Q’ridacionismo

Deus foi sempre um querido desde o princípio. Deixou primeiro o homem espalhar-se ao comprido e, só depois lhe fazer ver que da sua costela nunca mais iria sair um chispe em condições, mas antes moça atrevida e insinuante, fez dele um objecto para constante invenção (apesar do Foucault, julgo, ter dito que o homem é uma invenção recente) e intermitente condimentação.

Esta ideia divina dum casal primordial acho boa demais para ser apenas metafórica. Penso que a meio dos sete dias, da meia noite de quarta para quinta feira, aproximadamente, Deus terá chegado a congeminar uma comunidade de sexo e amor livre ali entre o corno de África e a virilha do Golfo Pérsico, tendo feito o primeiro teste com duas nederdalas, três cromagnons, quatro bambis e uma ninhada de cabras montesas, mas a imaginação e vitalidade da espécie em formação mostrou-se logo apurada e o resultado foi um fascinante rebanho de capri sapens e simius fabers, que acabaram por se desavir por causa duma discussão de cariz epistemológico em torno do genoma da batata doce que revelava uma enorme parecença com um penduricalho que os machos transportavam entre as pernas e que os atrapalhava na apanha da hortelã (por causa da curiosidade dos mosquitos) e na cultura do bichos da seda (as fêmeas rapidamente começaram a exigir cortinados nas grutas).

Nesta altura Deus foi mais uma vez um querido, pensou imediatamente nos biólogos, achou aquilo diversidade e riqueza de espécies a mais, a futura ciência da bricolage da célula e da fotosintese do bróculo nunca estaria preparada para tamanha profusão de dados e combinações genomeicas e, depois dum churrasco de codornizes, organizou um degelo rápido, mais uma daquelas deslocações de placas na subcave dos oceanos (género botox geológico, porque os geólogos também são gente) e passou a uma nova fase que achou mais segura, levando consigo um dos cromagnons enxertado a papa fomigas que se tinha mostrado mais tímido e amante de borboletas e sudokus.

O esquema que Deus tinha preparado para a dita criatura era uma coisa calma, depilada, com pequeno almoço a horas fixas e reprodução com base em esperma recolhido quinzenalmente e envelhecido em cascos de carvalho, juntamente com um cheirinho de moscatel da arrábida (serra entretanto descoberta pelo cromagnon, onde aproveitou para tirar cimento e reparar as fissuras nas grutas) e ovulada em casulos de abelha africana. Não era nada que Deus Nosso Senhor não estivesse à espera, mas a dita criatura foi-se afeiçoando à boa vida e a certa altura era já o Criador que andava a toque de caixa a fazer-lhe a papinha toda, e a satisfazer-lhe as paneleirices mais refinadas. No fundo aquilo era a natureza humana num estádio mais avançado; havia que recuar, notava-se que faltava qualquer etapa no processo, tinha-se passado do bairro da badalhoquice para o da paneleirice sem passar pela rua augusta. Poderia dizer-se que sim, que já batia um coração, mas mais parecia um aspirante a imperador de bizâncio, do que um ser que pudesse vir a ter a benção da fernanda câncio.

O lado querido de Deus veio então novamente a revelar-se nesse momento crítico para a human kind. Olhou para o espécime que tinha à sua frente e tentou descortinar-lhe um órgão que se apropriasse ao servicinho que tinha em mente. Este apresentava mão na anca, queixo empinado, o rabo ligeiramente pelado e um órgão periférico, flácido, de aparência inútil e de facto muito pouco usado, tirando, em momentos de excitação, servir de marcador nos livros do saramago. A escolha parecia lógica, mas, lá está, Deus é por isso que é Deus, e foi-lhe à costela, num acto de magnanimidade que nunca saberemos agradecer devidamente.

O primeiro objectivo era um refogado simples, ali algo entre o entrecosto e a rinzada, mas Deus, atento e preocupado, tinha reparado que com uma das nederdalas e um cabrito montês se tinha proporcionado um momento de confraternização de registo enternecedor e talvez estivesse aí a chave do sucesso para a espécie, que não havia maneira de estabilizar, e ainda não se tinham inventado nem luta de classes nem as tampas de sanita.

O famoso ‘plano divino do casal de pombinhos’ – como depois se veio a chamar, até ao dia em que Abraão deu um enxerto na mulher pois esta não havia maneira desta parir nem à porrada – que inclusive teve de ser bem negociado com a corte de querubins ( que em troca exigiram poder aparecer sem prepúcio cortado nos frescos da Renascença) visava criar uma traçabilidade na espécie - um Deus moderno, registe-se - por forma a que qualquer defeito posterior pudesse ser devidamente analisado e corrigido e não se diluísse, face à endémica necessidade de bodes expiatórios, por um emaranhado de tribos distribuidoras de coliformes fecais pelos entrefolhos das cordilheiras mais recônditas da pangeia. Este processo ficou conhecido como a norma ISO Genesis do 7º dia, mas um contador de búzios frustado chamado darwin (que apenas conseguiu vender um único colar – e ainda teve de lhe enfiar dois ossos de leão marinho - por três xelins a uma viúva estrábica em Camberra) veio a chamar-lhe origem das espécies/selecção natural, ou seja, um género de pauta de exame ad hoc para licenciaturas em engenharia civil.

Voltando ao casalinho. Deus, querido, mas querido mesmo, podia ter aperfeiçoado a nederdala logo no refogado inicial, mas não, pôs à solta um ser curioso, cromossomaticamente monocórdico, mas que pudesse colocar ao descosteletizado macho desafios paradoxais de índole psicossomática, ou seja: nunca a entenderia, mas isso também nunca chegaria a ser preciso, tal a velocidade com que o homem atingia a fase espumante do seu peculiar processo de fermentação hormonal. Entre eles nunca haveria selecção natural, tal como nunca poderia haver o bitoque sem o bife e sem o ovo a cavalo, e viveriam sempre um para o outro, sob a ameaça do croquete do dia seguinte, é certo, mas libertos daquela ansiedade de que uma orangotanga gaiteira ou um gorila gingão lhes viessem tirar o lugar de primogénitos à mesa da criação.

