seria impossível não me envolver na temática que é realmente importante

Ontem vieram a lume as revelações semi-bombásticas (bombástico mesmo era se ele fosse viciado em earl grey) da autobiografia de André Agassi, (utilizando o famoso método Caim de promoção editorial) segundo a qual ele teria enfiado para o bucho umas quantas de metanfetaminas, supostamente para se alegrar; c'est toujours la joie de vivre. Na altura estava casado com Brook Shields e a coisa não andava bem na carreira, ou seja, os dois paus que tinha ao seu alcance não lhe estavam a garantir a felicidade que qualquer homem - com ou sem brinco - sente que tem direito. No entanto, eu não quero enveredar pela abordagem específica desta temática, antes sim, queria apenas que um tal de bettencourt, ó caralho, fosse rapidamente comprar daquelas merdas, de ligeirinho as arremessasse pela peidola acima daqueles cabrões que se designam por 'equipa técnica de alvalade', de seguida desfazia mais uns desses comprimidos e misturava nos voltarenes que tomam aqueles paneleiros que constituem um tal de 'grupo de trabalho de alvalade' quando têm inflamaçõezinhas nos músculos, - o que não prova que os tenham, atenção - e com o que sobrasse aproveitava o próprio bettencurte e tomava ele mesmo nem que fosse para o chazinho lhe saber a merda e ver se arrebita; no fundo até eu.

Modernidade Legislativa

Penso que muito mais importante e urgente do que legislar sobre o 'casamento entre pessoas do mesmo sexo' será garantir protecção jurídica e mesmo incentivar a legislação sobre o 'sexo entre pessoas do mesmo casamento'.
Como é sabido por todos, salvo vagas excepções apenas encontradas na literatura e nos folhetos de imobiliárias, o sexo entre pessoas do mesmo casamento é algo que tem vindo a perder prevalência - definhar seria demasiado ilustrativo - face a outros tipos de sexo que são muito mais acarinhados pela sociedade em geral e pelos motéis em particular. Ora o sexo entre pessoas do mesmo casamento é uma tradição praticamente com milénios, tem inclusivamente trazido ao mundo seres respeitadores da ordem pública e com princípios e custa ver assim dissipar-se por entre modas e questiúnculas várias o quão bonito que pode ser ver duas pessoas devida e cerimonialmente esposadas a rigorosa e estrictamente foderem. Ao ter passado a ser um comportamento em vias de se tornar uma curiosidade antropológica é urgente que o novo governo dê verdadeiras mostras de modernidade e avance com medidas legislativas claras e distintivas.

Assim, a nova e urgente legislação sobre o sexo entre pessoas do mesmo casamento deverá tomar em consideração o seguinte:

1) Marido e mulher devem poder escolher sem quaisquer limitações a utilização de locais como a cozinha, a sala, ou inclusivamente o corredor, no limite a mezzanine, e para isso deve o Estado garantir que os seus filhos tenham zonas protegidas onde se possam entreter no durante, e em perfeita segurança e acompanhamento especializado.

2) Por cada hora de preliminares que o homem tenha de suportar para entreter a mulher que está com a sensualidade em ponto morto certamente por ter servido de cobaia para os lucros do pingo doce, deve o Estado garantir downloads grátis de músicas que incentivem a própria e perspectivada cópula, ou, pelo menos, a necessária lubrificação das zonas em preparo e apreço.

3) Como é sabido, seja pela força aniquiladora do hábito ou por mero cansaço, a instituição do sexo entre pessoas do mesmo casamento tem tendência a ir perdendo incidência estatística e apela a medidas exógenas de encorajamento. A assimilação desta prática a outras de natureza mais estritamente higiénica como sejam a lavagem dos dentes ou o corte simétrico das unhas tem contribuído também para que se desvaneça o grande e decisivo contributo que foi dado pelo ideal romântico, e coloca-nos hoje perante um novo dilema da modernidade: deverá o tráfico sexual intra-matrimonial estar também sujeito às leis da concorrência? Ora sendo o sexo entre pessoas do mesmo casamento um típico caso de monopólio artificial, parece essencial a criação duma entidade reguladora que indique para cada caso o tipo de cópula e respectiva compensação, para além de ir aferindo a evolução do equilíbrio das forças e instintos em presença no mercado, perdão, casal.

