Hoje escolhi uma japonesice que aparecia no menu. Um rolos
de salmão a envolver uns pedaços de peixe manteiga misturados com um queijo
que, não duvidando que proviesse duma vaca, já não ponho as minhas mãos sobre
aquilo que a dita pastaria ou pastará. Não sei onde é que a L. desencantou
aquelas ideias, mas revelou-se bastante bom. O restaurante estava à pinha, tive
inclusivamente de esperar por uma mesa vaga, o que aconteceu pela primeira vez
desde que lá voltei. Numa das mesas estava um antigo amigo da L. e , como seria
de esperar, ela ia-se desmanchando em solicitude. De vez em quando fazia-me umas
caretas, daquelas que podem dizer tudo mas que na realidade não dizem nada e nos
deixam à solta numa equação de biorritmos. Chamei a rapariga dos molhos com o
intuito de me meter com ela mas, como seria previsível, sou bastante melhor no
improviso e saiu-me uma piada qualquer meio desconchavada que já nem me lembro
bem. Certamente por educação riu-se e, hélas, passou-me (tecnicamente pode-se
mesmo dizer que pousou) a mão pelo ombro. Um tipo quando se torna uma flor de
estufa sentimental, quer por fragilidade quer por mera tática, desenvolve um
potencial sensorial digno dum programa da national geographic, aliás um ser
enamorado só não caça moscas com a língua porque a preserva para outras coisas.
Ainda pensei em flirtar um bocadinho a rapariga só para ver a reacção da L. mas
não quis correr o risco de descobrir que lhe era indiferente, ou, até pior, que
tinha sido ela a indicar-lhe para se vir meter comigo, como quem pratica um
desporto novo. E assim perdi uma hora de almoço com estes pensamentos elevados
que só não fazem girar o mundo porque este está perro e totalmente dependente
dum monte de gazes que convencionámos chamar sol.
Almoços Grátis. série 3 [14]
O tempo instável pregou-me uma partida e entrei no
restaurante meio encharcado. Solícita, uma empregada bonitinha veio
emprestar-me um turco para me secar « se desejar». Desejo, claro, eu nunca
perco o desejo. No dia do juízo final terei mesmo de o fazer depor para me
atenuar o balanço das penas. Fiquei indeciso entre as ovas e uns mexilhões
panados que eram uma das novidades que ainda não tinha experimentado. Sentindo
se calhar alguma solidariedade escolhi-os. «Boa escolha, estes são de mergulho»
disse a rapariga dos molhos que por estes dias já não é capaz de passar sem
largar uma da sua graça. A L. estava encostada ao balcão e quando me viu teve a
tentação de se aproximar, mas rapidamente a reprimiu como que uma voz interior
lhe tivesse soprado uma buzinadela. Não há pior desprezo do que aquele que
resulta de um desejo reprimido, gostaria de lhe ter dito. Óptimos mexilhões. Também
seria receita do cabrão do óscar? Movido por um impulso, daqueles ainda não
explorados pela ciência nem pela indústria dos desodorizantes, acenei para a L.
Ela, movida por um impulso certamente ainda menos estudado, veio ter comigo. Em
vez do seu irritante clássico marcador de perímetros de segurança ‘Diga por
favor’, sentou-se logo e esboçou-me um sorriso que me pareceu sincero. Já me
mentiu várias vezes mas ainda gosto de pensar nela como uma pessoa sincera comigo.
Eu, estupidamente, nunca lhe menti. Pergunto-lhe se quer comer um tiramisu a
meias. Antes comíamos muitas coisas a meias. Ela acede e manda trazer um prato
com dois garfos. Chega um garfo, digo eu, e acrescento com uma certa solenidade
romântica: se não te posso beijar então deixa-me pelo menos tocar nos vestígios
dos teus lábios. «Continuas parvo, isso é a teu favor». Rimo-nos os dois. Há
quanto tempo não ríamos juntos? Se pudesse escolher uma tumba escolheria os
lábios dela e neles a minha carne repousaria em descanso. Requiescant in
labrorum. Não soa muito bíblico mas nem tudo o que os discípulos fizeram vem
descrito nos Actos dos Apóstolos.