Esta ideia querida do casal fundador e fecundador, da cópula prima da espécie, parece-me perfeitamente plausível - tal como qualquer família tem o seu pão de ló seminal, ou as suas primeiras iscas – ainda para mais se considerarmos então que o Criador chegou a testar as outras hipóteses intermédias, mas terá verificado que, ao deixar a alma humana para uma fase posterior à dos vulcões, das anémonas, do ácido sulfúrico e das pétalas de rosa, esta, inevitavelmente, poderia assimilar um pouco de tudo, ou seja: seria explosiva, mas acomodada, enxofrada, mas sedutora.
beyond



Blondie - Maria [No Exit (Beyond), 1999]
On the Waterfront (*)
Dinamarca, apanha do berbigão. Primavera de ano desconhecido.

A Sereia não estava porque tinha ido assinar um acordo de muda da escama com a L’Óreal.

(*) Elia Kazan, 1954
Palmira Murcha

Num blog da moda, (dererummundi) lia-se há uns dias em ambiente hamiltoniano:

«De facto, as fêmeas são muito exigentes na escolha dos machos com que acasalam e procuram garantias que o macho escolhido tenha «bons genes» contra parasitas. Para isso é necessário que os machos as convençam da excelência dos seus genes. Para evitar «gabarolices», isto é, publicidade enganosa, as provas da boa qualidade genética são muito dispendiosas em energia: apenas indivíduos com bons genes as conseguem exibir»

No entanto mais fresquinho, temos:


«Na realidade, não obstante todas as evidências em contrário, para o público em geral a imagem que perdura incontestada é a da violência primeva do Homem, a sua tendência intrínseca para o mal, um assassino da própria espécie.»


Tirando gostar da expressão ‘primeva’, porque me parece muito bíblica - se bem que algo discriminadora e não tão abrangente como seria primadão - fiquei enternecido com esta linguagem de precisão científica: ‘para o público em geral a imagem que perdura incontestada’.

De facto sente-se no ar que as pessoas andam assustadas, na rua o alarme é generalizado, em cada ombro pressente-se um assassino cromagnonico, em cada bafo a chama dum dragão enfurecido. Nota-se inclusivamente a alma humana num plano inclinado para o mal, mães a usarem os filhos como aditivo cosmético, cada vez mais patrões a chicotearem os empregados sugando-lhe o suor, em cada gene humano titila um toiro enraivecido, cada menina do gás é olhada como um auschwitz com pernas; morre, inclusive, de facto, hoje, gente que não morria antigamente; sobrevivemos porque caminhamos de negacionismo em negacionismo.


Eu penso que a sociedade devia escolher os seus cientistas que nem uma fêmea.
De passagem

informam-se os dois leitores confessos (e todos os outros, incluindo tímidos, indecisos, envergonhados, curiosos ou acidentais) deste blog que, na sequência de acordo longa (ou nem por isso) e duramente (isso sim) negociado, o progenitor desta pequena (mas cuidada, há que dizê-lo) obra de arte (e design, ora essa!) regressa, de letras e imagens, à sua morada principal (e da qual nunca deveria ter saído mas, como qualquer mãe sabe, os homens crescidos são mais dados a birras que os miúdos em idade de jardim de infância):

«Desfazedor de rebanhos»

Com os melhores agradecimentos pela atenção dispensada e não tendo à mão, lamentavelmente, qualquer citação de autor russo que, a preceito, traduza o estado d’alma, fica a despedida com um abraço a todos quantos, por bem, vieram até aqui ao longo destes meses.

Amanhã é outro dia.
u’r



One In A Million - Lene Lovich
Ecce homo abandonatis

É triste, mas é verdade. A patroa aqui do estabelecimento não liga nenhuminha ao que eu escrevo; e dedica-se, inclusivé, a elaborar grandes e sofisticados textos sobre o que outros meninos escrevem em torno de obtusas correlações e causalidades relativas ao empolgante tema da condição feminina. Estou a enciumar, é oficial. É que nem um mailezinho com uma palavra de conforto, nem uma sms com um smilezinho, ou mesmo com um ‘ó querido tem que se esforçar mais’, ou até um ‘perdeu a piada e o jeito, dedique-se a fazer spin-offs, e a explorar trabalhadores indefesos e envoltos em precaridade’; é que já nem peço um postezinho com mais de 3 linhas sem itálicos, já praticamente só peço uma palavra de ânimo, do género: «ânimo!»; estou objectivamente relegado para um mero valete de companhia aqui do blog, mero bloguista objecto, uma pura bucha para preencher o espaço entre os posts incrivelmente interessantes e bem pensados, que outros meninos superlativamente interessantes e cultos escrevem noutros blogs genuinamente interessantes e profundos. Já nem sou propriamente um verbo-de-encher, julgo não sair sequer do estatuto de advérbio circunstancial de encher. Sinto-me na prateleira dos afectos, um prêt-a-porter de trocadilhos de efeito duvidoso, um dr house sem cameron. Repito, é oficial, enciumei, estou ferido nas minhas réstias de orgulho, e prenhe daquela clássica insegurança varonil que assola o género masculino entre os momentos de euforia e os de deslumbramento, e que só passa com duas pastilhas para a azia e umas festinhas com unguento.
unbreakable, he said (*)

(*) ou «a alma do objecto dele vista do lado do seu sujeito com jardim de flores, copos meio-cheios e garrafas meias-vazias ao fundo»
Manual de auto ajuda para amestradores de bivalves e outras mentes em estado de captação

1ª lição – Os grandes jectivos: o Ob e o Sub

a) Objectivamente Jesus morreu pregado numa cruz, subjectivamente Deus sofreu pelos Seus filhos

b) Objectivamente a Ota é um aeroporto, subjectivamente é uma plataforma de 243.657 estacas entalada entre um aquífero e uns sobreiros

c) Objectivamente Portugal é uma nação, subjectivamente é onde encalhámos

d) Objectivamente um beijo são dois lábios a juntarem-se, subjectivamente são dois corações a juntarem-se

e) Objectivamente o SCP vai em terceiro, subjectivamente vai em primeiro

f) Objectivamente o Morse é um código, subjectivamente também

g) Objectivamente J L Borges não escreveu um livro de jeito, subjectivamente ensinou imensa gente a ler

h) Objectivamente o Casino fica no Estoril, subjectivamente é para onde estivermos virados

i) Objectivamente os fenómenos são coisas que acontecem, subjectivamente são coisas que nos acontecem

j) Objectivamente é Natal quando a gente quiser, subjectivamente não

k) Objectivamente Portugal está no rumo certo, subjectivamente Manuel Pinho é ministro

