A editora Choco com Tinta tem o prazer de anunciar que vai
lançar o livro de prefácios de Ernesto Mourão, intitulado: 'O que nos traz a Culatra'.
Neste Volume estarão reunidos os mais representativos prefácios escritos por
Ernesto para os vários autores da Choco em quase 3 anos de colaboração íntima e
cúmplice. Sem os seus prefácios a literatura Portuguesa estaria órfã, e mesmo
que a controvérsia neles esteja sempre presente, não é por acaso que se fala do
prefácio antes e do prefácio depois de Ernesto. Passando também a partir de agora
a contar com toda a obra de ficção de Ernesto Mourão no nosso Catálogo, julgamos estar a dar a
uma das vozes mais singulares da nossa escrita o espaço de liberdade e
afirmação que ele merecia e ansiava. Aproveitamos também para agradecer à
editora Mosca Morta, agora integrada no grupo Derrapagem, pela forma cordata e
justa como tratou connosco desta transferência que já se prenunciava.
Lançamentos Exemplares
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Comunicações Exemplares
Na sequência do uso abusivo de citações de Oscar Wilde por
algumas editoras, designadamente a Mosca Morta e a Fuligem, a Associação
Portuguesa de Epigrafistas decidiu iniciar um boicote a este autor até que
sejam respeitadas a quotas instituídas pelo Registo Nacional de Frases de Belo
Efeito ( o RENALFABETO). Depois de termos ultrapassado o período conturbado da
liberalização da epígrafe, que deu origem ao fenómeno que ficou conhecido como
o subprime de zaratrusta, com uma
proliferação abusiva de frases de Nietzsche que se vieram a confirmar ser afinal
do Sr. Marco Alberto, vemo-nos agora confrontados com uma concentração
excessiva de epigrafes num único autor que, não só viola o principio básico da
concorrência entre citados, como lança no descrédito o trabalho do
'Vasculhador de frases de belo efeito', uma profissão que deve merecer o maior
apoio de toda a sociedade, necessitada que está cada vez mais de referências e
pontos de apoio. Assim, a partir de hoje e por tempo indeterminado, a todo e
qualquer autor ou editora que apresente epígrafes de Oscar Wilde sem a devida
autorização e registo prévio conforme o regulamento, ser-lhe-á movido um
processo administrativo de 'violação das regras do belo efeito' pela nossa
Associação. No que diz respeito ao caso pendente do Sr. Raimundo Múrcia,
referente à epigrafe 'Desde que uma mulher aparente ter menos dez anos que a
filha, sentir-se-á sempre satisfeita' que estava em apreciação para o seu novo
romance 'Purificação', acabado de publicar pela Mosca Morta, será despachado
favoravelmente atendendo ao estado de debilidade emocional do autor depois de
mais uma sinopse mal conseguida com Simone Bolina.
in Boletim do Epigrafista, 4ª Trimestre de 2014
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Flávio Cossaco
Necrologias exemplares
Faleceu de morte súbita, à primeiras horas do dia de hoje, o
escritor Dário Carneiro que contava com 61 anos. Com uma vida dedicada a elevar
a ficção a patamares e alçapões pouco experimentados pela ficção nacional, Dário teve no
seu último romance 'Infernizar' , editado pela Choco com Tinta, um êxito de
vendas que o levou a ser traduzido em mais de 20 línguas, 5 dialectos e 3
sotaques. Iniciou a sua carreira como promotor de vendas na Rosicler, mas rapidamente
os seus contos foram notados por Nelson Barbosa, o famoso editor da saudosa
Cacimba, que o trouxe para a ribalta e que culminou com a atribuição do prémio Pingo Doce das Letras em 2013. Pelo meio ficou a sua turbulenta relação com Custódia Passos (a
autora do agora reeditado 'Sorte Macaca') que provocou o suicídio desta, num
caso ainda por explicar e que envolveu o estranho desaparecimento da pilinha de Flávio
Cossaco. A sua obra influenciou bastantes romancistas e produtores de folhetos
de promoções da nova geração de cartões de pontos, e na academia também era olhado com admiração por
todos os quadrantes e bissetrizes. Era muito cuidadoso nas suas entrevistas, recusando-se
sempre a ser filmado de estômago vazio (dizia que era o espelho da alma) e sempre
foi um menino amado da crítica que chegou a chamar-lhe o Bisonte das Letras,
pela forma apaixonada, (ou obstinada, conforme a zona que o corno atingia) como
defendia as suas figuras de estilo, das quais acabou por ser escolhida esta
para epitáfio: 'Agora dei nisto'.