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Almoços Grátis. série 3 [13]
Hoje escolhi franguinho da guia. É uma receita que a L. já
costumava fazer antes e que eu apreciava especialmente. Não tem nada de
original, mas é muito saboroso e eu hoje não queria correr riscos. Sentei-me
numa das mesas mais próximas da entrada da cozinha e apelei a todas as minhas
reservas de curiosidade para tentar perceber o que se passava do lado de lá.
Reparei que havia uma televisão nova na parte de dentro do balcão, talvez a L.
quisesse acompanhar mais de perto as notícias nestes tempos de tsunicómio e austeridadismo
utópico, ou então estava mesmo apaixonada por algum enterteiner…Bocejei uma ou
duas vezes e a rapariga-dos-molhos não perdeu tempo a perguntar se me tinha
deitado tarde. Respondi-lhe que ter um harém às vezes rebenta-nos com o sono.
Foi aos risinhos para a cozinha e depois trouxe-me o franguinho com um recado
inesperado: «sabe que a dona L. agora vai todos os dias ao cabeleireiro?». Com
a primeira asa trinquei a língua, com a segunda rasguei o esófago. Este esquema
dos recadinhos a entremear conversas sem eira nem beira parecia estar a
tornar-se a fruta da estação. Comecei a pensar naqueles dias em que lhe
agarrava o cabelo numa mecha de oiro velho, a beijava como quem beija uma bola
de cristal e ela me focava ternamente com olhos-de-quem-gosta. Ter-me-á mesmo trocado por
um óscar qualquer e agora vai fazer gato sapato da minha dúvida, alimentando-se
dela como um tempero para o seu novo devaneio romântico? Deixei a salada de
tomate para o fim e comi-a como se fosse uma penitência. Pedi um café e
deixei-o esfriar. Pedi outro e deixei-o esfriar também. Pedi um terceiro e
trouxeram-me um limoncello com um recado escrito nas costas dum talão da conta de manicure: ‘se gosta frio é melhor que seja isto’.
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Almoços Grátis. série 3 [12]
Hoje passei por uma livraria antes de ir para o restaurante.
Levava comigo uma novidade absoluta por debaixo do braço e iria desfolhá-la entre
pratos. Peguei de forma compenetrada no menu e pedi algo que já andava há dias
para experimentar: ‘Delícias de bacalhau’ , e sobre a qual já assistira noutros
dias a imensa animação pelas mesas. A rapariga dos molhos quando recolheu o
pedido não resistiu a lançar-me um «estava a ver que não pedia este». A L. estava
deslumbrante. Não desfazendo nos outros dias, hoje havia qualquer coisa de
valha-me deus naquela mulher: um vestido cor de caramelo muito justo e um novo
corte de cabelo que me parecia estar mais alourado. Penso que fariam doses
familiares de baba de camelo só com a minha cara a olhar para ela. Numa das
suas passagens pela sala (hoje estava muito solícita para uma mesa onde estava
um jornalista da televisão – as mulheres derretem-se com um certo tipo de
homens que, bem, que se lixe) olhou para mim com ar de que me queria dizer
alguma coisa, ou pelo menos passar uma mensagem. Mas como ela sabe que eu sou
básico como receptador de enigmas cedo percebeu que tinha de se explicar
melhor. O prato era de facto bastante bom, algo da família da meia desfeita de
bacalhau e com um grão-de-bico ao qual também se poderia dizer que estava al
dente, como as massas. Julgo que ela ficou intrigada com o livro que eu de vez
e quando abria, já com alguma pitada de provocação, tenho de reconhecer, de tal
forma que ela a certa altura fez uma franzidela de face (daquelas gerais do
queixo à testa) como que a dizer-me: não sejas parvo mostra-me lá o que estás a
ler. Respondi com uma coçadela de polegar na base do lábio inferior que queria
dizer: ‘se quiseres saber vem cá’ à qual juntei um ligeiro movimento nervoso
com o indicador no queixo que significava ‘ai se te ponho as mãos em cima’.
