Lombo. Hoje apeteceu-me mesmo um daqueles bifes de lombo.
Redondo, cheio duma carne sem sombra de nervos, liso, quase artificial, mesmo
produzido à base de um bocadinho de photoshop culinário. Comer como quem guia
numa autoestrada vazia, sem ter de saborear, sabendo de antemão que o corpo vai
receber aquilo com a mesma naturalidade de quando boceja ou tosse. Era o dia do
aniversário do restaurante, havia um tiramisu especial, e a L. andava de mesa
em mesa, numa roda-viva, entregando-se
a todos com o mesmo esmero com que se dedicava a nem sequer dar nota da minha
presença. A diferença entre presença e existência é que se a esta última
chegamos a ela pela puta da filosofia, à presença só lhe tocamos mesmo
quando sentimos que alguém gosta de nós. A L. já tinha gostado de mim, claro,
há dois anos até me escreveu que o único
sal que conhecia era o meu. Se calhar estava a mentir, um anjo pôs-lhe
pimenta na língua para sempre e agora culpa-me por isso. Deixei metade do bife
no prato, podia ser que ela o guardasse como relíquia, picasse, fizesse um rolo
de carne e dormisse com ele embrulhado em papel de alumínio pulverizado com
perfume de orégãos. Já ia a meio do tiramisu (ainda estive para o não comer por
birra, não é bem birra, um homem adulto (mas não adulterado) não faz birras, é
despeito, ressentimento, que se diz) quando ela passou ao lado da mesa.
Inesperadamente deixa lá um bilhete dobrado e afasta-se num passo hesitante.
Helás: toda a conquista (reconquista?) passa por uma hesitação. O papel
fixou-se ali em cima da mesa e nem se mexeu, podia ser um daqueles papéis com
asas mas não era. Eu iria ter de o abrir, mas tinha de fazer um movimento com
alguma pose, não é Charlemagne quem quer, porra. «Por muito tempo». Só lá
estava escrito «por muito tempo». Mas o que é esta merda!? Já nem um ‘até que a
morte nos separe’ soube escrever. Ou será que eu já morri e nem dei por isso?
Pedi à rapariga dos molhos para me beliscar e ela fugiu: meio assustada, meio
sem saber se havia de contar à patroa, meio corada. Parecia inchada, daí os
três meios.
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