notícia publicada no Semanário Vénus, em Novembro de 2014
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Flávio Cossaco
Fofocas Exemplares
«Depois dos êxitos tão retumbantes como inesperados dos
últimos títulos da chancela Mosca Morta, aos quais não foi certamente alheio o
caso amoroso e escaldante entre Simone Bolina e Flaubert Queirós ( que chegou a
publicar o bestseller 'Colchão de
Noiva' na já extinta Cacimba), os accionistas do Grupo Derrapagem assinaram um
memorandum de entendimento visando a absorção da Mosca Morta, por troca de
acções com a sua filial Fuligem. Dois editores desta última já reagiram e
mudaram-se para a Adamastor, que agora passará a contar no seu portfólio com
mais nomes sonantes do chamado romantismo esclerótico, a corrente literária que
a trouxe para a ribalta, iniciada por Salvador Alves Arinto com o seu título emblemático
'As minhas cruzes'. A comunidade literária aguarda com expectativa estas
mudanças, mas a Associação Portuguesa de Epigrafistas já fez saber que tem em
preparação um pré-aviso de greve a frases de Nietzsche e Óscar Wilde. A
Relações Públicas da Derrapagem, Judite Branquinho, confidenciou ao seu círculo
mais íntimo que há grandes expectativas numa nova trilogia de Raimundo Múrcia, um romance de
época baseado nas peripécias da família Saraiva Dirceu, cujo primeiro volume
terá um título de criar água na boca: 'Sorve-me', e que tudo leva a crer se
inspira em episódios da vida duma conhecida designer de badanas. Surgiram, no
entanto, rumores no mercado, no sentido de que estas movimentações visam
essencialmente colocar pressão sobre os direitos de autor, e vários analistas do
sector já chegam a afirmar que futuramente estes serão pagos em pontos do
cartão galp. Aguarda-se ainda com expectativa a posição de Ernesto Mourão que,
como é sabido, afirmou recentemente que nunca publicaria na mesma editora que
Raimundo Múrcia, depois deste ter sido encontrado a brincar aos prólogos e às
sinopses com Suzete Moisés, a vulcânica mulher que levou Raimundo ao altar três
vezes nos últimos dez anos, intercalando com Lúcia Parreirinha (a poetisa da Chamusca), e que foi a contratação mais badalada da Choco com Tinta no início da
década, quando esta iniciou a sua colecção de mais sucesso, com o
título 'No dia em que eu conheci Roger Federer'.»
in 'Badanas e Fofocas', publicado no 'Correio da Bucelas',
Março de 2014.
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Plágios Exemplares
Alexandre Felipe Caramelo era o quarto filho do comerciante
de retalho de Setúbal, Felipe Paulo Caramelo, que ficou célebre no seu tempo, e
ainda hoje recordado, por causa da sua morte trágica, ocorrida há precisamente
15 anos, degolado por Lurdes Felinto, e de que falarei mais tarde. Agora apenas
digo que este «comerciante de retalho» era um sujeito estranho, mas desses que
se encontram com frequência, um tipo de homem que não só não sabe fazer nada,
como é depravado, mas que trata dos seus interesses com uma perfeição de
mestre, no fundo a sua única e real qualidade. Felipe Paulo, por exemplo,
começou do nada, era um comerciante de pouca importância, fazia-se convidado
para as mais diversos festas, introduzindo-se assim em ambientes que
normalmente lhe estariam vedados, mas acabou deixando uma fortuna ainda hoje difícil
de avaliar. Era também aquilo que hoje se chama um homem excêntrico mas,
repito, não o era por estupidez, era-o essencialmente por inaptidão, e ainda
por cima dum género especial, de inaptidão nacional, daquele jeito único que
temos para não saber fazer nadinha de nada.
