Lançamentos Exemplares


A editora Choco com Tinta tem o prazer de anunciar que vai lançar o livro de prefácios de Ernesto Mourão, intitulado: 'O que nos traz a Culatra'. Neste Volume estarão reunidos os mais representativos prefácios escritos por Ernesto para os vários autores da Choco em quase 3 anos de colaboração íntima e cúmplice. Sem os seus prefácios a literatura Portuguesa estaria órfã, e mesmo que a controvérsia neles esteja sempre presente, não é por acaso que se fala do prefácio antes e do prefácio depois de Ernesto. Passando também a partir de agora a contar com toda a obra de ficção de Ernesto Mourão no nosso Catálogo, julgamos estar a dar a uma das vozes mais singulares da nossa escrita o espaço de liberdade e afirmação que ele merecia e ansiava. Aproveitamos também para agradecer à editora Mosca Morta, agora integrada no grupo Derrapagem, pela forma cordata e justa como tratou connosco desta transferência que já se prenunciava.

excerto da nota de impressa emitida pela Choco com Tinta e difundida pela agência Reuters em Abril de 2014

Comunicações Exemplares


Na sequência do uso abusivo de citações de Oscar Wilde por algumas editoras, designadamente a Mosca Morta e a Fuligem, a Associação Portuguesa de Epigrafistas decidiu iniciar um boicote a este autor até que sejam respeitadas a quotas instituídas pelo Registo Nacional de Frases de Belo Efeito ( o RENALFABETO). Depois de termos ultrapassado o período conturbado da liberalização da epígrafe, que deu origem ao fenómeno que ficou conhecido como o subprime de zaratrusta, com uma proliferação abusiva de frases de Nietzsche que se vieram a confirmar ser afinal do Sr. Marco Alberto, vemo-nos agora confrontados com uma concentração excessiva de epigrafes num único autor que, não só viola o principio básico da concorrência entre citados, como lança no descrédito o trabalho do 'Vasculhador de frases de belo efeito', uma profissão que deve merecer o maior apoio de toda a sociedade, necessitada que está cada vez mais de referências e pontos de apoio. Assim, a partir de hoje e por tempo indeterminado, a todo e qualquer autor ou editora que apresente epígrafes de Oscar Wilde sem a devida autorização e registo prévio conforme o regulamento, ser-lhe-á movido um processo administrativo de 'violação das regras do belo efeito' pela nossa Associação. No que diz respeito ao caso pendente do Sr. Raimundo Múrcia, referente à epigrafe 'Desde que uma mulher aparente ter menos dez anos que a filha, sentir-se-á sempre satisfeita' que estava em apreciação para o seu novo romance 'Purificação', acabado de publicar pela Mosca Morta, será despachado favoravelmente atendendo ao estado de debilidade emocional do autor depois de mais uma sinopse mal conseguida com Simone Bolina.

in Boletim do Epigrafista, 4ª Trimestre de 2014

Apoio à Leitura

Necrologias exemplares


Faleceu de morte súbita, à primeiras horas do dia de hoje, o escritor Dário Carneiro que contava com 61 anos. Com uma vida dedicada a elevar a ficção a patamares e alçapões pouco experimentados pela ficção nacional, Dário teve no seu último romance 'Infernizar' , editado pela Choco com Tinta, um êxito de vendas que o levou a ser traduzido em mais de 20 línguas, 5 dialectos e 3 sotaques. Iniciou a sua carreira como promotor de vendas na Rosicler, mas rapidamente os seus contos foram notados por Nelson Barbosa, o famoso editor da saudosa Cacimba, que o trouxe para a ribalta e que culminou com a atribuição do prémio Pingo Doce das Letras em 2013. Pelo meio ficou a sua turbulenta relação com Custódia Passos (a autora do agora reeditado 'Sorte Macaca') que provocou o suicídio desta, num caso ainda por explicar e que envolveu o estranho desaparecimento da pilinha de Flávio Cossaco. A sua obra influenciou bastantes romancistas e produtores de folhetos de promoções da nova geração de cartões de pontos, e na academia também era olhado com admiração por todos os quadrantes e bissetrizes. Era muito cuidadoso nas suas entrevistas, recusando-se sempre a ser filmado de estômago vazio (dizia que era o espelho da alma) e sempre foi um menino amado da crítica que chegou a chamar-lhe o Bisonte das Letras, pela forma apaixonada, (ou obstinada, conforme a zona que o corno atingia) como defendia as suas figuras de estilo, das quais acabou por ser escolhida esta para epitáfio: 'Agora dei nisto'.