l) Objectivamente mamilo é uma palavra horrível, subjectivamente rima mal com Esquilo, ou bem com Camilo ( mas, nem objectiva, nem subjectivamente, rima com Castelo Branco)

m) Objectivamente ninguém nos conhece, subjectivamente até parecemos transparentes

n) Objectivamente o suprematismo russo é uma corrente artística, subjectivamente ninguém sabe ao certo o que é

o) Objectivamente Kavafavafafodavavissenãometáassaiarvis é um poeta grego, subjectivamente é um gajo que só o lê quem não tem pilinha em condições para brincar

p) Objectivamente Engenharia é a técnica dum gajo que faz umas contas abstractas aplicadas a uma realidade concreta, subjectivamente é um curriculum concreto obtido duma forma abstracta

q) Objectivamente a alma humana não se vê, subjectivamente só não a vê quem não quer

r) Objectivamente a adolescência é uma fase, subjectivamente é um mercado alvo e o que faz um pai calvo

s) Objectivamente o crepúsculo é o momento da passagem da tarde para a noite, subjectivamente é a passagem da noite para o dia

t) Objectivamente o ‘enriquecimento sem motivo aparente’ é um indício criminal, subjectivamente é bom

u) Objectivamente o cristianismo é um enquadramento cultural, subjectivamente é um negócio paralelo de almas

v) Objectivamente quase ninguém conhece a Karen Dalton, subjectivamente nunca mais ninguém cantou assim

w) Objectivamente o Morandi só pintou copos e garrafas, subjectivamente melhor que ele a pintar a alma só o Ingres com os banhos turcos

x) Objectivamente a ‘ciência’ tende a confundir equilíbrio com ausência de dispêndio de energia, subjectivamente não há equilíbrio sem fazer um esforço do caraças

y) Objectivamente o teatro é uma arte, subjectivamente é aquela coisa que até põe o André Gago a fazer de Hamlet

z) Objectivamente este post está entre a parvoíce e a treta, subjectivamente deu para aliviar a tensão acumulada entre a falanginha e a falangeta.
«dusk by the sea» (aka estoril landscape)
a puezia do dia

de quêim êue guosto neim àis parêides cunfeço…
«Sou outra pessoa!»

Mudou para Elseve anti-caspa da L´Óreal ou abriu o seu enésimo blog anónimo?
clipping
«E’er friend for today, is tomorrow’s heartbreak.»
O país por um canudo

Depois de se ter passado uns meses atrás das sestas e das festas de Santana Lopes não vejo porque não se possa andar um bocado atrás do canudo de Sócrates. A imprensa tem de ser coscuvilheira, é essa a sua missão, para pensar por nós já temos os burocratas da CEE , a Inês Pedrosa e o Ruben de Carvalho.

Num país em que as maiores mobilizações nacionais são o pirilampo mágico, os morangos com açúcar, e os gatos fedorentos, penso que sermos guiados por um cérebro filho duma pauta rasurada até era algo que ficava bem a condizer, e eu cá aproveitava o balanço e fazia também uma contagem de neurónios a uma rapaziada avulsa (de envergadura ministerial) e, se não desse cabo do orçamento do SNS, uma massagem cardíaca à oposição, visto que a estes, do pescoço para cima, já será desperdício de recursos. A não ser para procurar nódoas negras na versão oxidada de dama de ferro.

Qualquer dia ainda tenho saudades do tempo em que éramos governados por um engenheiro electrotécnico que rezava o terço, e, na oposição, o problema maior era o Nelo Monteiro usar um casaco dois números acima.
Luna Park

«Dostoievski interessou-me na adolescência. Os adolescentes adoram Dostoievski, por causa do fogo-de-artifício e das discussões, mas não penso que os livros sejam muito bem construídos.» de Robert Dessaix, em entrevista ao suplemento ‘Ypsilon’, ‘Público’, 23 de Março
causalidade linear e estatística, lda

Isto era pª ser um comentário n’ “O Cachimbo de Magritte” mas estendeu-se e acabei por preferir dizer por aqui o que penso desta análise de Luís Cabral. Assim sendo, peço desculpa do tempo que venham a perder ao ler este post.

Não sendo leitora do Sol fui ler o artigo “O aborto e a condição feminina (O Sol, 17 Março 2007) ao blog pessoal do autor e confesso que não me pareceu muito claro. Ou isso ou, espero ser perdoada se o estiver a interpretar mal, é um artigo tendencioso e falacioso. Vejamos então:

- as mulheres que têm apenas um filho têm piores condições de vida por terem apenas um filho ou será, em vez disso e bem mais plausivelmente, que só têm um filho justamente porque as suas condições de vida são já muito más e até um filho, um único filho com ou sem pai presente, é o suficiente para as piorar?

Talvez não saiba mas no Portugal dos anos 60 mesmo ter apenas um, um só, um único, filho era, para a esmagadora maioria das pessoas da classe média e do proletariado urbanos, um esforço financeiro e pessoal quase incomportável. Muitos dos que emigraram, sobretudo para as colónias, fizeram-no para terem condições de criar mais filhos. Neste caso uma rápida confirmação das estatísticas dar-me-á razão.

Quase me sinto tentada a concordar consigo quando afirma não terem as mudanças conduzido à melhoria da condição das mulheres no mundo actual e tendo mesmo, em muitos casos, conduzido até a alguma degradação face às condições do passado. As mulheres do mundo muçulmano, por exemplo e face ao que se pode retirar do seu texto, representarão a situação ideal? Não abortam, têm casamentos formais com resmas de filhos, estão muito protegidas do assédio masculino e das tentações, raríssimas trabalham “fora de casa” (utilizo um eufemismo propositado). No fundo nada mudou na vida delas desde há muitos séculos (a bem dizer nem na dos homens de culturas igualmente estioladas e anquilosadas, é certo). E não mudar será, assim, condição necessária e suficiente para que nada piore? Nem melhore, já agora? O que de alguma forma,combinado com a sua análise, nos levaria, neste caso, por obrigar a reformular a grande e banalizada máxima de “O Leopardo” de Lampedusa: é mesmo preciso que tudo fique na mesma para que tudo mude?

