Quando entrei hoje no restaurante levava comigo uma estranhamente-estranha-estranheza
espalhada por todo o corpo. Tentei sacudi-la com duas ou três parvoíces mentais
da família das boas recordações mas essa estranhamente-estranha-estranheza esbarrava
sempre com os poros da pele fechados não a deixando sair.
Sentei-me numa das poucas mesas livres, a casa estava bem
compostinha como nos velhos tempos dos deficits glamorosos, e anda nem tinha
coçado convenientemente a testa já a rapariga-dos-molhos me vinha provocar com
um previsível (encomendado?) «então hoje não trouxe nenhuma das suas
amiguinhas?». Como andei a treinar olhares corri-a com um do género dos
fulminantes que a fará desaparecer para a freguesia dos couverts durante uma
semana.
Foi substituída por um rapaz de toque apaneleirado, qualquer
restaurante que se preze tem de possuir um exemplar desses, e a L. quando toca
a escolher paneleiros esmera-se. Ainda pensei que me fosse sugerir salsicha em
couve lombarda, mas não, ficou-se por uns lombinhos de porco preto que eu, só
para o contrariar, troquei por picanha.
Diz a vida, enquanto a mãe de todos os ensinamentos, que
elas acontecem quando menos se espera, e foi precisamente enquanto eu pensava
em rigorosamente nada de interesse, algo que faço com particular esmero e
intensidade, que a L. se chega à mesa e pergunta se se pode sentar, usando
aquele seu ar formal que me irrita mais que picante em colon inflamado. «Não
gostaste do meu empregado novo?». Como aproximação pareceu-me interessante, bem
melhor que perguntar-me o que teria acontecido a uma fatia importante do meu
cabelo desde a última vez que nos víramos. Ri-me para ela, talvez por instinto,
pois devo julgar que ela gosta de me ver sorrir e que isso a desarma um pouco. Está
explicada a estranhamente-estranha-estranheza, pensei, e ainda fui a tempo de
ouvir «ficaste mudo, ou quê?». Estava a pensar o que te faz prender agora tanto
tempo na cozinha – respondi, ainda com o sabor da manteiga de alho a betumar-me
o céu-da-boca. Tenho andado apenas a ganhar tempo junto ao quentinho do forno –
disse L. com uma rapidez de resposta que me deixou intranquilo. Depois,
tocou-me na mão, como já fizera milhares de vezes, levantou-se e desapareceu no
horizonte. Mas, para mim, naquele momento, 20 centímetros à minha frente já era
horizonte. Inda agora não sei como acabou aquele almoço, devem-me ter posto
numa ambulância e descarregado no escritório com uma tabuleta ao pescoço
dizendo: canja durante dois dias e deixá-lo ressuscitar ao terceiro sem fazer
muitas perguntas.
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