notícia publicada no Semanário Vénus, em Novembro de 2014

Fofocas Exemplares


«Depois dos êxitos tão retumbantes como inesperados dos últimos títulos da chancela Mosca Morta, aos quais não foi certamente alheio o caso amoroso e escaldante entre Simone Bolina e Flaubert Queirós ( que chegou a publicar o bestseller 'Colchão de Noiva' na já extinta Cacimba), os accionistas do Grupo Derrapagem assinaram um memorandum de entendimento visando a absorção da Mosca Morta, por troca de acções com a sua filial Fuligem. Dois editores desta última já reagiram e mudaram-se para a Adamastor, que agora passará a contar no seu portfólio com mais nomes sonantes do chamado romantismo esclerótico, a corrente literária que a trouxe para a ribalta, iniciada por Salvador Alves Arinto com o seu título emblemático 'As minhas cruzes'. A comunidade literária aguarda com expectativa estas mudanças, mas a Associação Portuguesa de Epigrafistas já fez saber que tem em preparação um pré-aviso de greve a frases de Nietzsche e Óscar Wilde. A Relações Públicas da Derrapagem, Judite Branquinho, confidenciou ao seu círculo mais íntimo que há grandes expectativas numa nova  trilogia de Raimundo Múrcia, um romance de época baseado nas peripécias da família Saraiva Dirceu, cujo primeiro volume terá um título de criar água na boca: 'Sorve-me', e que tudo leva a crer se inspira em episódios da vida duma conhecida designer de badanas. Surgiram, no entanto, rumores no mercado, no sentido de que estas movimentações visam essencialmente colocar pressão sobre os direitos de autor, e vários analistas do sector já chegam a afirmar que futuramente estes serão pagos em pontos do cartão galp. Aguarda-se ainda com expectativa a posição de Ernesto Mourão que, como é sabido, afirmou recentemente que nunca publicaria na mesma editora que Raimundo Múrcia, depois deste ter sido encontrado a brincar aos prólogos e às sinopses com Suzete Moisés, a vulcânica mulher que levou Raimundo ao altar três vezes nos últimos dez anos, intercalando com Lúcia Parreirinha (a poetisa da Chamusca), e que foi a contratação mais badalada da Choco com Tinta no início da década, quando esta iniciou a sua colecção de mais sucesso, com o título 'No dia em que eu conheci Roger Federer'.»

in 'Badanas e Fofocas', publicado no 'Correio da Bucelas', Março de 2014.



Pormenor do Tecto da Igreja de S. Nicolau, em Lisboa

Plágios Exemplares


Alexandre Felipe Caramelo era o quarto filho do comerciante de retalho de Setúbal, Felipe Paulo Caramelo, que ficou célebre no seu tempo, e ainda hoje recordado, por causa da sua morte trágica, ocorrida há precisamente 15 anos, degolado por Lurdes Felinto, e de que falarei mais tarde. Agora apenas digo que este «comerciante de retalho» era um sujeito estranho, mas desses que se encontram com frequência, um tipo de homem que não só não sabe fazer nada, como é depravado, mas que trata dos seus interesses com uma perfeição de mestre, no fundo a sua única e real qualidade. Felipe Paulo, por exemplo, começou do nada, era um comerciante de pouca importância, fazia-se convidado para as mais diversos festas, introduzindo-se assim em ambientes que normalmente lhe estariam vedados, mas acabou deixando uma fortuna ainda hoje difícil de avaliar. Era também aquilo que hoje se chama um homem excêntrico mas, repito, não o era por estupidez, era-o essencialmente por inaptidão, e ainda por cima dum género especial, de inaptidão nacional, daquele jeito único que temos para não saber fazer nadinha de nada.