Desde os anos 60 que há ainda, se bem que cada vez mais raro, felizmente, o “casamento de penalty” (expressão curiosa e acertadíssima que, confesso, não conhecia) devendo-se a sua existência a formas específicas de educação, quase sempre por formatação religiosa de um ou dos dois protagonistas (ou mesmo de actores secundários). Às vezes as coisas correm bem e as pessoas acabam por ser felizes e ter muitos filhinhos e tudo, tal como numa Turandot da vida real. A maior parte das vezes arrastam-se em comodismos vários, filhos de “penalty” e outros incluídos, com maiores ou menores tensões, infelicidades e incumprimentos de projectos de vida pelo que até me atreveria a dizer que ser “mãe solteira” (a propósito, uma associação de conceitos não obrigatoriamente associáveis) pode bem ser a melhor solução, conquanto partilhada e responsável, para todos os envolvidos. Muitas vezes me questionei, quando me deparo com casos de casamentos “de penalty”, se não seria preferível para todos que o divórcio não fosse condicionado pelo mesmo que condicionou o casamento e hipotecou a felicidade. E se me vai responder que o sofrimento é parte da vida e que o facilitismo (ou hedonismo) são ideias da nossa sociedade de superficialidades digo já: estou de acordo consigo e nem por isso cedo um milímetro de mão no que antes disse.

Ser contra o aborto é, em minha humilde opinião, uma posição tão legítima como ser a favor, não sendo, por conseguinte, necessário enviesar interpretações de resultados estatísticos para defender um ou outro ponto de vista. Não sendo economista mas sendo casada e mãe por opção e não vendo no aborto solução para coisíssima nenhuma mas tendo votado “sim” por aquelas para quem o possa vir a ser, só consigo dizer isto a propósito da forma como interpreto a sua leitura das estatísticas:

Não, não me parece que deva ser assacada ao aborto ou à maior ou menor facilidade no seu acesso, a responsabilidade pela eventual ou efectiva diferencial degradação social da mulher (o que na crónica se refere como “feminização da pobreza” e em especial do que designa como “mães solteiras” e que, suponho, designe as mulheres com filhos a cargo exclusivo) ou do seu papel na sociedade. No entanto, se nos pusermos mesmo a fazer perguntas bem intencionadas, não falaciosas nem retóricas, somos capazes de descobrir que a culpa nesta tristeza de factos não morre solteira e até tem muitos filhinhos do tipo “pescadinha de rabo na boca”. Ou então do mordomo. Afinal, como nos ensinou a Miss Marple.
Luna Park

la chica y el mono, err… a menina e o avozinho: «Qualquer rapariga pode ser glamurosa. Tudo o que tem a fazer é ficar quieta e parecer estúpida.» - Hedy Lamarr
o «tímido» e lacrimejante bloglirismo íntimo (& counting…)



Romance, aka Romanza - versão de Miriam Makeba
Apenas um post com poucas cenas de sexo e sem música

Uma das mais luminosas revelações relatadas dos Evangelhos é a de que as pessoas se aproximaram de Jesus pelos mais diversos motivos: ou porque Ele os interpelava directamente, ou por curiosidade, ou porque queriam um milagre à borla, ou porque se sentiam pecadores, ou virtuosos, ou por acaso, ou porque O queriam lixar, ou porque eram importantes, ou porque eram miseráveis, ou porque eram una ‘maria vai com as outras’, ou porque tinham a mania que eram diferentes, ou porque não tinham nada para fazer, ou porque queriam aprender, um rol delas. Durante estes dois mil anos as coisas passaram-se sempre da mesma forma, a ligação entre o homem e Deus não está relacionada com nenhuma uma razão específica, nenhum temperamento específico, nenhuma aculturação específica, e não se manifesta com um padrão, não exige sequer um mesmo tipo de adesão emocional e racional.

Por outro lado, os agnosticismos e os ateísmos são muito mais estereotipados. Desabrocham dum desequilibro entre os binómios ilusão/desilusão e causalidade/desconhecimento, alimentam-se dos óbvios desinteresse/necessidade e ruminam uma inevitável tolerância intolerante, que nem uns jaquinzinhos fritos a olhar para o arroz de tomate.

O congregacionismo a que geralmente se associa o fenómeno religioso não é mais que uma consequência da nossa condição, e mesmo esse é vivido de forma errática e muito diversa. A Igreja, enquanto ‘Algo’ fundado por Cristo numa pura óptica instrumental, tal como Ele próprio na Redenção, dalguma forma, reflecte isto mesmo: o equilíbrio entre a função de intermediação e a de apoio técnico, e, claramente, profit oriented. Jesus, quando morreu na Cruz, tinha duas opções naquele momento: ou safar o bom ladrão , ou fundar com ele uma ONG, escolheu a que tinha resultados mais imediatos.

A ligação da Igreja a fenómenos civilizacionais ou culturais, funciona com os mesmos mecanismos da Coca Cola, ou da Marilin Monroe, ou do abstraccionismo, ou seja, é causa e consequência ao mesmo tempo; funciona para a alma humana da mesma maneira que a saia nas pernas da mulher: ora travada, ora rodada, mas sempre para deixar os homens perdidos com a sua sensualidade e graça.
do pólen, da primavera ou do lacrimejante bloglirismo íntimo
D. Flourenço e seus dois maridos

D. Flourenço tinha duas paixões: a estatuária pré Praxiteliana e o espólio perdido de Calímaco. De dia sonhava com Diadumenos de corpos epsilonizados e de noite sonanbulava com inversões poéticas inspiradas em Conópions com pêlos. Todos os dias era um castigo para se levantar porque lhe pesava a erudição naquela zona da nuca onde o indecente bafo se aloja, e por vezes impudicamente se cola que nem espuma de poliuretano mal expandido. Declarou-se um dia escritor. Iria fundir a poesia com a anatomia, o sentimento com o fermento, traria a castidade para fora do convento e faria dum obsceno gemido a ternura dum lamento. E foi assim que, da épica para a lírica e da coxa para o lombo, se deixou envolver por dois amantes ciumentos: um que parecia um verso alexandrino da cintura para cima e outro que se assemelhava a um vilancete da cintura para baixo. Vivia que nem uma autêntica redondilha.

