Uma questão de rimas
Não fora a tentação incontrolável de começar o dia experimentando o novo bâton Addict da Zulmira e diria que tudo voltara à mais perfeita e razoável normalidade. Bom, à Maria dos Prazeres lá do escritório olhei-a como se fosse a primeira vez: aquelas pernas a espreitar por baixo da secretária afinal não são roliças mas gordas e as, até ontem, angelicais madeixas loiras têm mais raízes à vista que um mangal em maré vaza! Ainda me passou pela ideia convidá-la a uma voltinha rápida de fim de tarde a ver as novidades da saison ali mesmo pelo ElCorte mas acabei por preferir o subestimado Umbelino. Nunca tinha reparado com atenção no moço (vê? não disse 'gajo'): o moreno mate a emoldurar os olhos cor-de-água e o sorriso tímido de "gato-das-botas" da pixar só me faziam vir à ideia que, entre três encadernações e vinte e quatro fotocópias de remessas congeladas, teria de seguir o conselho que um dia me dera e trocar os suplementos e brindes dos jornais pelo Gógol. Sempre tive um fraquinho inexplicável por intelectuais, admito. Aprecio-lhes a palidez e a fragilidade muscular, estimo-lhes a resiliência e a tosse encavada, louvo-lhes a paciência para a música minimalista ou atonal e fascino-me com as frases longas, pensadas, elaboradas como facas de papel a cortar a respiração. Quando o disse ao Lino (gosta que o chame assim), ainda meio envergonhado por esta súbita confidência, respondeu engolindo à pressa o pastel de bacalhau já a pingar-lhe gordura através dos dedos para a camisa "Sem ti...". Sem palavras, ainda fui à procura de um guardanapo para sacudir a nódoa maior mas só consegui entornar-lhe o café no colo antes de ele me ter dito "E de súbito desaba o silêncio." Respinguei logo "Não foi o silêncio que desabou, foi o óleo!". Olhou-me compassivo, com aquela infinita tolerância que se reserva aos pobres de espírito ou às crianças "É um silêncio sem ti, sem álamos, sem luas." Resignei-me à epifania do impensável: o homem era um poeta! E subitamente todas as vezes que, no passado, nos cruzámos, agachados, a substituir o tabuleiro das A4 no fotocopiador ou, empoleirados, a pregar punaises no placard das excursões a Torremolinos tornavam-se agora momentos de uma história única. Peguei-lhe nas mãos e ia revelar-lhe toda a minha compreensão quando o ouvi dizer "Só nas minhas mãos... ouço a música das tuas." Engoli em seco, o homem era um artista! Por alturas do Euro já tinha lido umas rimas daquelas num pacote de açúcar, acho eu, e devia ser bom porque lá dizia que eram de um tal Andrade (até penso que o primeiro nome era Eugénio mas não conheço muitos nomes de jogadores). E foi aí que comecei de novo a marear e a ver tudo vermelho: lá fora o sol caía tão depressa como se caísse no "coração do dia".
Não fora a tentação incontrolável de começar o dia experimentando o novo bâton Addict da Zulmira e diria que tudo voltara à mais perfeita e razoável normalidade. Bom, à Maria dos Prazeres lá do escritório olhei-a como se fosse a primeira vez: aquelas pernas a espreitar por baixo da secretária afinal não são roliças mas gordas e as, até ontem, angelicais madeixas loiras têm mais raízes à vista que um mangal em maré vaza! Ainda me passou pela ideia convidá-la a uma voltinha rápida de fim de tarde a ver as novidades da saison ali mesmo pelo ElCorte mas acabei por preferir o subestimado Umbelino. Nunca tinha reparado com atenção no moço (vê? não disse 'gajo'): o moreno mate a emoldurar os olhos cor-de-água e o sorriso tímido de "gato-das-botas" da pixar só me faziam vir à ideia que, entre três encadernações e vinte e quatro fotocópias de remessas congeladas, teria de seguir o conselho que um dia me dera e trocar os suplementos e brindes dos jornais pelo Gógol. Sempre tive um fraquinho inexplicável por intelectuais, admito. Aprecio-lhes a palidez e a fragilidade muscular, estimo-lhes a resiliência e a tosse encavada, louvo-lhes a paciência para a música minimalista ou atonal e fascino-me com as frases longas, pensadas, elaboradas como facas de papel a cortar a respiração. Quando o disse ao Lino (gosta que o chame assim), ainda meio envergonhado por esta súbita confidência, respondeu engolindo à pressa o pastel de bacalhau já a pingar-lhe gordura através dos dedos para a camisa "Sem ti...". Sem palavras, ainda fui à procura de um guardanapo para sacudir a nódoa maior mas só consegui entornar-lhe o café no colo antes de ele me ter dito "E de súbito desaba o silêncio." Respinguei logo "Não foi o silêncio que desabou, foi o óleo!". Olhou-me compassivo, com aquela infinita tolerância que se reserva aos pobres de espírito ou às crianças "É um silêncio sem ti, sem álamos, sem luas." Resignei-me à epifania do impensável: o homem era um poeta! E subitamente todas as vezes que, no passado, nos cruzámos, agachados, a substituir o tabuleiro das A4 no fotocopiador ou, empoleirados, a pregar punaises no placard das excursões a Torremolinos tornavam-se agora momentos de uma história única. Peguei-lhe nas mãos e ia revelar-lhe toda a minha compreensão quando o ouvi dizer "Só nas minhas mãos... ouço a música das tuas." Engoli em seco, o homem era um artista! Por alturas do Euro já tinha lido umas rimas daquelas num pacote de açúcar, acho eu, e devia ser bom porque lá dizia que eram de um tal Andrade (até penso que o primeiro nome era Eugénio mas não conheço muitos nomes de jogadores). E foi aí que comecei de novo a marear e a ver tudo vermelho: lá fora o sol caía tão depressa como se caísse no "coração do dia".
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