Eu já o temia antecipadamente. O mais irritante que existe é uma coisa que era suposto irritar-nos acabar por não nos irritar convenientemente. Mário de Carvalho escreve este livro sabendo desde o início que ele vai ser uma trampice e, por isso, tirando uma ou outra utilização irritantezinha de palavrinhas tolas, não investe nem se desgasta nos artifícios de engracadice que são a sua marca de água. Procurando aplicar os segredos da profundeza da alma russa às relações entre irmão e irmã no madurez da vida, faz apenas um daqueles livros banais sobre «caos de crepitações, a chispar à deriva, num fundo tisnado de falhanços», polvilhado de algum sortido de palavreado fornecido pelos dicionários de sinónimos, do qual se aproveitam o ‘resmonear’ da página 15 ( que irei usar e abusar) e o ‘ripipilar' da página 169 (que já terei mais dificuldades porque tenho uma curvatura de palato muito acentuada, é boa para o assobio mas menos adequada ao ripipilo), se bem que o clássico ‘filáucia’ da página 153 tenho toda a sensação que ainda me vai ser útil - mas, sosseguem, não estou a confundir com outra coisa. O momento ternurento que me chegou a alimentar algumas esperanças aí pela meia noite e meia foi quando, na página 93, MdCarvalho constata que ao personagem Gustavo lhe «desagradava que ela usasse roupa interior desirmanada», suscitando-me inclusivamente que se devia criar a grande ‘Desirmandade das Cuecas’ a fim de recolher e apoiar aqueles que não conseguem dar um flic flac na presença dum soutien que não condiga, mas não podia deixar de aproveitar o saudoso método George e assim detectar uma repetição de ‘encastelar’ na mesma página (pág 27), algum exagero no uso do ‘subjazer’ - mas que não chega a ser um subxagero – e uma nova repetição, dalguma forma mais desgastante, de 'calhandrice', se bem que esta acaba por estar na sentença da página 35 que me parece definitivamente proveitosa para o actual mundo do trabalho precário: «umas vezes era actriz, outras dactilógrada, às vezes montadora, nos múltiplos sentidos do termo, e sempre calhandreira».

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