De manhã, a um recitava adaptações de Rufino, e, à tarde, a correr, ia provando palmilhas de cortiça ao outro que se mascarava de Aquiles. A situação ia ficando insustentável, até porque a certa altura já misturava os quiasmos com os anacolutos e esteve quase a apanhar uma epanadiplose na anáfora. Já não conseguia descortinar o que era físico e o que era espiritual, o que era bavaroise e o que era bacanal, e ora se mostrava elíptico ora pleonástico, mas sentia-se incapaz de parar. Chegou a pensar em escrever contos para crianças, mas temeu viciar-se nas alegorias, chegou a ficar dependente das sinestesias, passou uma temporada a recitar ditirambos de Baquilíades para se libertar, mas, no fundo, tinha duas casas para alimentar e precisava daquilo com que se compram as hipérboles. Voltou por fim à sua vocação inicial, recolhida no berço maternal: traduzir frases de Platão para Agatão, sem dar ouvidos às falas enigmáticas de Diotima, e sem se preocupar quem está por baixo e quem está por cima.
ao pé disto o cioran parece o roger martin do gard

não acredito na força da palavra, não acredito na força das ideias, acredito sofrivelmente na força bruta, já acreditei mais na força da mente, acredito pouquíssimo, mas ainda assim algo, na força das imagens, mas acredito no cagaço, no pânico, no terror, no desenmerdanço, no dar de frosques, no colinho da mamã, na pasta de dentes, num sinal da cruz bem feito, num beijo bem dado, numas costas largas, numa ecografia, numa dor de cotovelo, numa lágrima bem tirada, num encolher de ombros, no papel do filtro dos ‘gitanes’ quando se cola ao lábio, na misericórdia divina, na comichão que é sempre um bom sinal, na doçura dum deixa andar, e nos amores de livro, onde amar é amar.
e você?

já deu palha ao seu burro (cavalo, é? ah…) de tróia hoje? (pergunte-lhe ao ouvido se quer mais)

Luna Park

«Eu aguentei com a graça de Deus, eu resisti com a graça de Deus», Pedro Santana Lopes, SIC Notícias, 18 de Março, Lua Nova
hoje: metaciências e assim
axé

ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. (ou não?)

Minha estimada senhora, cada um tem o treinador que tlebsse.

Não sei se estava a referir-se premonitoriamente aos três pontinhos que os lagartos sacaram à tripeirada naquele estádio que tem mais correntes de ar que a plateia do teatro da trindade. Ao assim ser, faço-lhe notar que, quando um treinador chamado Jesualdo, que às primeiras até aparenta ser uma corruptela aligeirada do nome do Redentor, é confrontado com um outro, que já de se si é Bento, cria-se uma situação de inferioridade teológica de alguma monta; analisemos: enquanto a ‘benção’ é um acto que pretende valorizar um bem terreno, dotando-o de propriedades que garantam ao seu usufrutuário uma maior comparticipação das benesses transportadas graciosamente pelo próprio crucificado (penso que o Cardeal Patriarca ainda vai aproveitar esta frase, nem que seja na pastoral das costureiras), a redenção é um acto divino que, ao ser indevidamente apropriado por indivíduos sem preparação ou envergadura, pode acarretar efeitos secundários, inclusivamente mais perniciosos que os falsos profetas, ou as micoses disfarçadas de lepra bíblica. Ou seja, o particípio passado do verbo ‘Jesualdar’, (acto de um tipo de redentor que à última hora se vai baldar e vai para os copos com o bom ladrão) ao ser confrontado com a forma substantivada do verbo ‘benzer’, mesmo no seu estado passivo (pessoa que incorpora humildemente o lastro secular da tentacular carícia divina – esta frase também julgo que não esteve mal) tem bastantes probabilidades de engasgar e ficar a debitar uma miscelânea de preposições pastosas com adjectivos furunculados. Penso que, hoje, até Rui Santos poderá dizer coisas acertadas, pois, quando a lagartada ganha, até parece que duplicam os dons do Espírito Santo; no fundo, as coisas começam, todas elas, a fazer mais sentido.
Luna Park

Pode um desejo imenso / Arder no peito tanto, / […] / Que faz que leia mais do que vê escrito. - Camões, L. V., Ode VI
Proibexibicionismo

Está provado que o efeito cruzado entre o tgv e a abolição dos isqueiros bic permitirá a alargar o raio de eficiência duma urgência hospitalar em 73,5 km. E se a esta combinação for associada uma subida de 15% no uso dos genéricos, um cartão único com foto tipo passe, a restrição ao uso de adjectivos na forma superlativa, e a redução das correntes de ar no palco do S. Carlos, então praticamente só com uma urgência em Abrantes, uma coincineradora em Figueiró do Vinhos, e seven up à borla para todos, a reforma do país fica feita.
alphabet
Brandy para agnósticos

Estou quase a ficar um fã daquele rapaz que escreve no ‘a vida breve’. Neste momento sinto-me praticamente aristocrata e, obviamente, restrito, no entanto, como dizem – mais ou menos – os ‘Smiths’ numa música do ‘the queen is dead’ – a preguiça para me levantar daqui e confirmar é fortíssima – i’m a so good looking guy que é um espanto estar aqui quase a adormecer alone, a roçar a circunspecção e a apetecer-me rezar um tercinho pelas almas desencaminhadas pelo combativo descodificador de taras e vasilhames religiosos LMJ. Aquela tal de instituição fundada pelo tipo que aparece nos filmes do Mel Gibson a verter glóbulos por tudo que é sítio, neste momento parece estar numa encruzilhada: ou monta uma quermesse de t’shirts de contrafacção na Costa do Marfim , ou vai vender brasões de parafina para Vila Viçosa. O centrão sociológico, segundo seu jorge, não quer liofilizar, aposta tudo no desinteresse religioso, nos low cost e no supermercado do corte inglês, e os templos deverão a curto prazo ser destinados a repartições de finanças ou a casas de asneira assistida para agnósticos anónimos.