in Os Irmãos com Olho de Vidro, de Viviane Lopes, edições Fuligem, 2013
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Flávio Cossaco
Badanas Exemplares
Carlos Corrimão nasceu no Ribatejo em 1958 e é filho do
mártir comunista Feliciano Corrimão. A matéria prima das suas crónicas tem
origem no absurdo que é confiar naqueles que se elegem pelo voto - o votómito, expressão por si inventada. O seu estilo
inconfundível não deixa margem para dúvidas pelo tom compulsivo e pela estética
repulsiva. As suas influências, como ele dizia, devem encontrar-se nas anedotas
porcas e na dona zulmira, pessoa que não se chegou a saber se existia na realidade,
mas que todos os sinais apontam para ter sido uma freira carmelita a quem
comprava maçã reineta no convento de coimbra. As edições Adamastor já tiveram
o privilégio de editar o seu livro de contos 'Pauzinhos ao Sol', o seu romance 'O Caril'
e prepara-se para editar a sua biografia de Diogo Cão. A presente recolha das
crónicas que publicou no Benavente Weekly ( um jornal de teor anarquista
entretanto comprado pela holding Huambinova) são uma demonstração de que
Corrimão é uma voz luminosa no panorama cultural português, e uma voz sem medo
de acreditar na força criativa da desilusão, como ele tão bem expressa nesta
frase: «só custa a última vez».
in Carleidoscópio - crónicas em corrimão, de Carlos
Corrimão, edições Adamastor, 2014
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Prólogos Exemplares
A acção desta Peça decorre na zona da Rua dos Correiros, em
Lisboa, e tem como cenários principais um café, uma farmácia e uma modista. Os
dois protagonistas principais são Carlos Suiço, um alfaiate reformado que
recorda os seus clientes famosos e que se diz detentor da fórmula do modelo de
corte universal, e Silvia Mourão, uma empregada de café que está apaixonada
pelo filho de Carlos, um ajudante de farmácia que se vê apanhado numa rede de
contrabando de genéricos. Luísa L. Saleiro (nunca saberemos o significado do
L.) é empregada do gabinete de moda da Dona Armanda Moutinho e tem um caso
amoroso com Carlos, que é viúvo e, obviamente, carente, não por ser viúvo mas
por ser homem. Luísa tem aspirações a poetisa (talvez por isso o uso do L. com
funções estético-enigmáticas) e por várias vezes se vê em situações incómodas
com as clientes de Dona Armanda que nem sempre assimilam bem as imagens lirico-simbólicas
que Luísa por vezes deixa à socapa nas etiquetas. Tudo se passa na Primavera e
, mesmo não sendo uma peça com preocupações de rigor histórico, poderemos dizer
que se enquadra numa Lisboa decadente em que Freitas do Amaral é presidente da República,
João Salgueiro primeiro ministro, Rebelo de Sousa presidente da Câmara e Mário
Crespo director da News of The World.
in No Dia em que eu conheci Kate Moss, de Júlio Paisana,
edições Choco com Tinta, 2013
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Flávio Cossaco
Apresentações Exemplares
Não deixou de ser simpático da parte da equipa editorial da
Fuligem terem-me convidado para apresentar este livro póstumo do Rui Filete,
mas eu sei que se ele ainda cá estivesse entre nós gostaria que fosse eu a apresentar
ao mundo este seu último livro. O Rui a partir de certa altura, como alguns
saberão, começou a intitular-se como Ensaísta. Quando a primeira pessoa lhe
perguntou por que raio se apresentava ele assim sendo um mero assentador de
tacos, ele respondeu ligeiro e sem hesitações que se assumia como um
especialista em saias. E
de facto era. Disse-me um dia que tinha percebido que as mulheres serviam um
pouco mais do que para fornicar depois de uma lhe ter enxugado uma lágrima com
uma bordinha da saia plissada e ele ter ficado imediatamente com uma espécie de
excitação mas em que a afluência vascular curiosamente se dirigia para o dedo
grande do pé. A erecção do dedão grande passou a ser uma espécie de tesão de
substituição que, entre outros efeitos práticos o obrigou a começar a ter de
usar dois números de sapato acima daquilo que seria recomendado a um excitado