Bem, pedi um cheesecake para acalmar. Passei por uma ou outra página tentando
não ser atraiçoado por algum movimento estúpido de pestanas ou sobrolho e
aguardei. Sentou-se trazendo consigo uma fatia de bolo de chocolate para ela. Infelizmente
não me saiu logo nenhuma piada rápida que não fosse totalmente ordinária e tive
de lhe dar a dianteira dialéctica: «Humm…o livro do Herberto Helder que saiu
hoje, sim senhor, muito em cima do acontecimento», « Ah, foi coincidência, como
sabes também ocorrem» - foi a resposta que também me ocorreu. «Senti muito a
tua falta, sabias?» - avançou ela entre fatias - «…gostaste da meia desfeita?» Duas
perguntas nos antípodas da sensibilidade masculina tornam-me irritadiço e
respondi «estás pendular…isso também é efeito dalguma receita do óscar?» Riu-se,
sem levar muito a cabeça para trás…e disse: «tu às vezes transformas o nosso
amor numa antecâmara do inferno, sabias?» Já era o segundo ‘sabias’ em menos de
um minuto e não resisti em responder como vem na página 99: «meu amor, o
inferno é o teu corpo foda a foda alcançado». Saí logo e esqueci-me lá do
livro.
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Almoços Grátis. série 3 [11]
Pelos vistos estamos na semana dedicada aos doces. Sentia-se
até um certo cheirinho pela sala, e, talvez, um ou outro sorriso mais aberto. Os
doces são, de longe, onde a L. mais se realiza e onde consegue dar mais enfase
ao seu cunho pessoal. Se a expusessem ao discurso psicanalítico julgo que os
mecanismos perversos da livre associação a levariam rapidamente a chamar-me de ‘melgaço’,
uma mistura de melga com melaço, que será como o seu inconsciente me trata em
momentos de exasperação. Apesar do episódio do último dia hoje eu também estava
bem disposto e até receptivo a alguma ironia, inclusive daquelas que só se distinguem
do escárnio porque são ditas em ritmo de murmuração, o que lhes dá um poder
encantatório a que nenhum homem resiste. Confesso, até podem sussurrar ao
ouvido de um homem que ele é a maior merda desinteressante do universo que ele
entenderá isso sempre como um convite pre-coital.
Pedi lulas recheadas. Ó séculos que eu não comia umas lulas
recheadas. Recheadas com quê? Não percebi. Tentei sacar uma explicação a um dos
empregados mas ele apenas me disse ‘óscar secret’. Já percebi que vou ter de
lidar com o fantasma desse óscar e decidi não dar parte de fraco. Pedi um
gelado de baunilha com um café entornado por cima e ainda fiquei uns minutos a
observar o movimento da sala. Gente mais nova que o normal, grupos de miúdos de
consultoras a esturrarem os primeiros ordenados, ainda todos com o viço da
ingenuidade bem misturado com uma competência ainda por comprovar. Tristes dos
que já não têm nada para provar. A L. ainda veio a tempo de me acenar do
balcão. Poderia ter vindo à mesa, ter-me dado um beijo, uma festa, um sussurro,
posto a mão na perna, recitado um soneto do camões, comido um pudim flan a
meias, qualquer coisa. Estou na fase qualquer coisa. Não é que eu me contente
com qualquer coisa, mas. Qualquer coisinha, porra.
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Almoços Grátis. série 3 [10]
Não se pode dizer que hoje me tenha sido fácil ir lá
almoçar. Devo ter entrado de cara carregada pois duas ou três pessoas
fixaram-me o olhar e também não posso ser assim tão feio. Lembro-me que ia a
pensar que aquele restaurante tinha respondido bem aos dias difíceis da
austeridade. Não sei se era engenho ou arte mas havia até uma sensação de
prosperidade crescente a impregnar muitos detalhes que definem uma casa
daquelas. A L. tinha vestida uma saia burberry ligeiramente travada, uma blusa de
seda creme bem cintada e via-se que tinha acabado de chegar de algum local que
a tinha feito feliz. Se é de senso adquirido que se correm riscos
desnecessários ao regressar a um local onde já fomos felizes, por outro lado
devia ser aconselhável voltar a um sítio onde já fomos infelizes e que nos
traga memórias desagradáveis, para fazer uma certa purga de maus passados, por
assim dizer. Não sei se terei coragem de abordar a L. com um pretexto destes, assim
tão vago e quase literário, ainda estou, digamos, com pouca confiança. Com quem
é que ela teria estado. A escolher legumes é que não tinha sido de certeza. Pedi
um folhado de marisco, algo também novo nesta ementa, se bem que já o tivesse
provado em tempos distantes. Hoje a minha réstia de intuição dizia-me que ela
se aproximaria de mim, se calhar até foi por isso que inconscientemente escolhi
aquele prato, tentando demonstrar apreço pelas suas mudanças de menu. Não há inconsciente
mais bem treinado que o meu, é tão tão treinado que às vezes até parece
consciente. Como é que se cativa uma mulher? Como? Quando ela passou perto da
mesa saiu-me isto: «Olha que este prato está óptimo mesmo». Respondeu na ponta
da língua: «Ah, foi ideia do Óscar!». ‘Óscar’, foda-se! Que raio de nome é
este? Quem é este gajo? O Otelo é que tinha um nome de código ‘óscar’ durante a
operação do 25 de abril! Será que ouve aqui alguma revolução e eu estou a fazer
de marcelo caetano? Entornei o café em cima da camisa, deixei cair a cadeira ao
levantar-me, bati com a cabeça na porta de vidro da saída que estava fechada, e
obviamente tropecei no passeio. A rapariga dos molhos estava cá fora a fumar e
ainda a ouvi dizer-me: Para a próxima não seja tão possessivo e descolonize a
tempo.