Vou apenas usar um piqueno parágrafo para discordar desta visão que faz parecer o apocalipse uma mera franchise do toys R us. Quem tem para com a existência de Deus a mesma atitude que Newton tinha para com os nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado antes de lhe cair a maçã na carola, e só acredita na força da gravidade quando assistir a um fellacio em queda livre, dificilmente captará que a presença de Deus na vida das pessoas não é um fenómeno social, tal como a queima do leite creme não o transforma numa joana d’arc, ou seja: ‘o povo’ e o ‘século’ não são de facto o caminho da Igreja. O caminho da Igreja são as almas dos homens e a sua ligação com um Ente estranho, embirrante e pirrónico que é Deus. A fé é de facto um caminho misterioso, e pessoal, e íntimo, mas só a parolice camuflada de ironia a pode confundir com fascínio ou com manipulação, apesar de estas serem condimentos de todos os crentes, claro, tal como um Sócrates precisa dum Pinho, um católico à rasca precisa dum va de retro, e um bêbedo precisa dum licor beirão se a única outra opção for uma cerveja fanada. Pronto está a chegar o resto do pessoal a casa, vou socializar e secularizar, mas terei todo o cuidado para não apresentar tiques coloniais porque as condessas são todas morenaças.
Luna Park

«Quem não precisa de se não precisou de mais nada» de João Bénard da Costa, in ‘Os filmes da minha vida, na crónica sobre ‘Casablanca’
movimentos elementares
Rafael Múgica (aka Gabriel Celaya) © gipuzkoakultura.net

Si el sol sale, zumba, truena / como un dios antiguo de la luz poderosa, / hermoso, con sus barbas floridas y sus muslos / morenos, duros, recios, / también yo soy mujer, / también me abro en espasmo, pues eso es hacer versos: / llorar mientras resbalo por caricias y ríos / de sombra espesa y dulce.

Gabriel Celaya: «Posesion», in Movimientos elementales (Donostia-San Sebastián: Diputación Foral de Gipuzkoa, Departamento de Cultura, Euskara, Juventud y Deportes, 1999)
‘Guy Who Got a Headache and Accidentally Saves the World’ (*) from the dark side of the faith

Leio num blog chamado ‘a vida breve’ que «qualquer fé é uma alternativa à realidade», acrescentando um pouco mais à frente (mas mesmo pouco, pois nem precisou de escrever muito tal a densidade do seu pensamento) que «vive nessa terra de ninguém» que é o «fora do tempo». Estamos perante uma perfeitíssima fusão entre o peter panismo e o forrest gumpismo que, para além de se poder aplicar a tudo, desde a ciência até à culinária passando pelo jogging - basta ver quantos cientistas se terão esquecido de jantar para devolver à humanidade suada o clarão do conhecimento – reforça ainda mais a minha condição de crente que se descobre afinal esvoaçando alegremente num buraco negro desgalaxizado.

A ilusão-atarantada agnóstica ou ateia de que a fé coloca o homem a meio caminho entre o pavimento flutuante e o tecto falso só se pode compreender pela dificuldade que o conhecimento humano terá em distinguir perspectivas e dimensões, e não conseguir vislumbrar num rabo botticceliano a riqueza duma esfera euclideana, e no barulho dos calhaus na maré vazia não conseguir descortinar um timbre bobdylaniano.

Não há nada como pensar arrastando os pés, não a vá a realidade fugir-nos.

Para os agarradinhos à apalpabilidade quando começa o mistério acaba o orgasmo sem sequer passar pela fase dos beijos ardentes.

(*) título de música dos flaming lips’
chorda Achillis
Campari by Blahnik (Outº- Invº 94/95)
(As melhores) declarações de amor (lidas e ouvidas) em Fevereiro

Bonnie ‘Prince’ Billy, no seu disco do ano passado ‘The letting go’, começa logo na primeira faixa ‘Love comes to me’ com um delicioso : «O, sugar won’t you be my only / I’m a hard-hearted honey-pot hungry shepherd / And I’m longing to be born for you». Ora dizer-se que desejávamos ter nascido por/para alguém, é – para além dum desafio ao criador – um dos clímax na declaração amorosa; ao mesmo nível está a obrigatória insaciedade, elemento fundador da relação amorosa, sem a qual ela se pode parecer a uma mera receita de arroz doce; os ‘The Shins’, aquela mistura deliciosa entre os ‘Smiths e o Tony Carreira, no seu recente ‘wincing the night away’, cantam em ‘Red Rabits’: «Born on a desert floor, you’ve the deepest thirst, / And you came to my sweet shore to indulge it, / With the wan and dreaming eyes of an orphan,/ But there is not enough, /There is not enough.». Isto ficou imediatamente a pedir assim uma coisinha mais suave, e o ícone do country-folk-rock americano, (ícone é sempre um bom e sugestivo nome para usar) Lucinda Williams ( que tem já este ano um disco novo – ‘West’) não desilude no seu disco mais famoso ‘Car Wheels On A Gravel Road’ e, em ‘Right In Time’, canta o tão necessário e reconfortante óbvio: «Not a day goes by I don’t think about you / You left your mark on me it’s permanent a tattoo / Pierce the skin and the blood runs through / Oh my baby / The way you move it’s right in time».

Faço ainda notar que «poets remain in love for the rest of their lives», como escreveu Robert Graves, o seco poeta ( e mais) inglês ( do qual eu não percebo 99% dos poemas, e que viveu uma paixão obsessiva (*) com a poetisa americana Laura Riding – conhecida por tê-lo manipulado que nem um folhado de salsicha entremeado de crepe chinês e, por, um dia, pura e simplesmente ter deixado de escrever poesia, e ter-se dedicado à escrita filosófica pré- alain de boutton), que também, num dos seus mais célebres poemas ‘To Juan at the Winter Solstyce’, enuncia, por acaso, o maior dogma reprimido da amorosidade: «There is one story and one story only »( como se comprova eu só consigo apanhar uma ou outra frasezita simples e solta do gajo). Mas nem a alma nem o corpinho aguentam tanta Musa Enigmática e distante, e o mês acabou a ouvir repetidamente ‘The Charlatans’: «Loving you is easy ‘cause you’re beautiful». Obrigatório, como agora, obrigatoriamente, se deve dizer.

(*) em 2008 aparentemente sairá o filme ‘Poetic Unreason’, que retrata esta relação entre Robert Graves e Laura Riding, e no qual a personagem desta moça será interpretada pela Frances O’Connor, um dos narizes afilados e empinados mais embirrantes da história do cinema moderno. Está bem para a Laurinha.
Luna Park

«Apenas ao cair do crepúsculo a coruja de Minerva estende as suas asas.» - Hegel, 1821: Fundamentos da Filosofia do Direito
You gotta give to get



El Perro del Mar - «God Knows»
Luna Park

«Não se pode sonhar com um homem qualquer. Um marido é fácil, relativamente fácil, apesar de difícil. Mas um homem para sonhar, um homem para sonhar e que veja em mim somente uma mulher para sonhar e que não exija mais de mim…» in «Bolor», Augusto Abelaira, Ed. Bertrand, 1968 (pp 188)
YouTubas bem mas não m’alegras