normal. Poder-se-ia pensar que esta experiência duma testosterona criativa
ficava por aqui, escondida no meio das suas frustrações e demais miudezas, mas
não. Dada a sua profissão Rui passava muito tempo rente ao chão e tinha ocasião
de apreciar de forma mais ou menos contemplativa as pernas e zonas adjacentes
das suas freguesas. As saias começaram a apresentar-se-lhe como uma espécie de
ícone ao qual ele não mais enjeitaria devoção e ilusão. Este livro é uma
história possível, uma das dele, desta
devoção secreta, e dos seus efeitos tanto no dedão grande como noutro órgão
pendular que intermitentemente também se associava ao devoto espasmo apontando
tão desesperada como orgulhosamente para
os lambrins. Não resisto a citar já esta passagem em que o Rui reflecte sobre o
efeito ensaístico de uma morena de nariz afilado e saia azul ganga: «levei três
horas a assentar 5 metros
de rodapé pois cada vez que precisava de fazer o movimento de aparafusar uma
ripa ela aparecia a oferecer-me uns bolinhos de côco que religiosamente me
entregava baixando-se em movimento de afrodite de museu com a sua saia azul de
beata a fazer de andor esvoaçante. Nesse momento a aparafusadora bloqueava, o
meu dedão arroxeava e eu ficava com uma dor na zona inguinal que tentava
disfarçar enfiando o bolo duma só vez na boca, dando-lhe a deixa para um
inevitável, «veja lá não se engasgue, Rui», ora eu, que naquele momento já não
tinha nenhuma canalização livre de tormento e rezava para que o côco descesse
rápido e forçasse os ácidos do estômago a tomar conta de todo o regimento
interno, já estava dominado pelo feitiço da sua saia que me corrompia o
pensamento que nem uma anestesia cruzada de nandrolona de ciclista. Era uma
saia que alargava de repente, justa apenas até onde devia estar justa e depois
abrindo-se numa generosa flutuação que faria o tapete de aladino parecer uma
tábua de engomar». O Rui foi um escritor de sensações, e descrevia-as como um turista
descreve um pôr do sol, ou uma bicha na bilheteira do Louvre. Este é um livro
de saias de passagem. Nenhuma o fixou, hoje sabemos, morreu só, talvez a sonhar
com um bainha ligeiramente descosida, sobre a qual ele por certo ainda terá
tempo de ensaiar junto de alguma estrela plissada.
Excerto da apresentação do livro No Tempo em que os Pirilaus
falavam , de Rui Filete, para as edições Fuligem, de 2013, por Gaspar Monteiro.
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Epílogos exemplares
Raimundo dedicara a maior parte da sua vida adulta a
descobrir a fonte tipográfica ideal. Não se tratou de encontrar a que permitia
uma leitura mais descansada, ou rápida, ou mesmo esclarecida, mas antes aquela
mais inspiradora. Passou horas a fio a testar serifas, hastes, pernas,
grossuras, espaços, aberturas, eixos, formas e contraformas, com uma minúcia de
relojoeiro e uma devoção de eremita. O seu sonho foi revelar a fonte da
sedução, a fonte que desse à palavra mais sentido e que a fizesse entrar na
alma do leitor, ora arredondando-a, ora picando-a, ora torcendo-a ou esticando,
num esforço quase mediúnico de expressionismo tipográfico para transformar a
letra impressa num elixir de comer com os olhos. Procurava letras que se
pudessem pegar com as mãos e que cada um pudesse levar ao colo e guardar como
pequenos graalinhos, tesouros de efeito e feitio. Chorou porque uma terminação
era demasiado grosseira, gritou com serifas que pareciam ouriços, éles que pareciam
chouriços, exasperou-se com formas que se acomodavam sem energia, deitou-se em
cima de filas de émes e énes que lhe pareciam molas pasmadas, dedicou vês e tês
a santos mais que caídos em desuso e quase que sucumbiu à tentação de se enforcar
num dê que lhe saía resistentemente bojudo. Quando morreu de pâncreas desfeito
tinha um friso de ésses maiúsculos a prestar-lhe homenagem, rendidos ao cume
que Raimundo lhes tinha concedido, vaidosos com o seu dorso cavado, corcunda
épica, e uma ponta serifada a apontar para o céu.
