Almoços Grátis. série 3 [8]

Quando entrei hoje no restaurante levava comigo uma estranhamente-estranha-estranheza espalhada por todo o corpo. Tentei sacudi-la com duas ou três parvoíces mentais da família das boas recordações mas essa estranhamente-estranha-estranheza esbarrava sempre com os poros da pele fechados não a deixando sair.
Sentei-me numa das poucas mesas livres, a casa estava bem compostinha como nos velhos tempos dos deficits glamorosos, e anda nem tinha coçado convenientemente a testa já a rapariga-dos-molhos me vinha provocar com um previsível (encomendado?) «então hoje não trouxe nenhuma das suas amiguinhas?». Como andei a treinar olhares corri-a com um do género dos fulminantes que a fará desaparecer para a freguesia dos couverts durante uma semana.
Foi substituída por um rapaz de toque apaneleirado, qualquer restaurante que se preze tem de possuir um exemplar desses, e a L. quando toca a escolher paneleiros esmera-se. Ainda pensei que me fosse sugerir salsicha em couve lombarda, mas não, ficou-se por uns lombinhos de porco preto que eu, só para o contrariar, troquei por picanha.
Diz a vida, enquanto a mãe de todos os ensinamentos, que elas acontecem quando menos se espera, e foi precisamente enquanto eu pensava em rigorosamente nada de interesse, algo que faço com particular esmero e intensidade, que a L. se chega à mesa e pergunta se se pode sentar, usando aquele seu ar formal que me irrita mais que picante em colon inflamado. «Não gostaste do meu empregado novo?». Como aproximação pareceu-me interessante, bem melhor que perguntar-me o que teria acontecido a uma fatia importante do meu cabelo desde a última vez que nos víramos. Ri-me para ela, talvez por instinto, pois devo julgar que ela gosta de me ver sorrir e que isso a desarma um pouco. Está explicada a estranhamente-estranha-estranheza, pensei, e ainda fui a tempo de ouvir «ficaste mudo, ou quê?». Estava a pensar o que te faz prender agora tanto tempo na cozinha – respondi, ainda com o sabor da manteiga de alho a betumar-me o céu-da-boca. Tenho andado apenas a ganhar tempo junto ao quentinho do forno – disse L. com uma rapidez de resposta que me deixou intranquilo. Depois, tocou-me na mão, como já fizera milhares de vezes, levantou-se e desapareceu no horizonte. Mas, para mim, naquele momento, 20 centímetros à minha frente já era horizonte. Inda agora não sei como acabou aquele almoço, devem-me ter posto numa ambulância e descarregado no escritório com uma tabuleta ao pescoço dizendo: canja durante dois dias e deixá-lo ressuscitar ao terceiro sem fazer muitas perguntas.

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