4) Uma das questões essenciais a tomar logo em consideração na nova legislação sobre o sexo entre pessoas do mesmo casamento é que esta não deve produzir interferências nos direitos ao sexo entre pessoas de casamentos diferentes, nem mesmo ao sexo entre pessoas sem casamento nenhum, nem obviamente imiscuir-se nas opções assexuais entre pessoas de qualquer casamento, se bem que a assexualidade deverá ser sempre assumida como uma ineficiência em qualquer relação que envolva descendentes de adão, quer seja pela via abélica quer seja pela via caímica.

5) Tomando em consideração que, ao contrário do que toda a literatura recomenda, o sexo entre pessoas do mesmo casamento acaba por resultar apenas duma mera combinação de interesses básicos, que vão desde a 'preservação da espécie' até ao 'espero agora que o gajo não me chateie a mioleira nos próximos 15 dias', deve o Estado garantir que não aparecem interesses alheios ao sistema que o pervertam e criem ineficiências, designadamente a corrupção pela via dos adereços de moda, a chantagem pela via das prateleiras do frigorífico vazias, ou mesmo o clássico abuso de posição dominante, mesmo que, valha-nos isso, ainda sejam o que vai permitindo uma ou outra boa foda intra-matrimonial; há, no fundo, que deixar também a economia paralela funcionar.

6) Sem prejuízo da existência de quaisquer outras formas aristotélicas de satisfação de instintos de contornos carnais, o sexo entre pessoas do mesmo casamento deve ser a forma a privilegiar na conciliação de interesses potencialmente divergentes, e se no direito se tem tentado resolver algumas ineficiências com a denominada 'acção sumária', deverá ser instituída formalmente a figura fiscal das 'senhas-de-rapidinha-intra-matrimonial' como paradigma do comportamento preventivo de anti-risco, e uma forma de aliviar confrontações que muitas vezes acabam no banco dos hospitais ou no contencioso bancário sem se ter produzido qualquer derramamento glandular decente.

Livro do Zénesis

Constata-se exaustivamente que o grande prejudicado em todo este processo mal conduzido duma criação, agora sabe-se, feita às três pancadas (sete, para ser mais preciso) foram os descendentes de Abel. Este bimbo, depois de oferecer ao Criador o primeiro ensopado de borrego da história acabaria por entrar nela pela porta piquena, tendo permitido que o mau feitio do seu irmão mais velho - que apenas sabia fazer saladas como molho mediterrânico - vingasse, num apalpão civilizacional, pode dizer-se, sem precedentes.
Para castigo, ou mera consequência da precipitação gastronómica, deixou então toda uma genealogia de bons e jeitosos primatas hominídeos, a quem já não lhes bastando a cegada da maçã precipitadamente trincada, ficaram ainda reféns da perversa sedução do vegetarianismo, das virulências pandémicas e dos - esporádicos, vá lá - períodos de euforia dos lampiões.
Chegados a uma suposta fase de maturidade genética são ainda confrontados com a utilização do seu bem mais precioso, - tirando a ejaculação telecomandada - ou seja um tal de livre arbítrio, em escolhas absurdas como entre pandermixes versus tamiflus, gatos fedorentos domesticados em televisão versus feras escanzeladas domesticadas em circos, ou canavilhas versus desidérios, ou mesmo, num desafio indigno da estirpe de David, Jesus versus Jesualdo.
Ao invés, os descendentes desse rebento de soja de seu nome Caim, passeiam-se pelo planeta azul escrevendo livros, dando entrevistas, enrolando papiros com alongamentos do esfíncter, pintando aguarelas e abanando cordas de bandolim como se fossem pintelhos de sereia.
Tudo seria ainda assim sofrivelmente suportável não fora a crueldade do Criador se ter começado a manifestar de forma inapelável para com os seus filhos de alma alagartada (vénia ) , que assim sofrem ignomínias sem nome, quais incompreendidos, e mesmo estupefactos, Abeles.
Ora sendo Deus uma mera criação da sua - d'Ele - própria cabeça ( vénia) não se Lhe pode desculpar que deixe estes seus filhos lagartos desamparados, e entregues ao cajado dum sistema caímico que não lhes reconhece nem penalties, nem offsides, nem golos com o antebraço.
É pois com alguma indignação com este Deus que só pode ter ficado ligeiramente embuchado pelas insinuaçõezinhas indecorosas e dissimuladas daqueles pimentos morrones que habitam as grutas do lado sul da 2ª circular que eu aqui me apresento solicitando um respeitoso rewind ao Senhor do Tempo (vénia).
Os que se agarram à cauda genealógica da geração de Abel exigem uma reparação urgente da situação, sentem que foram vítimas de um combate de round único e pelo menos querem escolher um lugar com janela na arca de noé para serem os primeiros a ver a pombinha.