in A Túlipa Amarela, de Simone Bolina, edições Mosca Morta,
2013
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prefácios exemplares
Quando em Janeiro dum ano que já passou Mónica Meireles deixou
Felipe Farinha e o trocou pelo inesperado Joaquim Dias, eu estava longe de
perceber que esse desenlace iria levar Felipe a uma fase de recreação artística
de índole renascentista. Mónica geria a sua relação com ele numa base
estruturalóide, ou seja, Felipe representava uma parte bem definida e
localizada na sua holística pessoal, com funções e operacionalidades que
respeitavam um modelo subjacente, algo entre um sistema operativo e uma rede de
hormonas, caprichos, racionalidades avulsas e cartilagens. De forma quase
implícita a vida em comum cumpria rituais, regimentos, rotinas que funcionavam
como que bebendo duma norma iso dedicada a conjugalidades. Liberto dessa
programação, mesmo que pela via da estruturação de apêndices ósseos frontais,
Felipe, em vez de se entregar à depressão inerente ao abandono ou à luxúria
decorrente da emancipação, dedicou-se a elaborar frescos de memória destinados a
misturar cenas luminosas com sentimentos degradados, como se fosse um giotto
brueggelizado. O romance que resultou deste estado de espírito, - sim, porque
dum estado de espírito se tratou, o corpo nada teve a ver com o assunto -
apresenta-se aqui como um harmonioso aparvalhamento de alma, uma sequência fatal de
instantes que se movimentam em torno dum caos consentido e até acarinhado. Com
Mónica sempre a espreitar em cada canto do enredo Felipe constrói um
desembarque afectivo em que cada sentimento que aterra na alma do protagonista
é imediatamente recebido com uma salva de dúvidas e inquietações. Só não sufoca
porque tem uma grande cobertura aérea. O ar do tempo é de que nada vale um
desencanto e tudo vale uma frustração.
de Frederico Galo Basto, in Istmo de Sangue, de Ernesto Mourão, edições Derrapagem, 2014
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Flávio Cossaco
epígrafes exemplares
The forward
violet thus I chide:
'Sweet
thief, whence didst thou steal thy sweet that smells,
If not from
my love's breath
de W. Shakespeare, soneto nº99, in O Alperce e a Nêspera, de
Marco Alberto, edições Choco com Tinta, 2013
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Flávio Cossaco
Sinopses exemplares
Álvaro Gaspar apenas fora realmente feliz enquanto vendia
automóveis em múltiplas mãos. O que ele se deliciara-se a fazer recuar conta
quilómetros, a falar dumas pastilhas de travão trocadas à pressa como se dum
turbo em folha se tratasse, e a disfarçar riscos de pintura com misturas químicas
que fariam inveja a prémios nobel. Quantos romances de amor não tivera de
escrever mentalmente para enfiar uma carrinha ao preço duma limusine, «oh se este
banco de trás falasse», passara a ser uma das suas palavras de ordem quando as
mudanças automáticas lhe vieram reduzir o efeito dos trocadilhos com as manetes. Não que aqueles tempos em que fundou a seita de adoradores de
tubérculos não tivesse sido também recompensadora, mas ao ser esse o critério
mais importante nada se teria assemelhado aqueles meses gloriosos em que
manteve a coluna semanal sobre aplicações financeiras alternativas num jornal
electrónico especializado em roupa íntima feminina. Chegou a ter mais cartas
que o consultório sentimental, e as semanas que se seguiram ao seu artigo sobre
o efeito dos desenhos das cuecas com joaninhas nos yields das obrigações a 25
anos de empresas petrolíferas trouxeram-lhe uma fama só comparável à de Mota
Assunção, um cobridor de eslovacas que ajudou a fundar uma maternidade em
Kosice sem o recurso aos fundos estruturais e que inventou a expressão: quem
tudo qren tudo perde.
por Olegário Pinto, sobre 'Os Novos Charlatães', de Rebelo Mendes,
edições Adamastor, 2013
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Lisbon Ceiling
Últimos Parágrafos #8
«No dia em que o circo fechou, Julio Facada levou a sua
cadela ao veterinário para a desparasitação, era um luxo para as circunstâncias
do momento, mas Filipinha seria tratada como uma princesa até que lhe fosse
possível. Já Rogério Fantasia dedicou as suas últimas horas na tenda gigante a
limpar as bostas de Filipão, o Elefante mais velho e amestrado, que conseguira vender à
justa a um circo checo e que tinha andado de diarreia nas últimas semanas, sensibilidades
de animal, nada que não tivesse também acontecido a Nabucodonosor, um tigre com
sete anos que acabou por ser praticamente oferecido a uma empresa de eventos e
publicidade que tinha várias contas para multinacionais de champô. Enfim, a
bicharada praticamente toda tinha encontrado um destino decente, até a dupla de
macaquinhos, Saraiva e Gonzaga, tinham conseguido impingir a um contrabandista
de animais ali com uma loja de fachada de selos e moedas junto à Paiva Couceiro.
