Quaresma XXXVI

Apenas porque isto é, sem dar muito nas vistas...

«Nesse mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo o cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas, à porta da desgraça.»

... sem cânones de serviço, sem eu saber explicar bem porquê, um dos momentos mais densos da literatura de todos os tempos. A. Camus, em ‘O Estrangeiro’, «seco e nítido« como diz Sartre na Introdução.
E, apesar de não ter cão, «espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu»

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