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Almoços Grátis. série 3 [9]
Hoje o restaurante inaugurava uma nova ementa. Pelos vistos
ninguém estava à espera, fora um segredo bem guardado. A L. gosta de transmitir
esse aureolado enigmático, mas também já deve saber que é um risco que corre,
nem todos os estômagos estão preparados para absorver surpresas ao ritmo da sua
imaginação (capricho - a imaginação feminina chama-se capricho). O novo folheto-menu
tinha sido desenhado por uma amiga ( a L. gosta de mostrar que tem amigas – e amigos
- para todas as ocasiões) e parecia saído dum conto de fadas tal a fantasia
colocada no nome dos pratos. Reduziam-se as opções em carnes puras, aumentava a
aposta em souflés, empadas, folhados e papas afins e o peixe voltava a ser o
rei da festa. Mas o bombo da dita continuaria a ser eu. Pedi ovas de pescada
grelhadas, uma novidade. Nada como atacar pelo lado da entranha feminina e
esperar pela pancada. A L. rodava de mesa em mesa a auscultar as reacções, recebia
elogios como uma estrela de cinema, puxando bem a cabeça para trás naqueles
sorrisos abertos que procuram receber as energias todas que os céus tenham
disponíveis. A rapariga-dos-molhos torneou a minha mesa, fez uma pausa de
libelinha e deu uma revirada de olhos a indicar que ‘esteja descansado que ela
ainda vem cá picar o ponto’. E veio. Sentou-se, depois de um trejeito qualquer
de formalismo que já lhe é tão natural como esquecer-me, e aviou-me uma
directa: «então, por cá outra vez!? Tiveste saudades ou apenas te deixaste
corromper pela curiosidade?». Sem me deixar responder (um clássico), distribui:
«se vamos entrar pelo capítulo das recriminações vou-me já embora!». Olhei para
as ovas (era o que tinha mais à mão para repousar o espírito) e ainda tentava
esboçar uma resposta meramente tática para ganhar tempo quando ela alça da terceira
farpa curta: «podias ter escolhido a cataplana! É bem melhor que a paella que
noutro dia ofereceste à tua amiga vistosa; já volto». Novamente só, com as
minhas ovas, ainda deu para apanhar um piscar d’olhos furtivo de descodificação
impossível, e saí, sem acabar as ovas, sem tomar sobremesa, nem café, nem nada,
possuído pela angústia do homem gozado, a humilhação dos pobres de espírito que
nem conseguem sequer ser rejeitados em público e transportam a sensação de que apenas
servem de betume para tapar falhas. São os betumen.
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Almoços Grátis. série 3 [8]
Quando entrei hoje no restaurante levava comigo uma estranhamente-estranha-estranheza
espalhada por todo o corpo. Tentei sacudi-la com duas ou três parvoíces mentais
da família das boas recordações mas essa estranhamente-estranha-estranheza esbarrava
sempre com os poros da pele fechados não a deixando sair.