Las Civias [nota breve e final]

O mosteiro foi destruído no Verão de 2008 e não restam vestígios da sua passagem pela paisagem lunar da antiga zona mineira de Rio Tinto na Andaluzia.

Por curiosidade possuo um dos primeiros esquiços do projecto de arquitectura do edifício, um documento sem qualquer valor artístico ou técnico - tratava-se certamente dum mero e embrionário esboço impressionista, mas , isso sim, com vários detalhes de enigmático interesse.

O arquitecto era, foi, um Espanhol de origem basca, Jaime Olazabal, que se radicara em Portugal na zona de Azeitão nos anos 70 e que chegou a este projecto por ser primo dum dos alfaiates do bispo de Sevilha.

O desenho a que tive acesso - e não hesitei na sua aquisição - apresenta várias singularidades, para além da sua péssima reprodução aqui

A mais relevante deixarei para o fim, mas desde logo a par de algumas incongruências de perspectiva e mesmo de equilíbrio de planos, são evidentes: a ideia de duas plantas (?) separadas (P. A e P. B), desconheço se já resultado dalguma indicação dada pelo eclesiástico dono da obra, e sem forma de comunicação evidente (mas tal poderia dever-se ao facto de estarmos ainda na presença dum esboço rudimentar) , e a existência de vastas zonas envidraçadas , (assim entendo os sombreados) o que se por um lado revela uma certa simbologia de transparência ou abertura, não deixa de arrepiar pelo efeito de estufa a que imediatamente nos faz associar.

No entanto, é impossível não fazer também a associação ao que terá sido certamente a principal fonte de inspiração de Olazabal para o mosteiro de Las Cívias.

Trata-se dum quadro de Picasso do ano de 46, denominado 'Desnudo Echado sobre cama azul', uma obra que podemos encaixar facilmente num ambiente hedonista e de busca de alegria de viver, e com um pouco mais de dificuldade, mas não impossibilidade, num mosteiro. È evidente a ligação entre o projecto arquitectónico de Las Civias e este quadro de Picasso e não sei de todo a razão; nem sequer se essa ligação não esteve apenas na cabeça de Olazabal e agora na minha. Preserve-se a cabeça de VExas, claro.

Las Civias

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Las Civias era um mosteiro na zona de Sevilha que acolhia crentes dispostos a resolver a sua relação com o prazer. Sendo certo que os tradicionais sexo ou comida eram responsáveis pela maior fatia de penitentes, as perturbações de prazer ligadas às artes mostravam um dinamismo singular. Desregulamentos em torno da música folk ou da pintura figurativa eram frequentes, tendo até ficado conhecidos os sermões dum frade sueco sobre os efeitos perniciosos das costas de Ingres, ou os dum pároco de Vichy sobre as deambulações de hormonas ao som dos Fleet Foxes. Surtos relacionados com políticos em crises peri-masturbatórias à conta de reformas fiscais também ocorriam repetidamente. Las Civias era um caso de sucesso, onde o recolhimento e a oração forneciam ao espírito fontes e reservas tão alternativas como duradouras de equilíbrio, mas sempre fora dos malabarismos de índole estóica ou dos espiritualismos. Colocados a meio caminho entre um previsível Sto Agostinho e um arriscado Freud, sem esquecer Pascal, os frades responsáveis pelo mosteiro foram criando uma arte filigrânica de sublimação dos pequenos prazeres, confiando sempre nos valores da eternidade, da misericórdia e da elasticidade do coração humano.

