As anotações de um picheleiro dos afectos

Caderno 1 - Tratado de educação sentimental para homens bons

3º capitulo - Balona de calibre

Devemos agora fazer uma pequena derivação pelos mecanismos de dissonância cognitiva que actuam na psique masculina em plena destilação no alambique amoroso.

O homem bom e saudável está plenamente convicto que ser amado pela mulher que o destino lhe atribuiu é um direito que lhe assiste, mas, paralelamente, sabe que tem de lutar por essa propriedade, perdão, esse tesouro. É da turbulência desta ambivalência que resultam as primeiras reacções imprevistas e arriscadas por parte do homem. Assistem-se assim a momentos em que o trincar duma bochecha, uma mão deslizando pela parte interior dum cós, ou mesmo uma onomatopeia mais arrojada, assumem a forma que o homem bom escolhe para testar se já está numa fase de usufruto ou se ainda tem de continuar a porfiar na fase de conquista mas com a armadura já toda escavacadinha.

A mulher parece então que foi treinada desde a fase das gâmetas para agir nesse momento como se duma guerreira mongol enxertada de druida se tratasse. Oscilando entre os risinhos que pretendem simular o nervosismo da entrega total, e os movimentos esquivos que procuram inflacionar o preço do activo em especulação, a fêmea, cientificamente programada, leva o homem bom para o território em que ele se enterra que nem um hipopótamo ganzado em areias movediças: a dúvida movida a entusiasmo.

Sabendo-se entre a possibilidade de ser trocado a qualquer momento por outro que o destino tenha seleccionado como suplente, e a possibilidade de ser ele próprio o suplente, o homem bom pressente constantemente um adversário invisível e é levado a cometer os chamados ‘movimentos helicoidais do ciúme’. Ora contraindo desesperado por profunda convicção de cruel abandono, ora distendendo investido da confiança infinita dum ser eleito, o homem bom rumina angústia com empolgamento, acabando por provocar na fêmea uma canseira só semelhante à que acumula no período dos saldos.

Ora é nestas fases que se assiste igualmente às grandes clivagens semânticas. O homem bom quer paleio extensivo, quer explicações, quer confirmar as suas teorias sofisticadas de fidelidade, sofrimento e correspondência, e a mulher basicamente acha que está a correr o risco de inversão de papéis: ela é que está ali para lhe encaramelar o juízo e não o inverso.


Quando o jogo amoroso já está numa fase de troca de fluidos, geralmente é à base da hidráulica que o equilíbrio é reposto, mas quando a metafísica da relação ainda não tenha saído do espartilho escolástico, o equilíbrio é obtido com juras clássicas de amor eterno, unicidade & exclusividade afectiva e, nos casos mais desesperados, a ajuda de catalizadores líricos de rima facultativa.

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