportamento fiscal do seu
protegido e apenas o ajuda a suportar o fardo da colecta; b) racionalidade
orçamental: o Anjo dá indicações ao respectivo penitente para qual catacumba
fiscal se deve pirar face a cada imposto específico; c) ilusionismo orçamental:
o Anjo com o seu diáfano manto cobre o pecador e garante-lhe uma invisibilidade
fiscal de cartola (...)
(...) O Anjo da Guarda de Portugal deve providenciar a
adesão ao pecado único. Assim, um português só deve considerar que está em
pecado por única falta fiscal, podendo dar-se o cúmulo penitencial logo após a
primeira multa de estacionamento não paga (...)
(...) Para que um país como Portugal se possa defender
devidamente de: secas, reality shows, coligações politicas em fase de broche
assistido, politólogos, rotundas múltiplas e todo um rodízio de Altas Autoridades
, o Anjo da Guarda deverá fazer a geminação com um buda em faiança para o que
der e vier (...)
(...) Os Anjos da Guarda de todos e quaiquer países deverão ter um representante nos modelos econométricos que estejam a ser utilizados nos respectivos ministérios
das finanças e bancos centrais; estes seus avatares estatísticos, para além de terem de apresentar um relatório
discriminado por cada movimento brusco que seja detectado nas derivadas das
equações, deverão imediatamente provocar um curto circuito nos postos de
transformação do ministério (...)
(...) Sempre que estejam a ponto de ser introduzidas medidas
parvas, quer por imposição de troikas, de casais de holdings em swing
fiscal, ou mesmo de grupos de sueca, quer mesmo por simples imbecilidade
endógena, o Anjo da Guarda deve providenciar um fenómeno de natureza tsunâmica
que, para além de colocar vários ministros isolados em cima dum telhado de
Alfama, de caminho enfie o crespo numa fresta da muralha fernandina ou
definitivamente a entrevistar baratas na dispensa do capitólio. (...)»
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