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Em Las Civias não havia compromissos terapêuticos, não se organizavam saunas de almas, nem a purificação era uma sobremesa. Os monges sabiam que os pequenos prazeres deixavam marcas nas virtudes e que a fé se construía entre o enigma da parábola e a força do anúncio da bem-aventurança. As primeiras noções a assimilar eram as de que a verdade pode tornar irritantemente supérflua a aparência, mas a parte deve ser cautelosa na hora de camuflar o todo. A capciosa ideia de que tudo se pode reduzir a um refogado de simbologias seria fervida com a água do primeiro jejum. No mosteiro de Las Cívias percebia-se de imediato que não se podia rezar a um Deus apenas servido na bandeja do pensamento.
Os pequenos prazeres que entravam como grilhetas, fundir-se-iam, e passavam a servir como armaduras; cada um era responsável pelo seu molde no original mano-a-mano fornecido pelo cristianismo: a graça com a razão.
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Como seria fácil de prever os primeiros casos que se apresentaram em Las Cívias tinham a ver com um ‘difícil enquadramento dos prazeres carnais no seio duma consciência formada na espiritualidade da generosidade’ para utilizar a terminologia oficial dos documentos do mosteiro. Os monges não exigiam que se entendesse o alcance destas expressões mais canónicas, apenas perguntavam se os crentes estavam com disponibilidade para se colocarem nas mãos de Deus (outra das expressões utilizadas, mas que afinal apenas exigia um pouco mais de poética do que propriamente catequese para ser acolhida sem grandes reservas pelos novos e ainda um pouco ansiosos hóspedes). Uma nota interessante tem precisamente a ver com o nome que se lhes dava: nenhum. Ou seja, os monges faziam questão em não os catalogar de nenhuma forma, poderiam ser crentes, penitentes, hóspedes, residentes, pacientes, malucos, socialmente excluídos, socialmente demasiado incluídos, curiosos, ou simplesmente desesperados, o que cada um quisesse para si, cada alma é um caminho, para utilizar uma noção que parece tão bonita quanto incontroversa. Evitava-se apenas a todo o custo as patologias que apresentassem indícios de violência explícita, pois os monges tinham feito votos de paciência, e não viam com bons olhos ter de apaziguar alguma alma indo-lhe aos cornos. Aceitavam-se todo o tipo de preconceitos excepto contra a pintura abstracta (muito presente em todo o processo) e contra música dita electrónica (menos presente mas ainda assim relevante na reorientação dos prazeres em geral). Cada um mantinha a sua roupa, o seu desodorizante, a sua pasta dos dentes, e dizia-se até jocosamente, julgo que numa brincadeira apócrifa típica dos ambientes circunscritos: a cada bico o seu asseio. Não havia especiais restrições de linguagem e rapidamente todos encontravam os equilíbrios necessários entre a sobriedade e a sinceridade. Não se afirmava que o inconsciente é a fala, mas também não se entregava o recolhimento à artificialidade do silêncio. Até porque o silêncio pode ser um dos mais perversos, grosseiros e nefastos prazeres.
[4]
O primeiro caso que tornou célebre Las Civias foi o de um polaco chamado Gaspar Kespersky. Apresentou-se no mosteiro no final dum verão dos anos 90 e disse que tinha prazer em contrariar, não era uma mera desconfiança patológica, nada disso, até confiava razoavelmente nas pessoas, mas era incapaz de concordar com elas, ou melhor, tinha a cupidez da contrariação, como ele lhe chamava, chegando a produzir-se um estranho e agradável formigueiro no corpo quando lhe surgia uma situação em que podia contrariar alguém, principalmente quando nenhuma circunstância o fizesse prever e muito menos aconselhar, numa espécie de vertigem-do-contrário. Depois de uma série inicial de casos ligados aos prazeres da carnália (como eram, talvez abusivamente, chamados os despropósitos sexuais) a situação de Gaspar foi acolhida com um misto de entusiasmo e responsabilidade. Tradicionalmente são identificadas duas correntes teóricas de abordagem para as disfunções morais do prazer; numa assume-se que o corte tem de ser radical, e que as energias outrora anexas ao