Sentei-me numa das poucas mesas livres, a casa estava bem
compostinha como nos velhos tempos dos deficits glamorosos, e anda nem tinha
coçado convenientemente a testa já a rapariga-dos-molhos me vinha provocar com
um previsível (encomendado?) «então hoje não trouxe nenhuma das suas
amiguinhas?». Como andei a treinar olhares corri-a com um do género dos
fulminantes que a fará desaparecer para a freguesia dos couverts durante uma
semana.
Foi substituída por um rapaz de toque apaneleirado, qualquer
restaurante que se preze tem de possuir um exemplar desses, e a L. quando toca
a escolher paneleiros esmera-se. Ainda pensei que me fosse sugerir salsicha em
couve lombarda, mas não, ficou-se por uns lombinhos de porco preto que eu, só
para o contrariar, troquei por picanha.
Diz a vida, enquanto a mãe de todos os ensinamentos, que
elas acontecem quando menos se espera, e foi precisamente enquanto eu pensava
em rigorosamente nada de interesse, algo que faço com particular esmero e
intensidade, que a L. se chega à mesa e pergunta se se pode sentar, usando
aquele seu ar formal que me irrita mais que picante em colon inflamado. «Não
gostaste do meu empregado novo?». Como aproximação pareceu-me interessante, bem
melhor que perguntar-me o que teria acontecido a uma fatia importante do meu
cabelo desde a última vez que nos víramos. Ri-me para ela, talvez por instinto,
pois devo julgar que ela gosta de me ver sorrir e que isso a desarma um pouco. Está
explicada a estranhamente-estranha-estranheza, pensei, e ainda fui a tempo de
ouvir «ficaste mudo, ou quê?». Estava a pensar o que te faz prender agora tanto
tempo na cozinha – respondi, ainda com o sabor da manteiga de alho a betumar-me
o céu-da-boca. Tenho andado apenas a ganhar tempo junto ao quentinho do forno –
disse L. com uma rapidez de resposta que me deixou intranquilo. Depois,
tocou-me na mão, como já fizera milhares de vezes, levantou-se e desapareceu no
horizonte. Mas, para mim, naquele momento, 20 centímetros à minha frente já era
horizonte. Inda agora não sei como acabou aquele almoço, devem-me ter posto
numa ambulância e descarregado no escritório com uma tabuleta ao pescoço
dizendo: canja durante dois dias e deixá-lo ressuscitar ao terceiro sem fazer
muitas perguntas.
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Almoços Grátis. série 3 [7]
Hoje levei comigo a S. a almoçar. É uma mulher que se
enquadra na tipologia clássica de ‘parar o trânsito’. É minha cliente, tem um
negócio em fase de stress, já a salvei de muitos apuros, mas hoje leva uma vida
semi-regalada. É casada com um tipo porreiro, pachola e bom rapaz, um pouco
estúpido até. Não quis vir. Certamente acha, e bem, que eu não lhe
desencaminharei a mulher, ou melhor, que a mulher não se perderá por minha causa.
Não abona muito nas minhas capacidades, mas também ninguém sabe. Dois segundos
depois de termos entrado a L. já tinha toda a fotografia da situação fornecida
pelos espiões de sala, cada um atento e especializado ao seu detalhe, aliás o
que tinha o pelouro de medir a altura das mini-saias não disfarçou muito. A S.
tem umas pernas de capa de revista (para além de um rabo de vitrine, um busto
de republicana, uma cintura de sereia e uma carinha de anjo em fase de
magnificat). Pedimos ambos uma paella, fica sempre bonito comer a meias com uma
mulher daquelas. Falou-se de negócios e a rapariga-dos-molhos fazia a sua
inspeção técnica em cada 5 minutos, de tal forma se focava nas nossas caras que
devia ser a responsável pelo departamento das covinhas na bochecha. L. apareceu
duas vezes na sala. Na primeira passou juntinho à nossa mesa, fez um sorriso à
S. a que esta retribuiu, e que a predispôs a perguntar-me se eu costumava lá ir
muitas vezes. ‘De vez em quando’, se bem que daria mais efeito ter dito ‘de
quando em vez’. O almoço foi inesperadamente decorrendo sem incidentes de
maior. Ou o ciúme já não é o que era, ou fui mesmo colocado entre o açucareiro
e a vinagreira. O que é um facto sem interferência de especulação é que saí de
lá de barriga cheia mas de mãos a abanar.