Desde que esta coisa dos blogs se tornou uma filial do youtube nunca mais se conseguiu dar um passeiozito pela blogaria descansado e descontraído. Ele há um pouco de tudo, mas, basicamente, ninguém quer perder a hipótese de descobrir um achado youtúbico, uma novidade cacaregante. Tenho algumas saudades dos tempos em que as verdadeiras discussões que interessavam eram sobre quem punha e não punha fotografias, quem tinha ou não comentários, quem tinha ou não aldrabado a leitura do Proust, quem usava e abusava ou não dos itálicos, quem citava ou não o Pavese, e depois, até quem impingia ou não uma musiquita. Qualquer dia, em vez de se gozar com o pacheco pereira, ou com a florbela espanca, até haverá gente a pôr vídeos com saraus de ginástica ou entrevistas com o Armando Vara. Falhos de conteúdo, cansados da forma, e obliterados de imaginação, deixámo-nos levar pela ilusão do movimento.
pijn
O Eclipse de facto foi ontem, no entanto,

(a utilização da expressão ‘no entanto’ revela já a continuidade dum processo discursivo interior, todo ele muito próprio de seres com tendência mais espiritual, se bem que não desprezem nem os compromissos biológicos para com a espécie, nem os sociológicos para com o próximo)

mme, penso que terá chegado a altura de a confrontar, e de caminho à sua liberdade, criatividade, técnica e expressividade foto-criativa, com o Futurismo Russo. Confesso que às primeiras hesitei um pouco mas queria definitivamente partilhar consigo uma especial, e antiga, predilecção minha com o poeta Viktor (depois começou a usar Velimir) Khlebnikov. Não, não a irei maçar esparramando aqui poesia destrambulhada, espasmos de ‘zaum’ (nome que os gajos deram para a linguagem para além da razão e do sentido – ‘beyonsense’ é uma tradução gira para inglês, não é? até faz lembrar aquela moça jeitosa que canta e tudo, e que daria uma ilustraçãozinha extra em bom na parte final do post, assim de sobremesa, à falta de profiteroles e capilé, pois claro) delirante, mas que ajudou a produzir um dos mais fascinantes poetas russos que se alimentou daquele ‘etimologismo’ egocêntrico de quem usa as palavras fora do seu significado no dicionário, mas sim naquilo que ele achava ser o seu significado inicial e próprio. Mas deixo rápido estas miudezas, a Sra tem as suas coisinhas e não pode perder tempo com as taras dum grafomaníaco como o Kh.

Pois então este rapaz, que escrevia manifestos bárbaros ao mesmo ritmo que correia de campos fecha e abre urgências e sap’s, a dada altura informou ao povo: ‘conhecemos sentimentos que não existiam antes de nós’ (*). Foi das frases mais importantes que li até hoje (tirando obviamente uma ou outra solta da Inês Pedrosa ou do José Lello) , e que combina até muito bem com o próprio enunciado futurista do Khlebnikov: ‘o estudo da influência do futuro sobre o passado’, lembrando uma mistura explosiva entre Kundera, Picasso e a astróloga Maia, ou seja, excessos de ego e de perspectiva.

Ora o poema mais célebre deste artista intitula-se ‘O encantamento do riso’ (para os amigos ‘Zaklinanie smekhom’) e reduz-se a doze linhas a brincar com palavras derivadas de ‘sme’ (riso); saliento (lá está o meu lado masculino outra vez) que a melhor homenagem que lhe podemos fazer é mesmo lê-lo em russo pois perceberemos o mesmo se o lermos numa tradução qualquer, e é esta inclusive uma das suas grandes virtudes, e que o torna um autor tão universal como a aceitação das músicas do Tom Waits no Carnaval de Espinho, o qual, também me parece estar sempre a cantar o poema mais famoso do ‘zaum’, retirado dum livro já ele de titulo bastante sugestivo, ‘Pomada’:

Dyr bul shchyl
Ubeshchur Skum
vy sobu
r l ez

Apesar de isto tudo me lembrar imenso a Beyonce, como já tive ocasião de transmitir supra, não queria deixar de pelo menos aqui plantar uma coisinha em condições do rapaz :

Quando morrem, os cavalos - respiram,
Quando morrem, as ervas - secam,
Quando morrem, os sóis - se apagam,
Quando morrem, os homens - cantam.

É para que vejam.

(*) in Viveiro de Juízes, 1914 (ed. Arcádia, 1971)
Berlindagem de estatutos

Novo vencedor do concurso BES FOTO

Eu cá agora sugeria à mme que me anda sempre a mandar aqui boquinhas e coiso que arranjasse uma fotografiazinha assim dum berlinde com o símbolo da PT lá dentro e com o dedinho de Sócrates a dar-lhe uma quincadelazinha e com o Belmiro de bibe a pedir que então lhe deixem agora abrir os supermercados aos domingos à tarde e assim senão eu também fico um bocadinho blindado perdão melindrado e se quiser legendá-la como Abafador BES também pode mas não sei se serão muitos trocadilhos juntos e tal.
Mas YouTubadas agora é que não vale


A Sra ainda me está em falta com a fotografiazinha do ‘abafador BES’ – ‘o berlingador de estatutos’, mas não resisto a trazer aqui à postagem que, quando colocou aquele seu último cartoon com a ruiva encostada à carripana do gajito de cabelo ralo, numa diáfana provocação, lembrei-me de imediato da capa do disco dos ‘Beirut’- ‘Gulag Orkestar’, saído o ano passado. Quero-lhe desde já dizer que, independentemente da capa, – já lá iremos – o disco é muit’bom. No fundo até será eventualmente apenas um puto virtuoso a cantar músicas inspiradas naquilo que se pode chamar o folk-aciganado da europa do leste, uma mistura de morricone com kusturica (já ouviu os ‘Devotchka’ por acaso?) apesar do gajo ser bem americano, do mesmo sítio donde vieram os ‘The Shins’, que conhece certamente pois toda a gente fala desses gajos que fazem música para elevadores panorâmicos e bichas na autoestrada. Mas a sra se calhar pode não gostar deste, temo-o, até porque o Cura não conseguia cantar daquilo em condições, e isso descompensa-a bastante, já sabemos. Ora o disco começa logo com uma cornetada arrastada ali entre a marcha e a tourada e depois é um vê se te avias de música boa, como só um gajo que ainda nem fez 20 anitos consegue fazer. (a partir dos 25 só querem fazer letras, mas para isso já existem as massinhas da canja, não será?). Há lá uma musiquita mais badalada que é o ‘Scenic world’ – dizem mesmo que as letras do disco são uma porcaria (neste contexto cabia melhor o termo ‘merda’, mas como é para a Sra escrevi porcaria), mas aqui para nós eu nem percebo o que o gajo diz (ou half-esganiçadamente canta, mais propriamente) – só que, quando chegar à faixa nº 5 ‘Postcards from Italy’, verá que estamos perante um ganda disco, gingão, melodioso, envolvente e isso tudo, e, como dizia um crítico do cdtimes.co.uk (tope só a pintarola destas referências) «the perfect antidote to the rush of skinny guys with guitars and spiky hair that seem to prevail at the moment» que eu muitas vezes lhe ‘faço’ouvir (pus estas semi aspas para ficar claro que só ouve se quiser e eu nem fico blindado, perdão lá lapsei de novo - e nem sei porque é que este ‘blindado’ se me encrostou no subconsciente – melindrado, queria eu dizer, se não as ouvir).