vício se irão dissipando naturalmente pelos caminhos doravante traçados por uma consciência em regime de manutenção apertada; noutra, e aquela que o mosteiro privilegiava, aposta-se numa progressiva redução da intensidade, na desfocagem do objecto do prazer, no entrincheiramento no terreno do inimigo com saídas furtivas para o minar. Gaspar provou apetitosamente dessa estratégia e habituou-se a contrariar apenas as pessoas que exibissem apreço pelas músicas dos Mercury Rev e dos Lambshop. Em tudo o resto começou a cultivar um certo prazer pela condescendência, inclusive pelo funk e pelos livros duma tal de Agustina. Os monges, na altura, chamaram a este processo a ‘transferência luminosa do prazer’, tendo necessitado até duma autorização canónica especial dada a sua proximidade – pelo menos simbólica - ao freudiano 'amor de transferência'. Deus quando estende a mão não é para tirar mas sempre para dar, explicavam eles com garbo quando tornaram semi-público o sucesso do caso de Kespersky às autoridades eclesiásticas. Os mecanismos que regem o prazer são os mesmos que regem o luto, chegou então a afirmar frei Vargas, num opúsculo que ficou conhecido como ‘Dando vargas à imaginação’.
[5]
Uma das grandes inovações de Las Civias encontrava-se na singular forma como distinguiam ‘vício’ de ‘perturbação do prazer’. Segundo a norma do Mosteiro, o prazer desgovernado não implicaria dependência, ou seja, há nele um maior convívio com os desígnios da vontade, há inclusive uma certa dose de consciência de debilidade da vontade. Na entrada do Mosteiro estava escrito: ‘Aqui reencontrareis as capacidades do querer’. Foi uma frase que empolgou Luís Rosales, um asturiano ainda na flor da idade que apresentava fortes sintomas dum desvio moral que ficou denominado como o ‘prazer-de-desistência’. Este mecanismo levava a que Luis procurasse, libidinosamente pode mesmo dizer-se, pessoas que lhe exigissem algo que ele sabia dificilmente poder corresponder. Ou seja, não se desencadeava um - mais tradicional - processo de ‘prazer-de-abandono’ (também conhecido como calimerismo), mas, outrossim, a sua alma começava a alimentar-se duma gostosa sensação de desistência, uma espécie mais elaborada do clássico ‘eu não sirvo para ti-vou-me embora’, mas com maior alavanca dramática. Foi precisamente frei Vargas que o recebeu, num dia chuvoso, o que era raro, e deu-se rapidamente conta daquilo que verdadeiramente caracterizava este caso especifico de desnorte do prazer: era o seu deleite em elucubrar sobre o complexo de culpa que poderia ter inculcado na outra pessoa, uma espécie de neurose do remorso alheio. Parecia algo demasiado elaborado e frei Vargas não conseguiu facilmente que o seu diagnóstico fosse aceite, de tal forma que Luis Rosales esteve muito próximo de ser despachado com um atestado de chaladice mórbida. No entanto, com a sua capacidade persuasiva, Frei Vargas conseguiu que Rosales ficasse num regime de jejum de açucares e audição de Magnetic Fields pelo menos durante uma semana à experiência. Estava certo. A falta de açucares combinada com a sanfona de Merritt desencadeou um movimento da libido de Rosales no sentido de umas trancinhas de folhado que costumava comer com uma antiga namorada numa pastelaria da Calle de las Sencillas Madres em Oviedo onde um cego hondurenho tocava bandolin a troco de moedas de 20 pesetas. Essa moça, de seu nome Sabrina e hoje casada com um médico oftalmologista de Gijon tinha sido desprezada por Rosales depois de este ter descoberto que ela tinha dois incisivos postiços. Frei Vargas sabia que o remorso era um mecanismo relativamente pouco canónico mas mostrava-se uma carta de bastante eficácia nos casinos da alma. O caso foi forçado a posterizar como 'o cego hondurenho' mas a hierarquia do convento nunca o assumiu como oficial, impedindo inclusive Vargas e Rosales de falarem sobre ele em público, nem mesmo por causa das trancinhas de folhado da Calle de las Sensillas Madres.
[6]