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Almoços Grátis. série 3 [6]
Hoje o restaurante transmitia uma boa disposição para a qual
eu não conseguia encontrar explicação, nem sequer impressão, nem sequer aquele
instrumento híbrido da mente (eventualmente fusão dos dois anteriores) que é a
célebre intuição. Não percebo mesmo como nunca apareceu nenhuma corrente
filosófico-artistica chamada intuicionismo (tipo gnosticismo laico) que aqui me
daria certamente elementos para caracterizar o ambiente de frescura e alegria
que se vivia naquele restaurante. A L. apresentava uma espécie de melancolia da
família do desgosto leve, mas bem disfarçada por uma pose absorta, como que
indicando que as mamas estavam na sala mas a alma ficara a marinar junto à
batedeira numa tigela com piranhas em vinagrete. De todo o modo, hoje foi o
primeiro dia, desde que tinha voltado ao restaurante, em que pude observar bem
o corpo dela. Não sei se foi de propósito mas o que é um facto é que ela várias
vezes se encostou ao balcão com aquele ar de diva em pleno exercício do seu
múnus gastronómico, parecendo querer ilustrar o momento do Génesis em que Deus
Todo Poderoso, depois de hesitar, decidiu arredondar mais o corpo da mulher
qual ampulheta a mostrar ao homem que por vezes têm areia a mais para a sua
(deles) camioneta. Pataniscas e arroz de tomate, nada mais adequado para um dia
com tais enquadramentos, e ainda uma passagem da rapariga-dos-molhos pela minha
mesa, com um ar de vampira a servir raminhos de salsa, largando a enigmática
deixa: « ‘Ela’ manda dizer que ao senhor também lhe caia bem uma dietazinha».
Touché. Será que se avizinha uma concordata pelo lado do cardio-fitness? A
carne tem razões que o molho desconhece. Saí intrigado mas animado. O homem
encontra esperança onde um qualquer outro animal apenas descobriria um sítio
para mijar à vontade.
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Almoços Grátis. série 3 [5]
Ontem era, e foi, dia da espiga. Entrei no restaurante com
um estado de espírito animado, levando o bilhete no bolso de fora do casaco,
ali à mão de semear mas de forma a poder fazer aquela encenação do que ‘não sei
bem se o trouxe ou onde o pus’ se tal viesse a ser necessário. Todas as mesas
tinham um toque decorativo alusivo ao dia (tentará a L. exigir da decoração
aquilo que o coração não lhe dá?), ora uma espiga, ora um malmequer, ora uma
margarida e preparava já para me sentar numa qualquer quando a
rapariga-dos-molhos me dirige, sem possibilidade de apelo, para uma mesa que se
destacava com uma certa imponência por ter um ramo completo e rico a servir de
astro rei no centro. Uma mesa com dois pratos postos: «Hoje vou-lhe trazer um
rolinho de carne especial». Fiquei semi anestesiado, com a imaginação a dar
mais voltas do que um encefalograma conseguiria apanhar, e procurando pela sala
todos os sinais que me pudessem indicar se iria acontecer alguma coisa que alterasse
o meu futuro, ou até o passado, quem sabe. Veio o dito rolo de carne, com o
previsível molho de orégãos, e eu fui saboreando-o qual palatofílico compulsivo
à procura de algo que me dissesse que a L. o tinha preparado para mim (para nós
?). Entretanto o outro talher da mesa foi-se mantendo sem comensal, e o prato vazio
ia-se rindo para mim dizendo: ‘lembras-te daquele outro dia da espiga, há uns
anos atrás, em que ficaste à minha espera e eu não apareci?! Devias ter
percebido que era uma premonição, e que eu algum dia te deixaria apeado. Talvez
hoje percebas’. Entretanto a L. apareceu, vinha servir a uma das mesas uma
garrafa de tinto da casta Nero d’Avola, um vinho brilhante, da Sicília, que eu
adoro, mas ela nem sabe. Também não pode saber tudo. Passou os olhos por mim
como se eu fosse uma sombra de crepúsculo, franziu o nariz e voltou para a
caverna onde certamente estará algum cabrão dum Platão. Quando saí do
restaurante estava convencido que isto já só lá vai com a suprema prova de
todos os amores: o ciúme. A universal, exclusiva e infalível forma de saber se
alguém gosta de nós. Foda-se, é que por mais voltas que se dê, apenas na
bancada do ciúme se pode comprovar a experiência do amor. Até o microscópio dá
saltos.