in Os Irmãos com Olho de Vidro, de Viviane Lopes, edições Fuligem, 2013

Badanas Exemplares


Carlos Corrimão nasceu no Ribatejo em 1958 e é filho do mártir comunista Feliciano Corrimão. A matéria prima das suas crónicas tem origem no absurdo que é confiar naqueles que se elegem pelo voto - o votómito, expressão por si inventada. O seu estilo inconfundível não deixa margem para dúvidas pelo tom compulsivo e pela estética repulsiva. As suas influências, como ele dizia, devem encontrar-se nas anedotas porcas e na dona zulmira, pessoa que não se chegou a saber se existia na realidade, mas que todos os sinais apontam para ter sido uma freira carmelita a quem comprava maçã reineta no convento de coimbra. As edições Adamastor já tiveram o privilégio de editar o seu livro de contos 'Pauzinhos ao Sol', o seu romance 'O Caril' e prepara-se para editar a sua biografia de Diogo Cão. A presente recolha das crónicas que publicou no Benavente Weekly ( um jornal de teor anarquista entretanto comprado pela holding Huambinova) são uma demonstração de que Corrimão é uma voz luminosa no panorama cultural português, e uma voz sem medo de acreditar na força criativa da desilusão, como ele tão bem expressa nesta frase: «só custa a última vez».

in Carleidoscópio - crónicas em corrimão, de Carlos Corrimão, edições Adamastor, 2014

Prólogos Exemplares


A acção desta Peça decorre na zona da Rua dos Correiros, em Lisboa, e tem como cenários principais um café, uma farmácia e uma modista. Os dois protagonistas principais são Carlos Suiço, um alfaiate reformado que recorda os seus clientes famosos e que se diz detentor da fórmula do modelo de corte universal, e Silvia Mourão, uma empregada de café que está apaixonada pelo filho de Carlos, um ajudante de farmácia que se vê apanhado numa rede de contrabando de genéricos. Luísa L. Saleiro (nunca saberemos o significado do L.) é empregada do gabinete de moda da Dona Armanda Moutinho e tem um caso amoroso com Carlos, que é viúvo e, obviamente, carente, não por ser viúvo mas por ser homem. Luísa tem aspirações a poetisa (talvez por isso o uso do L. com funções estético-enigmáticas) e por várias vezes se vê em situações incómodas com as clientes de Dona Armanda que nem sempre assimilam bem as imagens lirico-simbólicas que Luísa por vezes deixa à socapa nas etiquetas. Tudo se passa na Primavera e , mesmo não sendo uma peça com preocupações de rigor histórico, poderemos dizer que se enquadra numa Lisboa decadente em que Freitas do Amaral é presidente da República, João Salgueiro primeiro ministro, Rebelo de Sousa presidente da Câmara e Mário Crespo director da News of The World.

in No Dia em que eu conheci Kate Moss, de Júlio Paisana, edições Choco com Tinta, 2013

