prefácios exemplares

Quando em Janeiro dum ano que já passou Mónica Meireles deixou Felipe Farinha e o trocou pelo inesperado Joaquim Dias, eu estava longe de perceber que esse desenlace iria levar Felipe a uma fase de recreação artística de índole renascentista. Mónica geria a sua relação com ele numa base estruturalóide, ou seja, Felipe representava uma parte bem definida e localizada na sua holística pessoal, com funções e operacionalidades que respeitavam um modelo subjacente, algo entre um sistema operativo e uma rede de hormonas, caprichos, racionalidades avulsas e cartilagens. De forma quase implícita a vida em comum cumpria rituais, regimentos, rotinas que funcionavam como que bebendo duma norma iso dedicada a conjugalidades. Liberto dessa programação, mesmo que pela via da estruturação de apêndices ósseos frontais, Felipe, em vez de se entregar à depressão inerente ao abandono ou à luxúria decorrente da emancipação, dedicou-se a elaborar frescos de memória destinados a misturar cenas luminosas com sentimentos degradados, como se fosse um giotto brueggelizado. O romance que resultou deste estado de espírito, - sim, porque dum estado de espírito se tratou, o corpo nada teve a ver com o assunto - apresenta-se aqui como um harmonioso aparvalhamento de alma, uma sequência fatal de instantes que se movimentam em torno dum caos consentido e até acarinhado. Com Mónica sempre a espreitar em cada canto do enredo Felipe constrói um desembarque afectivo em que cada sentimento que aterra na alma do protagonista é imediatamente recebido com uma salva de dúvidas e inquietações. Só não sufoca porque tem uma grande cobertura aérea. O ar do tempo é de que nada vale um desencanto e tudo vale uma frustração.

de Frederico Galo Basto, in Istmo de Sangue, de Ernesto Mourão, edições Derrapagem, 2014

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