Quem filáucia sempre resmoneia


O sr Calisto entristeceu-se quando percebeu que tinha sido usado pela doutora Ludovina. A sua ignorância etimológica não lhe permitiu detectar no nome dela essa vertigem para a brincadeira, e confiou-lhe abertamente as suas pulsões, complexos, recalcamentos e outras azias d’ego, como quem deixa uma camisa amarrotada numa engomadaria. Quando ela lhe dizia ao ouvido «és o exemplar de homem que põe qualquer mulher que nem o tambor duma wirthpool» ele sentia-se ligeiramente incomodado, mas jamais suspeitou que, para além do corpo, a cabeça dele também estava ali a render. Acabou por se sentir vingado quando a viu frágil e hesitante em tribunal, defendendo-se da acusação de tráfego ilegal de subconscientes sob hipnose. O advogado dela era um tipo gordinho, bem falante, bem calçado, via-se que gostava de saber o chão que pisava, e via-se também que conhecia desse negócio de roubar consciências, babando constantemente as ausências de ‘prova material’ e os ‘nexos de causalidade’, mas tendo um pudor tremendo a usar a palavra ‘coincidência’, quase com medo que olhassem para ele como um mero canalizador de factos e não um litigador de razões.
O sr Calisto não percebia essa alergia generalizada do mundo moderno ao valor das coincidências; ele, sempre que lhe diziam «só o sr Calisto me consegue descobrir decentemente onde centrifugo melhor», respondia invariável, ingenua e quase poeticamente: só pode ser coincidência, sou apenas um homem que Deus quis que bonito fosse.
Um certo dia, ainda mal refeito da experiência com a dra Ludovina, teve um serviço num gabinete de arquitectura que se tinha especializado em health clubs. Estavam com um problema no enquadramento da zona de lavagem das toalhas, que interferia sistematicamente com a pressão na borbulhagem dos jakuzis. O sr Calisto nunca tinha conhecido uma arquitecta, mas quando viu a arq Flávia sentiu as mãos a tremer-lhe. Debruçados sobre os desenhos, como que cheirando caninamente o papel vegetal, a arquitecta Flávia introduziu-o nos mistérios da perspectiva, enquanto que Calisto («Flávia, deixe o ‘senhor’, por favor») lhe desvendava os segredos inimagináveis do ponto de centrifuga. Naquele novo balneário, as borbulharias seriam um vê se te avias.

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