Apresentações Exemplares


Não deixou de ser simpático da parte da equipa editorial da Fuligem terem-me convidado para apresentar este livro póstumo do Rui Filete, mas eu sei que se ele ainda cá estivesse entre nós gostaria que fosse eu a apresentar ao mundo este seu último livro. O Rui a partir de certa altura, como alguns saberão, começou a intitular-se como Ensaísta. Quando a primeira pessoa lhe perguntou por que raio se apresentava ele assim sendo um mero assentador de tacos, ele respondeu ligeiro e sem hesitações que se assumia como um especialista em saias. E de facto era. Disse-me um dia que tinha percebido que as mulheres serviam um pouco mais do que para fornicar depois de uma lhe ter enxugado uma lágrima com uma bordinha da saia plissada e ele ter ficado imediatamente com uma espécie de excitação mas em que a afluência vascular curiosamente se dirigia para o dedo grande do pé. A erecção do dedão grande passou a ser uma espécie de tesão de substituição que, entre outros efeitos práticos o obrigou a começar a ter de usar dois números de sapato acima daquilo que seria recomendado a um excitado normal. Poder-se-ia pensar que esta experiência duma testosterona criativa ficava por aqui, escondida no meio das suas frustrações e demais miudezas, mas não. Dada a sua profissão Rui passava muito tempo rente ao chão e tinha ocasião de apreciar de forma mais ou menos contemplativa as pernas e zonas adjacentes das suas freguesas. As saias começaram a apresentar-se-lhe como uma espécie de ícone ao qual ele não mais enjeitaria devoção e ilusão. Este livro é uma história possível,  uma das dele, desta devoção secreta, e dos seus efeitos tanto no dedão grande como noutro órgão pendular que intermitentemente também se associava ao devoto espasmo apontando tão desesperada como orgulhosamente  para os lambrins. Não resisto a citar já esta passagem em que o Rui reflecte sobre o efeito ensaístico de uma morena de nariz afilado e saia azul ganga: «levei três horas a assentar 5 metros de rodapé pois cada vez que precisava de fazer o movimento de aparafusar uma ripa ela aparecia a oferecer-me uns bolinhos de côco que religiosamente me entregava baixando-se em movimento de afrodite de museu com a sua saia azul de beata a fazer de andor esvoaçante. Nesse momento a aparafusadora bloqueava, o meu dedão arroxeava e eu ficava com uma dor na zona inguinal que tentava disfarçar enfiando o bolo duma só vez na boca, dando-lhe a deixa para um inevitável, «veja lá não se engasgue, Rui», ora eu, que naquele momento já não tinha nenhuma canalização livre de tormento e rezava para que o côco descesse rápido e forçasse os ácidos do estômago a tomar conta de todo o regimento interno, já estava dominado pelo feitiço da sua saia que me corrompia o pensamento que nem uma anestesia cruzada de nandrolona de ciclista. Era uma saia que alargava de repente, justa apenas até onde devia estar justa e depois abrindo-se numa generosa flutuação que faria o tapete de aladino parecer uma tábua de engomar». O Rui foi um escritor de sensações, e descrevia-as como um turista descreve um pôr do sol, ou uma bicha na bilheteira do Louvre. Este é um livro de saias de passagem. Nenhuma o fixou, hoje sabemos, morreu só, talvez a sonhar com um bainha ligeiramente descosida, sobre a qual ele por certo ainda terá tempo de ensaiar junto de alguma estrela plissada.

Excerto da apresentação do livro No Tempo em que os Pirilaus falavam , de Rui Filete, para as edições Fuligem, de 2013, por Gaspar Monteiro. 

Pormenor do tecto da Igreja do Sacramento, em Lisboa

Epílogos exemplares


Raimundo dedicara a maior parte da sua vida adulta a descobrir a fonte tipográfica ideal. Não se tratou de encontrar a que permitia uma leitura mais descansada, ou rápida, ou mesmo esclarecida, mas antes aquela mais inspiradora. Passou horas a fio a testar serifas, hastes, pernas, grossuras, espaços, aberturas, eixos, formas e contraformas, com uma minúcia de relojoeiro e uma devoção de eremita. O seu sonho foi revelar a fonte da sedução, a fonte que desse à palavra mais sentido e que a fizesse entrar na alma do leitor, ora arredondando-a, ora picando-a, ora torcendo-a ou esticando, num esforço quase mediúnico de expressionismo tipográfico para transformar a letra impressa num elixir de comer com os olhos. Procurava letras que se pudessem pegar com as mãos e que cada um pudesse levar ao colo e guardar como pequenos graalinhos, tesouros de efeito e feitio. Chorou porque uma terminação era demasiado grosseira, gritou com serifas que pareciam ouriços, éles que pareciam chouriços, exasperou-se com formas que se acomodavam sem energia, deitou-se em cima de filas de émes e énes que lhe pareciam molas pasmadas, dedicou vês e tês a santos mais que caídos em desuso e quase que sucumbiu à tentação de se enforcar num dê que lhe saía resistentemente bojudo. Quando morreu de pâncreas desfeito tinha um friso de ésses maiúsculos a prestar-lhe homenagem, rendidos ao cume que Raimundo lhes tinha concedido, vaidosos com o seu dorso cavado, corcunda épica, e uma ponta serifada a apontar para o céu.

