O tempo instável pregou-me uma partida e entrei no
restaurante meio encharcado. Solícita, uma empregada bonitinha veio
emprestar-me um turco para me secar « se desejar». Desejo, claro, eu nunca
perco o desejo. No dia do juízo final terei mesmo de o fazer depor para me
atenuar o balanço das penas. Fiquei indeciso entre as ovas e uns mexilhões
panados que eram uma das novidades que ainda não tinha experimentado. Sentindo
se calhar alguma solidariedade escolhi-os. «Boa escolha, estes são de mergulho»
disse a rapariga dos molhos que por estes dias já não é capaz de passar sem
largar uma da sua graça. A L. estava encostada ao balcão e quando me viu teve a
tentação de se aproximar, mas rapidamente a reprimiu como que uma voz interior
lhe tivesse soprado uma buzinadela. Não há pior desprezo do que aquele que
resulta de um desejo reprimido, gostaria de lhe ter dito. Óptimos mexilhões. Também
seria receita do cabrão do óscar? Movido por um impulso, daqueles ainda não
explorados pela ciência nem pela indústria dos desodorizantes, acenei para a L.
Ela, movida por um impulso certamente ainda menos estudado, veio ter comigo. Em
vez do seu irritante clássico marcador de perímetros de segurança ‘Diga por
favor’, sentou-se logo e esboçou-me um sorriso que me pareceu sincero. Já me
mentiu várias vezes mas ainda gosto de pensar nela como uma pessoa sincera comigo.
Eu, estupidamente, nunca lhe menti. Pergunto-lhe se quer comer um tiramisu a
meias. Antes comíamos muitas coisas a meias. Ela acede e manda trazer um prato
com dois garfos. Chega um garfo, digo eu, e acrescento com uma certa solenidade
romântica: se não te posso beijar então deixa-me pelo menos tocar nos vestígios
dos teus lábios. «Continuas parvo, isso é a teu favor». Rimo-nos os dois. Há
quanto tempo não ríamos juntos? Se pudesse escolher uma tumba escolheria os
lábios dela e neles a minha carne repousaria em descanso. Requiescant in
labrorum. Não soa muito bíblico mas nem tudo o que os discípulos fizeram vem
descrito nos Actos dos Apóstolos.
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