Aparentemente tinham ido num lote com três catatuas e um pavão roubado no
jardim da estrela para um condomínio privado de banqueiros islandeses na
Escócia. O que se aproxima mais da vida é o circo, todos na hora da despedida
se lembravam desta máxima do fundador do circo, o velho Mariano Cacete, um
equilibrista, mágico e faquir como o mundo nunca mais vira igual e que ainda hoje põe
as velhas do lar todas malucas, ali num edifício rosa velho junto do Poço do Bispo,
quando pega em três garfos e levanta a dona Zulmira à altura do candeeiro da
sala da televisão enquanto o Goucha entrevista um sacristão de Tondela que faz
tarte de maçã com os restos das hóstias que se desfazem antes de consagrar.»
in Sorte Macaca, de Custódia Passos, edições Choco com
Tinta, 2013
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últimos parágrafos
Últimos Parágrafos #7
«A primeira varejeira apareceu muito antes de os primeiros
vermes terem sido avisados da ocorrência. Os raios do último sol do dia
refractavam pela janela dentro e incrustavam-se nas cartilagens mais expostas
criando aureolas dum brilho de cristal. A boca mantinha-se aberta parecendo
reter uma frase espirituosa, o olhar era ainda de interesse pela vida mas a
postura do tronco já desenganava qualquer diagnóstico mais optimista. A tripa ondulada
esboçava um tímido assomo pela fresta que se abria no imponente ventre mas não
chegava a instigar nenhuma curiosidade mais exigente. Quando a luz da Lua grávida
despontou, um serviço de porcelana ainda a desenvencilhar-se do embrulho quis
recebê-la com a distinção que merecia, mas deitada na bancada pouco mais havia
que aquela bela cabeça de pescada.»
in Colchão de Noiva, de Flaubert Queirós, Edições Cacimba,
2013
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últimos parágrafos
Últimos Parágrafos #6
«A memória dos seus beijos era já uma coisa longínqua, mal
os distinguia de simples amostras de perfume, perdera para sempre aquela
sensação única do contacto, fosse tímido fosse brutal, com a sua pele, o
coração desabituou-se de batidas galopantes e nunca mais teve apertos de peito
provocados pela espera, pela aproximação da despedida, pelo anúncio da chegada.
Regressava agora ao ser amorfo do qual pensara nunca mais vir a pertencer, teve
de repescar uma essência perdida, vasculhar nos confins da capacidade de nada
sentir e voltar a militar na suas teorias de desprendimento científico. Teve-a
ali, nas suas mãos e deixara-a fugir, nem sabia se para outro se para ninguém,
só sabia que já não a tinha, o resto não interessava, descobrira que o nada é
afinal a outra face do tudo num mundo
onde o meio termo é uma ilusão de óptica.»
in Fim de Tarde, de Salvador Alves Arinto, edições Fuligem,
2013
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últimos parágrafos
Últimos Parágrafos #5
«Comprou finalmente o seu direito a ser escravo por duzentos
dólares. A vida livre trouxera-lhe dissabores dos quais nunca se soubera
desenvencilhar de forma conveniente e ficara com frequência encurralado entre
escolhas várias. Encruzilhadas, Bifurcações, Alternativas, Opções, de tudo isso
ficaria agora dispensado, pagava para que decidissem por ele, era a melhor
aplicação para as poupanças que lhe restavam. Quando Philip lhe perguntou se
não viria a ter saudades de ser livre, respondeu-lhe com um sorriso
condescendente que a liberdade apenas lhe servira para ter comido gelado de
pistacho quando afinal baunilha teria sido mesmo a melhor escolha. Só a
escravidão lhe permitiria apreciar a desilusão como destino e o destino como
ilusão. Comprou roupa nova com os seus restantes cem dólares e entregou-se a
uma instituição pública como funcionário para todo o serviço. Tomariam conta
dele como numa utopia comunista falida, e fariam novamente doutrina consigo.