in A Túlipa Amarela, de Simone Bolina, edições Mosca Morta, 2013

prefácios exemplares

Quando em Janeiro dum ano que já passou Mónica Meireles deixou Felipe Farinha e o trocou pelo inesperado Joaquim Dias, eu estava longe de perceber que esse desenlace iria levar Felipe a uma fase de recreação artística de índole renascentista. Mónica geria a sua relação com ele numa base estruturalóide, ou seja, Felipe representava uma parte bem definida e localizada na sua holística pessoal, com funções e operacionalidades que respeitavam um modelo subjacente, algo entre um sistema operativo e uma rede de hormonas, caprichos, racionalidades avulsas e cartilagens. De forma quase implícita a vida em comum cumpria rituais, regimentos, rotinas que funcionavam como que bebendo duma norma iso dedicada a conjugalidades. Liberto dessa programação, mesmo que pela via da estruturação de apêndices ósseos frontais, Felipe, em vez de se entregar à depressão inerente ao abandono ou à luxúria decorrente da emancipação, dedicou-se a elaborar frescos de memória destinados a misturar cenas luminosas com sentimentos degradados, como se fosse um giotto brueggelizado. O romance que resultou deste estado de espírito, - sim, porque dum estado de espírito se tratou, o corpo nada teve a ver com o assunto - apresenta-se aqui como um harmonioso aparvalhamento de alma, uma sequência fatal de instantes que se movimentam em torno dum caos consentido e até acarinhado. Com Mónica sempre a espreitar em cada canto do enredo Felipe constrói um desembarque afectivo em que cada sentimento que aterra na alma do protagonista é imediatamente recebido com uma salva de dúvidas e inquietações. Só não sufoca porque tem uma grande cobertura aérea. O ar do tempo é de que nada vale um desencanto e tudo vale uma frustração.

de Frederico Galo Basto, in Istmo de Sangue, de Ernesto Mourão, edições Derrapagem, 2014

epígrafes exemplares


The forward violet thus I chide:
'Sweet thief, whence didst thou steal thy sweet that smells,
If not from my love's breath

de W. Shakespeare, soneto nº99, in O Alperce e a Nêspera, de Marco Alberto, edições Choco com Tinta, 2013

Sinopses exemplares


Álvaro Gaspar apenas fora realmente feliz enquanto vendia automóveis em múltiplas mãos. O que ele se deliciara-se a fazer recuar conta quilómetros, a falar dumas pastilhas de travão trocadas à pressa como se dum turbo em folha se tratasse, e a disfarçar riscos de pintura com misturas químicas que fariam inveja a prémios nobel. Quantos romances de amor não tivera de escrever mentalmente para enfiar uma carrinha ao preço duma limusine, «oh se este banco de trás falasse», passara a ser uma das suas palavras de ordem quando as mudanças automáticas lhe vieram reduzir o efeito dos trocadilhos com as manetes. Não que aqueles tempos em que fundou a seita de adoradores de tubérculos não tivesse sido também recompensadora, mas ao ser esse o critério mais importante nada se teria assemelhado aqueles meses gloriosos em que manteve a coluna semanal sobre aplicações financeiras alternativas num jornal electrónico especializado em roupa íntima feminina. Chegou a ter mais cartas que o consultório sentimental, e as semanas que se seguiram ao seu artigo sobre o efeito dos desenhos das cuecas com joaninhas nos yields das obrigações a 25 anos de empresas petrolíferas trouxeram-lhe uma fama só comparável à de Mota Assunção, um cobridor de eslovacas que ajudou a fundar uma maternidade em Kosice sem o recurso aos fundos estruturais e que inventou a expressão: quem tudo qren tudo perde.

por Olegário Pinto, sobre 'Os Novos Charlatães', de Rebelo Mendes, edições Adamastor, 2013