Voltemos mas é à capa do disco que é o que realmente interessa. Olhe, é que já nem se fazem pernas daquelas, e repare-me nas alcinhas - credo, e ainda há quem compre o disco para ouvir a música – na parte da matricula só a ver-se ‘AA’ como se até ao carro estivessem a eriçarem-se-lhe os bornes da bateria, no lencinho a apanhar o cabelo, nas pernas semi traçadas, nos joelhos rechonchudos e renascentistas, a rapariga a subir ligeiramente a saia e a mostrar bem o forro encarnado, e a deixar cair o olhar, ficando nós a pensar – eu cá fiquei - se será vergonha, se desinteresse, mas sem pôr de parte a hipótese da malandrice - nem sei o que lhe diga mais, mas ficava mal se me fosse sem lhe recomendar a faixa 9, ‘Bratislava’, que começa com uma bandolinzada deliciosa, e também se deixa ouvir tão bem; saliento-lhe ainda (salientar é bastante masculino) que o disco termina com uma música já um pouco mais lamurienta, mas com um título deveras sugestivo: ‘After the curtain’, que certamente até a pode vir a acompanhar em momentos de mais agulha e dedal que, como se sabe, preenchem a vida duma fada do lar; olhe madame, faça-me outra vez a fineza, googla-me a imagenzinha da capa do disco, é fácil, e eu só terei pecado por inabilidade na descrição, e coloca-a aqui neste estabelecimento que tão cirurgicamente administra, e que eu tão criteriosamente abandalho (agora até arranjava uma rima jeitosa, mas não dá), pode ser? Ah, e a nº 2, ‘Prenzlauerberg’ (nem o Wagner arranjava nomes assim) acompanha optimamente com pão e azeitonas, apesar do óptimo ser inimigo do bom, já se sabe.


liebling Sünden

«Gosto do aroma do papel, de todos os tipos. Lembra-me o aroma da pele. […] O cheiro de papel branco é como o aroma da pele de um amante novo que tenha acabado de fazer uma visita surpresa vindo de um jardim chuvoso. E a tinta preta é como o cabelo envernizado. E a pena? Bem, a pena é como esse instrumento de prazer de cuja a finalidade nunca se duvida mas de cuja surpreendente eficiência nos esquecemos sempre, sempre.»

Nagiko in «O Livro de Cabeceira» (Peter Greenaway, 1996)
Pela Passadeira Rosa. Os Óscares da paróquia.

Melhor filme
Referendo ao aborto (apesar de ser uma sequela, desta vez as t shirts eram piores mas as miúdas mais giras)

Melhor realização
Sócrates, sempre entre o ‘fazer o que tem de ser feito’e o ‘quanto mais choram menos mijam’, juntando o potencial mímico do cinema mudo com o potencial distractivo dos grandes musicais

Melhor montagem
Vasco Rato e Odete Santos juntos na luta pelos direitos da mulher

Melhor argumento original
O reformismo socratalista. Um guião baseado na ideia de Portugal como uma grande Cova da Iria, em que todos somos pastorinhos a tratar de arranjar a melhor sombra na Azinheira, mas, no fundo, sabendo que a coisa só se resolve mesmo quando a Santa aparecer. Realizado por Joaquim Sapinho, dado que, se o temos de engolir ao menos que seja pequenino

Melhor argumento adaptado
Reuniões Camarárias na CML ( baseado no livro de fusão: ‘A última ceia em Paris’, mas sem vaselina (leia-se manteiga) nem beijo de judas)

Melhor documentário
Correia de Campos é apanhado por um frúnculo na virilha às 2 da manhã em Chaves com o motorista a trocar o alibut por vaqueiro com alho, ex aequo com a dissertação do casal C. Silva sobre a comida indiana

Melhores efeitos especiais
Feto às dez semanas, com nariz às treze, pila às doze, risinho sacana às quinze e micoses free

Melhores guarda roupas
Clara de Sousa e Paulo Portas no ‘estado da Arte’ ex aequo com Mª José Morgado (prémio carreira pela decoração dos olhos)

Melhor direcção artística
Aquele gajo da quadratura do círculo que consegue fazer o Jorge Coelho parecer uma espécie de entretém amestrado do JPP e do ALX, fazendo-lhes as pausas para beberem um copinho de água

Melhor banda sonora
Ladainha do: ‘mas alguém quer que as mulheres vão para a cadeia’

Melhor filme de animação
M. Pinho na loja do chinês reclamando que os produtos estão caríssimos e não há planos tecnológicos da playmobil
Luna Park

«Natureza – Imaginavas, talvez, que o mundo tivesse sido feito por vossa causa? Pois fica sabendo que as minhas obras, planos e acções, com poucas excepções, sempre pus e ponho as minhas intenções em tudo menos na felicidade ou na infelicidade dos homens. Quando de qualquer maneira vos molesto, e seja qual for o meio que uso, não me apercebo de que faço, a não ser raríssimas vezes; do mesmo modo que, normalmente, se vos causo prazer ou benefício, não sei que o fiz; e, ao contrário do que pensais, não fiz as coisas que descreveste e não pratico as acções que referiste, para vos ser agradável ou útil. E, para terminar: mesmo que se desse o caso de eu extinguir toda a vossa espécie, não daria por isso.»

de Giacomo Leopardi in ’Pequenas Obras Morais’ – ‘Diálogo da Natureza e dum Islandês’ (ed Relógio D’Água)
still waiting, sir?