Almoços Grátis. série 3 [4]

Lombo. Hoje apeteceu-me mesmo um daqueles bifes de lombo. Redondo, cheio duma carne sem sombra de nervos, liso, quase artificial, mesmo produzido à base de um bocadinho de photoshop culinário. Comer como quem guia numa autoestrada vazia, sem ter de saborear, sabendo de antemão que o corpo vai receber aquilo com a mesma naturalidade de quando boceja ou tosse. Era o dia do aniversário do restaurante, havia um tiramisu especial, e a L. andava de mesa em mesa, numa roda-viva, entregando-se a todos com o mesmo esmero com que se dedicava a nem sequer dar nota da minha presença. A diferença entre presença e existência é que se a esta última chegamos a ela pela puta da filosofia, à presença só lhe tocamos mesmo quando sentimos que alguém gosta de nós. A L. já tinha gostado de mim, claro, há dois anos até me escreveu que o único sal que conhecia era o meu. Se calhar estava a mentir, um anjo pôs-lhe pimenta na língua para sempre e agora culpa-me por isso. Deixei metade do bife no prato, podia ser que ela o guardasse como relíquia, picasse, fizesse um rolo de carne e dormisse com ele embrulhado em papel de alumínio pulverizado com perfume de orégãos. Já ia a meio do tiramisu (ainda estive para o não comer por birra, não é bem birra, um homem adulto (mas não adulterado) não faz birras, é despeito, ressentimento, que se diz) quando ela passou ao lado da mesa. Inesperadamente deixa lá um bilhete dobrado e afasta-se num passo hesitante. Helás: toda a conquista (reconquista?) passa por uma hesitação. O papel fixou-se ali em cima da mesa e nem se mexeu, podia ser um daqueles papéis com asas mas não era. Eu iria ter de o abrir, mas tinha de fazer um movimento com alguma pose, não é Charlemagne quem quer, porra. «Por muito tempo». Só lá estava escrito «por muito tempo». Mas o que é esta merda!? Já nem um ‘até que a morte nos separe’ soube escrever. Ou será que eu já morri e nem dei por isso? Pedi à rapariga dos molhos para me beliscar e ela fugiu: meio assustada, meio sem saber se havia de contar à patroa, meio corada. Parecia inchada, daí os três meios.

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