Pormenor do tecto da Basílica dos Mártires, em Lisboa

Últimos Parágrafos #8


«No dia em que o circo fechou, Julio Facada levou a sua cadela ao veterinário para a desparasitação, era um luxo para as circunstâncias do momento, mas Filipinha seria tratada como uma princesa até que lhe fosse possível. Já Rogério Fantasia dedicou as suas últimas horas na tenda gigante a limpar as bostas de Filipão, o Elefante mais velho e amestrado, que conseguira vender à justa a um circo checo e que tinha andado de diarreia nas últimas semanas, sensibilidades de animal, nada que não tivesse também acontecido a Nabucodonosor, um tigre com sete anos que acabou por ser praticamente oferecido a uma empresa de eventos e publicidade que tinha várias contas para multinacionais de champô. Enfim, a bicharada praticamente toda tinha encontrado um destino decente, até a dupla de macaquinhos, Saraiva e Gonzaga, tinham conseguido impingir a um contrabandista de animais ali com uma loja de fachada de selos e moedas junto à Paiva Couceiro. Aparentemente tinham ido num lote com três catatuas e um pavão roubado no jardim da estrela para um condomínio privado de banqueiros islandeses na Escócia. O que se aproxima mais da vida é o circo, todos na hora da despedida se lembravam desta máxima do fundador do circo, o velho Mariano Cacete, um equilibrista, mágico e faquir como o mundo nunca mais vira igual e que ainda hoje põe as velhas do lar todas malucas, ali num edifício rosa velho junto do Poço do Bispo, quando pega em três garfos e levanta a dona Zulmira à altura do candeeiro da sala da televisão enquanto o Goucha entrevista um sacristão de Tondela que faz tarte de maçã com os restos das hóstias que se desfazem antes de consagrar.»

in Sorte Macaca, de Custódia Passos, edições Choco com Tinta, 2013

Últimos Parágrafos #7


«A primeira varejeira apareceu muito antes de os primeiros vermes terem sido avisados da ocorrência. Os raios do último sol do dia refractavam pela janela dentro e incrustavam-se nas cartilagens mais expostas criando aureolas dum brilho de cristal. A boca mantinha-se aberta parecendo reter uma frase espirituosa, o olhar era ainda de interesse pela vida mas a postura do tronco já desenganava qualquer diagnóstico mais optimista. A tripa ondulada esboçava um tímido assomo pela fresta que se abria no imponente ventre mas não chegava a instigar nenhuma curiosidade mais exigente. Quando a luz da Lua grávida despontou, um serviço de porcelana ainda a desenvencilhar-se do embrulho quis recebê-la com a distinção que merecia, mas deitada na bancada pouco mais havia que aquela bela cabeça de pescada.»

in Colchão de Noiva, de Flaubert Queirós, Edições Cacimba, 2013

Últimos Parágrafos #6


«A memória dos seus beijos era já uma coisa longínqua, mal os distinguia de simples amostras de perfume, perdera para sempre aquela sensação única do contacto, fosse tímido fosse brutal, com a sua pele, o coração desabituou-se de batidas galopantes e nunca mais teve apertos de peito provocados pela espera, pela aproximação da despedida, pelo anúncio da chegada. Regressava agora ao ser amorfo do qual pensara nunca mais vir a pertencer, teve de repescar uma essência perdida, vasculhar nos confins da capacidade de nada sentir e voltar a militar na suas teorias de desprendimento científico. Teve-a ali, nas suas mãos e deixara-a fugir, nem sabia se para outro se para ninguém, só sabia que já não a tinha, o resto não interessava, descobrira que o nada é afinal a outra face do tudo num mundo onde o meio termo é uma ilusão de óptica.»

in Fim de Tarde, de Salvador Alves Arinto, edições Fuligem, 2013

Últimos Parágrafos #5


«Comprou finalmente o seu direito a ser escravo por duzentos dólares. A vida livre trouxera-lhe dissabores dos quais nunca se soubera desenvencilhar de forma conveniente e ficara com frequência encurralado entre escolhas várias. Encruzilhadas, Bifurcações, Alternativas, Opções, de tudo isso ficaria agora dispensado, pagava para que decidissem por ele, era a melhor aplicação para as poupanças que lhe restavam. Quando Philip lhe perguntou se não viria a ter saudades de ser livre, respondeu-lhe com um sorriso condescendente que a liberdade apenas lhe servira para ter comido gelado de pistacho quando afinal baunilha teria sido mesmo a melhor escolha. Só a escravidão lhe permitiria apreciar a desilusão como destino e o destino como ilusão. Comprou roupa nova com os seus restantes cem dólares e entregou-se a uma instituição pública como funcionário para todo o serviço. Tomariam conta dele como numa utopia comunista falida, e fariam novamente doutrina consigo. Adquiriria estatuto de case study e daqui a uns anos certamente um econometrista em busca de fama se haveria de lembrar dele para tomar conta de alguma abcissa.»