Frei Vargas fez parte do lote inicial de monges que se instalaram no mosteiro andaluz. Tinha sido um singular noviço beneditino, aquilo a que se costuma chamar uma vocação tardia. Trabalhara até aos 25 anos num casino em Marbella e decidira mudar de vida depois de ver os destroços humanos provocados pelas dívidas do jogo. Todas as razões são boas para mudar de vida foi a primeira frase que ouviu do monge beneditino que o atendeu pela primeira vez. Vargas era visto como aquilo que se pode chamar um gajo meio chanfrado e não apresentava nenhum dos tiques de escrupulosismo tão típico das neófitos mais adultos. Mas tinha imensa paciência, o que o ajudava a compor com decência os arremessos mais vibrantes de heterodoxia. Foi-se-lhe revelando uma capacidade persuasiva fora do comum e não estranhou que depois de dois anos numa pastoral falhada em Las Palmas tivesse sido convidado para a fundação de Las Civias. O superior quando o convidou disse-lhe simplesmente: vai e não faças muita merda.
Mas não lhe disse para evitar pôr as mãos na dita e Vargas era um curioso pelas guerras intestinas da consciência. Estava na hora de voltar outra vez à roleta; da vontade. Como já se percebeu não era uma pessoa impetuosa, mas revelava-se um verdadeiro furão atrás da reconstrução da felicidade dos 'seus descompensados'. Corria imensos riscos, driblava anos e anos de espiritualidade conservadora, fazia de cada caso uma mistura de cruzada e de crochet. Adorava reincidentes. É sua a famosa frase: quem não repete a queda não merece levantar-se. Apesar de Las Civias não adoptar estritamente a regra beneditina, a dupla oração e trabalho fazia parte do ácido ribonucleico do mosteiro. Vargas vinha de uma família de preguiçosos compulsivos e só à custa de muita marretada percebeu o valor dessa combinação, mas ali em pleno coração andaluz sentia todas as nervuras dum trabalho, e apesar de ser um dotado para a percepção e persuasão cada caso saia-lhe do corpo. Sabia que era tudo um trabalho-de-penitência-e-graça. Uma coisa deste mundo e do outro. Mas que o levava a mais de uma média de vinte foda-ses por dia. Entendia o trabalho do mosteiro como uma espécie de reciclagem dos mecanismos do prazer, uma ecologia-do-gozo. Quando um dia se escrever a história da alma humana Frei Vargas merecerá um capítulo só para ele.
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Outro dos casos mais famosos de Las Civias foi o de Peter Kavanah, um industrial de Dublin que apresentava um curioso transtorno-de-deleite: fantasiava com apresentadoras de reality shows fazendo-lhe entrevistas sobre a sua suposta fama de conquistador erótico de estrelas da pop. Tal devaneio levava-o descuidar os seus deveres familiares mais simples, atentar contra a biologia ao exercer a ruminação com o aparelho neurológico, e tratar as outras mulheres com uma indiferença grosseira e absurda. Não era um caso mitigado de duplicação de personalidade, pois Kavanah tinha a perfeita noção do artificialismo do seu desvio-de-prazer, nem sequer uma qualquer compensação de insucessos d'engate pois tinha uma história de sedução discreta mas sem grandes máculas. Frei Vargas andava demasiado ocupado com um caso de mentira compulsiva e não se pode ocupar de Peter. Aliás Vargas não gostava de casos com fractura de hormona exposta, e por isso até agradeceu a coincidência. Peter tinha sido enviado para Las Civias por indicação da sua irmã, carmelita em Salamanca, e até chegara lá um pouco a contragosto, mas a conversa inicial foi-lhe completamente esclarecedora:' irás escarnecer do teu prazer'. Apesar da ligeira sensação de ameaça de lavagem ao cérebro, Kavanah avançou levado ao colo pela curiosidade, até porque escarnecer lhe aparecia uma fusão estranha entre a carne e o enternecer. Inesperadamente deu de caras com um 'tratamento' à base de paninhos quentes, leituras do Cântico dos cânticos e muitas rodelas de abacaxi ao som de Mark Eitzel, o suficiente para deixar qualquer irlandês à beira duma ataque de cranberies. Mas o que foi um facto é que duas semanas e 50 terços depois, ele mostrava-se absolutamente incapaz de olhar para uma estrela televisiva sem lhe ver logo dois belos ananazes a envolver todo o seu sistema glandular mamário, algo que o fazia corar praticamente em segundos. A noção de vergonha está para a recuperação da alma sadia como o escape roto estão para o automobilismo: leva sempre a tomar medidas. Estávamos perante a consumação de uma tese que ficou famosa em Las Cívias como 'a glândula da vergonha'. Las Civias tinha descoberto que certos estados de espírito ambíguos como a vergonha eram caminhos de rejuvenescimento interior e digamos até dalguma vitória da odisseia da razão sobre as pobres epopeias dos sentidos.
