Raimundo dedicara a maior parte da sua vida adulta a
descobrir a fonte tipográfica ideal. Não se tratou de encontrar a que permitia
uma leitura mais descansada, ou rápida, ou mesmo esclarecida, mas antes aquela
mais inspiradora. Passou horas a fio a testar serifas, hastes, pernas,
grossuras, espaços, aberturas, eixos, formas e contraformas, com uma minúcia de
relojoeiro e uma devoção de eremita. O seu sonho foi revelar a fonte da
sedução, a fonte que desse à palavra mais sentido e que a fizesse entrar na
alma do leitor, ora arredondando-a, ora picando-a, ora torcendo-a ou esticando,
num esforço quase mediúnico de expressionismo tipográfico para transformar a
letra impressa num elixir de comer com os olhos. Procurava letras que se
pudessem pegar com as mãos e que cada um pudesse levar ao colo e guardar como
pequenos graalinhos, tesouros de efeito e feitio. Chorou porque uma terminação
era demasiado grosseira, gritou com serifas que pareciam ouriços, éles que pareciam
chouriços, exasperou-se com formas que se acomodavam sem energia, deitou-se em
cima de filas de émes e énes que lhe pareciam molas pasmadas, dedicou vês e tês
a santos mais que caídos em desuso e quase que sucumbiu à tentação de se enforcar
num dê que lhe saía resistentemente bojudo. Quando morreu de pâncreas desfeito
tinha um friso de ésses maiúsculos a prestar-lhe homenagem, rendidos ao cume
que Raimundo lhes tinha concedido, vaidosos com o seu dorso cavado, corcunda
épica, e uma ponta serifada a apontar para o céu.
in A Túlipa Amarela, de Simone Bolina, edições Mosca Morta,
2013
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