Adquiriria estatuto de case study e daqui a uns anos certamente um
econometrista em busca de fama se haveria de lembrar dele para tomar conta de
alguma abcissa.»
in Purificação, de Raimundo Múrcia, edições Mosca Morta,
2013
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últimos parágrafos
Últimos Parágrafos #4
«O diabo saiu-lhe do corpo pelas três da tarde. Aproveitou e
foi beber uma cerveja bem gelada testando de caminho em que estado lhe tinham
ficado as entranhas. A primeira sensação foi boa, afinal o diabo deveria ter
passado o tempo apenas em zonas mais subidas, e o paladar também não o traiu, exceptuando
um certo travo exagerado, mas esperado, a enxofre. A ultima golfada foi
acompanhada duma ave-maria mental, uma espécie de oração de circunstância mas
eficaz. No pires ainda jaziam uns quantos cajús, que de forma
súbita começaram a exalar um odor bafiento e acre. O diabo esconde-se nos
aperitivos, riu-se. Sentia-se verdadeiramente aliviado, tinham sido dois anos
de convivência controlada com o maligno, sem subsídios, sem nenhuns apoios,
contra a opinião de todos, sem nunca saber ao certo onde estava metido,
diga-se, mas guardara a última moeda no forro das calças para o exorcismo e
vencera a tentação de a trocar por um arroz de lampreia; afinal um arroz de lampreia não passa
dum arroz de lampreia e uma alma sem diabo ainda é um mar de oportunidades.»
in Infernizar, de Dário Carneiro, edições Choco com Tinta, 2013
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últimos parágrafos
Últimos Parágrafos #3
«A graxa já estava em grânulos, muitos anos tinham passado
desde a última vez que tinha aberto aquela lata. Olhou para os sapatos
castanhos com a mesma complacência com que tinha escrito a sua carta de
demissão, e tomou consciência de que começara agora a ser mais um homem a carregar
a sua insignificância, despido da influência que tinha exercido de forma
implacável. Quase por reflexo cuspiu para o coiro seco e reparou que afinal
quase tudo precisava duma boa cuspidela antes de ser começado. Imolara-se no fogo do esquecimento para salvar
a pele a um presidente eleito por meia dúzia de votos manipulados, mas quem
cospe por último cospe melhor, foi a resposta final da sua consciência bem treinada
para produzir consolações de recurso.»
in Surto de Sorte, de Jaime J. Jardim, edições Derrapagem,
2013
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Últimos Parágrafos #2
«O ranho corria-lhe agora sem cerimónias e quando, por fim,
recolheu o sal de duas lágrimas que ainda deslizavam como que perdidas, já nem
estranhou a falta da saliva, que entretanto ficara retida na represa de entre-lábios,
secos, tão secos eles estavam de não ver boca alheia ia para mais de vinte
horas, incluindo as duas do sonho que Sofia levava. Quando Bartolomeu chegou,
inclinou-se, e perante aquele panorama hídrico encolheu os ombros, virou-se
para uma mulher de olhos brilhantes que o controlava em espera técnica, abraçou-lhe
a cintura vindo de estibordo e levou-a para a proa. Já o sol nascera e Indira
vencera.»
in Mangericão e Coco, de Vasco Dias, edições Adamastor, 2014
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últimos parágrafos
Últimos Parágrafos
«Carlos desceu então as escadas, deu-se ainda ao cuidado de
olhar para cima, pôs as mãos cuidadosamente nos bolsos e só depois de respirar
quase piedosamente fundo saiu para a rua. Foi recebido por uma chuva cinematográfica,
mas sem táxi a parar à porta, pelo que teve de esperar dois literariamente infindáveis
minutos. Teria sido um crime passional, uma precipitação, uma negligência, o
resultado duma indiferença moral, não sabia. Os advogados que decidissem. Para
ele chegava-lhe uma consciência pesada, afinal de contas nunca se dera bem com
a alma limpa. Só o crime pondera, disse por fim ao taxista, e é para o Beato, mas
não vá pelo rio, por favor.»
in Ruído e Sombra, de Flávio Cossaco, edições Fuligem, 2013
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