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Almoços Grátis. série 3 [4]
Lombo. Hoje apeteceu-me mesmo um daqueles bifes de lombo.
Redondo, cheio duma carne sem sombra de nervos, liso, quase artificial, mesmo
produzido à base de um bocadinho de photoshop culinário. Comer como quem guia
numa autoestrada vazia, sem ter de saborear, sabendo de antemão que o corpo vai
receber aquilo com a mesma naturalidade de quando boceja ou tosse. Era o dia do
aniversário do restaurante, havia um tiramisu especial, e a L. andava de mesa
em mesa, numa roda-viva, entregando-se
a todos com o mesmo esmero com que se dedicava a nem sequer dar nota da minha
presença. A diferença entre presença e existência é que se a esta última
chegamos a ela pela puta da filosofia, à presença só lhe tocamos mesmo
quando sentimos que alguém gosta de nós. A L. já tinha gostado de mim, claro,
há dois anos até me escreveu que o único
sal que conhecia era o meu. Se calhar estava a mentir, um anjo pôs-lhe
pimenta na língua para sempre e agora culpa-me por isso. Deixei metade do bife
no prato, podia ser que ela o guardasse como relíquia, picasse, fizesse um rolo
de carne e dormisse com ele embrulhado em papel de alumínio pulverizado com
perfume de orégãos. Já ia a meio do tiramisu (ainda estive para o não comer por
birra, não é bem birra, um homem adulto (mas não adulterado) não faz birras, é
despeito, ressentimento, que se diz) quando ela passou ao lado da mesa.
Inesperadamente deixa lá um bilhete dobrado e afasta-se num passo hesitante.
Helás: toda a conquista (reconquista?) passa por uma hesitação. O papel
fixou-se ali em cima da mesa e nem se mexeu, podia ser um daqueles papéis com
asas mas não era. Eu iria ter de o abrir, mas tinha de fazer um movimento com
alguma pose, não é Charlemagne quem quer, porra. «Por muito tempo». Só lá
estava escrito «por muito tempo». Mas o que é esta merda!? Já nem um ‘até que a
morte nos separe’ soube escrever. Ou será que eu já morri e nem dei por isso?
Pedi à rapariga dos molhos para me beliscar e ela fugiu: meio assustada, meio
sem saber se havia de contar à patroa, meio corada. Parecia inchada, daí os
três meios.
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Almoços Grátis. série 3 [3]
Sexta-feira e sala cheia. A proximidade do fim-de-semana
descontrai-nos e põe os sentidos mais disponíveis para o lado deseconómico da
existência: comer mais do que precisamos, correr mais do que precisamos,
descansar mais do que precisamos, pensar mais do que necessitamos, conviver
mais do que necessitamos, beber mais do que necessário e etecetera e tal mais
do que necessitamos. Como que a compor o ramalhete L. trazia vestido uma saia
também um pouco mais curta do que aquilo que seria necessário para ela, mas um
pouco mais comprida do que seria necessário (e proveitoso) para mim. Ainda me
lembro da primeira vez que lhe vi as pernas (um bom bocado delas, para ser mais
rigoroso) despidas pela primeira vez ali junto ao rio. Já levava a memória um pouco
acima do joelho dela quando fui impelido a escolher o menu pela
empregada-dos-molhos. Reparo de caminho que ela também é benfeitinha, benza-a
deus , e escolho bacalhau à Brás sem perder muito tempo a exercitar o pouco
livre arbítrio que ainda me resta. Já vou no terceiro dia que retomei as minhas
idas ao restaurante e a L. ainda não me dirigiu palavra nem sequer se aproximou
a menos de 15 metros. Haverá criminosos com medidas de restrição menos
exigentes. Via-a a sair da cozinha a rir-se, seria certamente uma piada boa
porque se manteve num estado quase efusivo durante mais de 10 segundos. A
última vez que eu a tinha feito rir assim já fora à custa de muito esforço.