in Purificação, de Raimundo Múrcia, edições Mosca Morta, 2013

Últimos Parágrafos #4


«O diabo saiu-lhe do corpo pelas três da tarde. Aproveitou e foi beber uma cerveja bem gelada testando de caminho em que estado lhe tinham ficado as entranhas. A primeira sensação foi boa, afinal o diabo deveria ter passado o tempo apenas em zonas mais subidas, e o paladar também não o traiu, exceptuando um certo travo exagerado, mas esperado, a enxofre. A ultima golfada foi acompanhada duma ave-maria mental, uma espécie de oração de circunstância mas eficaz. No pires ainda jaziam uns quantos cajús, que de forma súbita começaram a exalar um odor bafiento e acre. O diabo esconde-se nos aperitivos, riu-se. Sentia-se verdadeiramente aliviado, tinham sido dois anos de convivência controlada com o maligno, sem subsídios, sem nenhuns apoios, contra a opinião de todos, sem nunca saber ao certo onde estava metido, diga-se, mas guardara a última moeda no forro das calças para o exorcismo e vencera a tentação de a trocar por um arroz de lampreia; afinal um arroz de lampreia não passa dum arroz de lampreia e uma alma sem diabo ainda é um mar de oportunidades.»

in Infernizar, de Dário Carneiro, edições Choco com Tinta, 2013

Últimos Parágrafos #3


«A graxa já estava em grânulos, muitos anos tinham passado desde a última vez que tinha aberto aquela lata. Olhou para os sapatos castanhos com a mesma complacência com que tinha escrito a sua carta de demissão, e tomou consciência de que começara agora a ser mais um homem a carregar a sua insignificância, despido da influência que tinha exercido de forma implacável. Quase por reflexo cuspiu para o coiro seco e reparou que afinal quase tudo precisava duma boa cuspidela antes de ser começado.  Imolara-se no fogo do esquecimento para salvar a pele a um presidente eleito por meia dúzia de votos manipulados, mas quem cospe por último cospe melhor, foi a resposta final da sua consciência bem treinada para produzir consolações de recurso.»

in Surto de Sorte, de Jaime J. Jardim, edições Derrapagem, 2013

Últimos Parágrafos #2


«O ranho corria-lhe agora sem cerimónias e quando, por fim, recolheu o sal de duas lágrimas que ainda deslizavam como que perdidas, já nem estranhou a falta da saliva, que entretanto ficara retida na represa de entre-lábios, secos, tão secos eles estavam de não ver boca alheia ia para mais de vinte horas, incluindo as duas do sonho que Sofia levava. Quando Bartolomeu chegou, inclinou-se, e perante aquele panorama hídrico encolheu os ombros, virou-se para uma mulher de olhos brilhantes que o controlava em espera técnica, abraçou-lhe a cintura vindo de estibordo e levou-a para a proa. Já o sol nascera e Indira vencera.»

in Mangericão e Coco, de Vasco Dias, edições Adamastor, 2014

Últimos Parágrafos


«Carlos desceu então as escadas, deu-se ainda ao cuidado de olhar para cima, pôs as mãos cuidadosamente nos bolsos e só depois de respirar quase piedosamente fundo saiu para a rua. Foi recebido por uma chuva cinematográfica, mas sem táxi a parar à porta, pelo que teve de esperar dois literariamente infindáveis minutos. Teria sido um crime passional, uma precipitação, uma negligência, o resultado duma indiferença moral, não sabia. Os advogados que decidissem. Para ele chegava-lhe uma consciência pesada, afinal de contas nunca se dera bem com a alma limpa. Só o crime pondera, disse por fim ao taxista, e é para o Beato, mas não vá pelo rio, por favor.»

in Ruído e Sombra, de Flávio Cossaco, edições Fuligem, 2013