dreamworks

Sentia-se uma personalidade tão rica que decidiu fazer carreira como personagem de sonhos. Chegou então a acordo com um consultório de psicanalistas para participar activamente nos sonhos dos seus pacientes, e, segundo programas bem definidos, apenas cobraria com base nos resultados obtidos. Só pedia dispensa para esquizofrenias violentas, porque lhe faziam mal à vesícula, e evitaria a todo o custo neuroses obsessivas porque lhe secavam muito a pele depois da barba. No resto, seria pau para toda a colher, fosse sonho de homem, fosse de mulher.

As primeiras experiências foram até muito promissoras. Fez logo de playboy nos sonhos duma semi- anoréxica, que reprimia um amor mal consumado com um primo muito afastado e experimentava tosse convulsa quando a humidade lhe atraiçoava a decência. Pois foi um instante enquanto a moça começou a acordar com suores mornos, e depois da terceira semana já estava a beber néctares de fruta a meio da noite. Ao fim de dois meses, depois dum sonho em que ele lhe chegou a chamar ‘flor do meu desejo’, ela levantou-se assarapantada e comeu de enfiada duas sandes de panado com um arroz de brócolos. O sonho estava estragado, mas o corpo dela já se apresentava bem roliço: tinha-se ganho uma mulher para todo o serviço.

Depois desse sucesso fulgurante foi-lhe dado um caso que já se considerava perdido: uma estrela do teatro de revista que se tinha apaixonado por um espectador; precisamente o contrário do que era normal e do que acontecia com as outras vedetas. Quando terminavam as exibições ela tinha imediatamente o impulso de saltar para o colo dele, um tipo enfezado, borbulhento, que nem sequer estava na primeira fila, gostava mais de casas de fados e passava o tempo a comer cajus salgados. Felizmente os papeis exigiam-lhe saltos altos e ela tropeçava sempre antes de se dar o vertiginoso e comprometedor enlace. Mas aquela paixão desgovernada, irracional, absolutamente inoportuna e quase embaraçosa, essa estava lá, e impedia-lhe uma menopausa confortável e livre de urticárias .
Só que em quinze dias o nosso homem-a-sonhos resolveu o assunto. Começou por lhe entrar pelos sonhos dentro fazendo de taxista contando-lhe histórias sobre as divas que já tinha transportado. Entre o enfado e curiosidade – duas traves mestras do espírito feminino – ela lá foi olhando para ele com o carinho crescente de quem suporta as pessoas simples e semi-complexadas como um caminho certinho para ganhar o céu. Certo dia, num sonho de quarta para quinta – os melhores sonhos eram a meio da semana, ainda está a ciência para perceber porquê, mas julga-se relacionado com a ‘quadratura do circulo’ - convidou-o para ir assistir à peça tendo-se ele sentado ao lado do incómodo objecto do desejo e da paixão doentia da paciente em terapia. Apresentavam-se agora ali os dois como rivais no campo aberto do seu onírico libido, um, sabedor do ardor que nela provocava, o outro, apenas tentando passar um bom bocado à borla – mal sabia ela que, naquele sonho, o tipo trabalhava para o psiquiatra à comissão – mas, à medida que avançava o sonho e a revista, ela via a paixão inconveniente desvanecer-se e transferir-se milagrosamente para o taxista. Depois dos encores acabaram por sair os dois de mão dada, mas, ó ingratidão, ele incluiu o tempo do espectáculo no tarifa da bandeirada. E era aí que estava o segredo: uma mulher a sentir-se excessivamente cobrada, estava assim a terapia consumada, seguiria a menopausa que nem uma poetisa encartada.

Tudo corria bem ao nosso limpa-psiques, foi-lhe até prometido um aumento, e um dia decidiu empreender numa tarefa mais arriscada. Tratava-se duma mulher demasiado desejada. Não havia homem que não lhe arrastasse a asa, não havia másculo joelho que não se reclinasse perante a sua glamourosa passagem. Só que, assim, não havia maneira de ela gostar realmente de alguém, pois era das que precisava de sentir que conquistava as pessoas contra a tendência inicial, tinha-lhe mesmo sido inculcado que era o desafio que conferia o valor às coisas; exigia uma primeira fase de desinteresse para depois poder ser ela a marcar a diferença com as rédeas duma sedução tão selvagem quanto técnica.

Aquilo pareceu ginja ao amigo penetra-inconscientes-dormentes e até apostou com o psicanalista que em menos de duas semanas de sonhos em regime de dia sim dia não – seria atar e pôr ao fumeiro - ela até se iria apaixonar pelo filho do porteiro. Na primeira semana apareceu-lhe nos sonhos a fazer-se de rapaz da tv cabo. Solícito, competente, modos brandos, tratava-lhe dos canais, mudava as pilhas dos comandos, e pouco mais, nem um olhar, nem uma insinuação, a chave de fendas parecia-lhe colada à mão, nem a chamava de ‘minha rainha’, pois sendo um profissional de sonhos, não lhe poderia saltar para a espinha.

A coisa ia correndo tal como previsto, até que a meio da segunda semana, ela deu dois goles numa gasosa, comeu meia banana e adormeceu assim para o nervosa. ( eu não resisto a estas rimas foleiras, sorry, há gajos que gostam das fotografias do Mapplethorpe, a outros encarquilham-se-lhes os boxers nas virilhas, a mim dá-me para isto). O nosso homem entrou confiante no sono mas não estava preparado para uma mudança de atitude da paciente: agora só lhe interessavam os canais de musica, não tinha paciência nem para enredos nem para notícias. Assim ser-lhe-ia mais difícil sacar duma graçola, ou mesmo duma opinião bem esgalhada, teria de socorrer-se dum truque de estalinhos de dedos, uma coisa até um bocado fodida, mas que tinha aprendido na tropa no intervalo da ordem unida. Má ideia. Os psicanólogos deviam-no ter avisado que as mulheres sofisticadas acabam por se encantar com distracções simples e monocórdicas, até lhe chamam o síndrome da philipgrasstapia. Foram tarde. O gajito queria safar-se do sono, prescindia da comissão, prescindia do aumento, mas ela, entre a azia e o enfartamento, suplicou-lhe: fica, farei poesia da tua fraca prosa e dizemos ao médico que foi da gasosa.
Ele queria bazar, até tinha já um sonho apalavrado com uma pivot da televisão que julgava que era a mulher borracha e não se podia esticar muito. Nada a fazer. Ela estava pelo beicinho e não havia maneira de acordar, e, não fora a net cabo estar sempre a falhar, e ele ter prometido confiar-lhe os seus segredos, ainda agora estava a estalar os dedos.

Manteve-se no negócio, mas passou a escolher melhor os sonhos e as terapias: mulheres só com pouco apetite e alergia a carnes frias, e , quando já tivesse um bom pé de meia, evitar as que adormeciam de barriga cheia.

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