E agora um flic flac à rectaguarda

O regressado Eduardo Prado Coelho, ainda em regime de aquecimento, hoje, no Público, e a propósito da ambivalência da expressão ‘seu’ (uma das estrelas do affair inglêstécnicogate) diz que esta tanto poderá significar ‘máxima proximidade’ como ‘máximo distanciamento’ - ambivalências destas que até Freud já teria explicado e Picasso pintado (esta acrescentei eu).

Este toque entre extremos povoa a nossa vida desde o mais comezinho até àquilo que ela tem de mais profundo, desde o que ela tem de mais óbvio ao que ela tem de mais misterioso.

Evitando trazer para aqui o mecanismo ‘do religioso’ (Deus será por excelência o ser mais próximo e mais distante em simultâneo, e isso determinará a enorme diversidade que apresenta a relação que os homens têm com Ele) penso que nas relações humanas mais intensas também se vive essa estranha realidade do quanto mais próximo mais longe. E isto porquê?

1) Porque, ao não haver amor/amizade sem posse (o ‘seu’, lá está), e a posse encerrar em si também os dois extremos: a sedução extasiante de nos entregarmos a alguém de quem se gosta (se pensarmos bem, percebe-se o prazer físico que podem experimentar os místicos por se entregarem completamente nas mãos de Deus) e o receio de podermos ficar afectivamente dependentes de alguém.

2) Porque a intimidade é um estado algo doloroso. Já a ciência voltou a estar na moda avisar-nos que quanto mais avança mas afastada parece estar, pois também quanto mais próximos podemos estar de alguém- às vezes até parece que podemos respirar, pensar por ele - é muito comum aumentarem os níveis de incerteza porque se vai cada vez mais caminhando por ‘zonas’ nunca experimentadas em conjunto e, tantas vezes, até desconhecidas para cada um individualmente, o que provoca aquelas sensações tão comuns do ‘parece que nem te conheço’.

3) Todos temos algum medo de nos conhecermos totalmente, todos precisamos de ter uma fronteira mais bem desenhada quando há o risco de ‘excesso de cumplicidade’. É um clichet dizer que gostamos de guardar ‘coisas’ só para nós e gostamos que os outros possam ter ‘as coisas que são muito dele’ pois só assim se manteria aquela chama da surpresa e da revelação, aparentemente imprescindíveis para alimentar uma relação profunda e rica (outros dois conceitos também tão cheios quanto vazios, assinale-se).

(atenção vou abandalhar isto, já aguentei certinho mais de 25 linhas)

Basicamente estamos rodeados dum variado sortido de fodasses:

a) o coração é um organismo bastante comercial. Aprecia a exclusividade, arrepia-lhe a concorrência, exige sempre mais, detesta/adora dar garantias, precisa de clientela estável.

b) ’o outro’ não existe. É uma construção da filosofia moderna à falta de temas novos. Interiormente, os outros somos nós mas vestidos de outra maneira. Amamos outra pessoa porque queremos ser amados. O outro apenas suprime aquilo que nós não conseguimos dar a nós próprios; é um apêndice sentimental. Um anexo.

c) a rejeição é a única forma de nos conhecermos. Sermos preteridos, sermos ‘não escolhidos’ é condição essencial para a nossa construção. Quem nunca se sentiu abandonado por Deus o melhor que tem a fazer é enfrascar-se em comprimidos. Quem olha para quem ama e não vê alguém que o pode perfeitamente mandar às ortigas dum minuto para o outro, bem pode enfrascar-se em comprimidos também.

d) não há amores impossíveis. Há é gajos impossíveis de aturar.

e) na economia das relações há por vezes um recurso que inesperadamente se revela escasso: é a possibilidade. Ou seja, há sempre um momento crítico em que alguém pensa: ‘não é possível que gostem de mim assim tanto’. Lá está, muitas vezes gostarem muito de nós até parece que atrapalha. Dizem os psicologismos da moda: «todos precisamos de espaço». Mas eu acho que todos precisamos de vez em quando é de espaço para levar com um paninho encharcado nas fuças, no fundo, o verdadeiro simplex de toda a economia afectiva.

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