Acho que agora terá a minha imagem fixada mais como um filho da puta do que
propriamente como um gajo engraçado, mas nem sequer um grande filho da puta,
apenas aquele tipo de filho da puta que ainda recentemente foi desmamado de
tipo-sem-interesse. Chegou a sentar-se junto dos clientes que estavam na mesa
mais próxima do balcão, notava-se que eram clientes que se tinham tornado mais
regulares recentemente, e ainda alimentou alguma galhofa técnica, o suficiente
para fixar o charme necessário para um negócio em fase de ivas majorados. E foi
assim, entre necessários, suficientes e insuficientes que acabei por tomar um
café já frio; bem a condizer. Estupidamente fui até ao balcão sob o pretexto de
pagar a conta mais rapidamente e ainda tive tempo de ouvir do lado de lá da
cortina de ferro: ele sabe que aqui nunca pagará nada. Saí como se fosse um Barrabás
em corpo de Lázaro.
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Almoços Grátis. série 3 [2]
L. estava cá fora a fumar. Via-a ainda ao longe e obviamente
hesitei. Ela deu conta da minha mal trabalhada hesitação, deitou fora a metade
do cigarro ainda não fumado e sem esboçar qualquer sinal relevante entrou para
dentro do restaurante. Minto, mostrou um certa indiferença daquelas arraçadas
de comiseração. Mas por que caralho é que ela agora teria pena de mim? Será que
já tinha coitadinho pintado na testa e até se via a mais de 100 metros? Quando
entrei ela já não estava à vista. Contaram-me que agora passa mais tempo na
cozinha e menos na sala. O meu hemisfério esquerdo diz-me que isso é porque tem
um novo amante de imponente barrete branco mas o meu hemisfério direito diz-me
que é porque não suporta ver casalinhos felizes a comer no seu restaurante (por
óbvias saudades minhas). É a saltar de hemisfério em hemisfério que escolho um
risoto à bulhão pato, novidade absoluta do menu, e para quem começou tardiamente
na vida a gostar de comer pareceu-me uma boa opção, sempre podia imaginar que
teria sido ela a abrir as ameijoas - uma a uma para mim. Estava bom o cabrão do
risoto. Uma empregada nova veio-me perguntar se queria algum dos molhos da casa
para temperar melhor. Acho que nem lhe respondi, para já, o que quer que seja
que me perguntem soa-me a metade provocação metade ‘põe-te ao fresco’. É tão
agradável sentirmo-nos mal vindos. Já estava na sobremesa quando a L. apareceu
na sala. Queque de abóbora com gelado de canela. Olhou para mim e escreveu no
ar com os olhos: amar-te-ei até que o tempo acabe. Trinquei a língua e pedi o
livro de reclamações. Ficou lá plasmado para o delegado de saúde poder
comprovar: neste estabelecimento as abóboras são bêbedas. Saí de nariz
encarnado e feliz como só um parvo encartado consegue.
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Almoços Grátis. série 3 [1]
Passaram outra vez dois anos até lá voltar. Parecia ter tudo
mudado estando tudo na mesma. Toalhas de pano com uma tonalidade rosácea,
guardanapos cor de sangue, pratos verde pálido, copos roxos como que a querer
disfarçar venenos novos. Uma paleta anunciando um arco-irís de sentimentos
contraditórios. O faqueiro também era diferente, o garfo apresentava um inequívoco
formato de forquilha, facas sem bico tentando simular suavidade e o contorno
das colheres a esboçar a translação do astro que nos calhou na rifa. Nenhum
músculo externo de L. deu sinal de vida quando me olhou pela primeira vez. Dos
músculos internos não sei o que dizer. Comi costeletinhas de borrego, sem
molhos, sem saladas, sem acompanhamentos, sem merdas que pudessem disfarçar
qualquer porra que lá tivessem metido e que me pudesse dar cabo das glândulas.
Quando pedi a conta, veio um empregado novo, bem parecido, a brilhar como que saído
dum masterchef, trazendo-me um bilhetinho decorado com papoilas: «para ti é
sempre à borla». Procurei o olhar dela à saída mas o que encontrei foi apenas
uma silhueta encostada ao balcão. Vou pensar que me está a evitar. Evitar é
sempre melhor que desprezar. Se não podemos ter esperança resta-nos a
ignorância.
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