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Em Las Civias não havia preconceitos contra a imaginação. Quando eram confrontados com o cânone da perversidade da mente os monges diziam na brincadeira que lhes fora confiado o graal da mente. 'Temos de pôr essa poderosa máquina do desejo ao serviço das parábolas do reino' dizia Vargas a Jean Claude Michelet, um belga absolutamente perdido-de-prazeres por despir mulheres-polícia com o olhar. Qualquer tomografia comparada com a sua imaginação parecia uma máquina de ecografias desfocada. As conversas com Michelet eram antecâmaras do inferno pois ele possuía uma capacidade única de descaramento e punha os pormenores ao serviço do todo com a distinção dum autêntico joalheiro de vulvas. Estes tipo de desgovernos geralmente eram conduzidos em Las Civias com o recurso a baterias de dispersão-de-atenção. Nem toda a luxúria de sensualidade tem origens na debilidade da vontade, era também esta a concepção no mosteiro, e por isso tinha sempre de ser testada a sua força. Michelet vivera muitos anos perto dum cruzamento sem semáforos onde uma policia sinaleira de seu nome Anettte Soulanges exibia um cardápio de movimentos, aqui pode dizer-se: capaz de parar o trânsito. Jean Claude tomou aí balanço para uma carreira de despidor de gendarmas que se iria revelar destruidora da sua personalidade. Era um caso em que o comportamento obsessivo também entrava na equação assumindo quase que o perfil dum excesso-de-vontade, como uma queda de água se pode considerar um excesso de rio para uma certa falta de leito. Jean Claude Michelet começou por ser testado a despir copas de árvores. Vargas disse-lhe: dou-te dez minutos para me contares quantas ameixas estão escondidas naquela copa. Acabava de inventar uma técnica que se tornaria clássica: o desafio do absurdo. Las Cívias tinha essa fantástica característica: fazia as nuvens serem pisadas como se fossem terra firme. E era algo que ficava para sempre; principalmente durante as trovoadas.
[9]
Las Cívias fechou as portas no dia de todos dos santos do ano de 2007. Um ataque de curculionoideas desfez irremediavelmente todas as peças de madeira do mobiliário e isso foi sentido por todos como um sinal de mudança. Aquando da fundação do mosteiro em 1992 tinham inscrito uma placa aproveitando uma ideia do livro do improvável Javier Marias que saíra nesse ano: 'O nosso maior prazer é pensar no futuro, essa será a nossa salvação diária'. Mas em Las Civias, onde sempre se tinha bebido do busca e alcançarás mistelizado com o sonha e ficarás aquém, e se sabia por Pascal que toda a moral consistia em concupiscência e graça, não era possível manter mais a situação. Uma nuvem de resignação abafava agora tudo e todos. A verdade manifesta-se mesmo quando nos ilude, - quase como Freud dissera no seu 'elas dizem a verdade mesmo quando mentem' dando estatuto e património às histéricas - era uma convicção de Vargas, um dos primeiros a querer fechar a loja. Mas um dos últimos a sair. O último peregrino de Las Civias tinha sido um militar grego que tinha prazer em desenhar mulheres nuas com pernas tornadas e depois sombreá-las com um azul que só aparecia no mar no entardecer depois das marés vivas. Parecia algo de inócuo, mas Vargas tinha descoberto uma irascibilidade escondida nesse prazer. O problema do prazer desgovernado é sempre a falta de capacidade para amar que ele esconde. Konstantino saiu de Las Cívias a desenhar Santo António's com um violão a tocar Baden Powell inundando o papel de várias tonalidades de ocres. Tudo parecia mais absurdo na hora da partida. A tal espuma, mas agora sem dias. 'Quando se está a chegar às respostas Deus muda as perguntas'.

Viúva-alegre # ponto de ordem

Não se deve julgar as mulheres pela forma como tratam os seus maridos, mas sim pela forma como se desfazem deles. O homicídio é a forma inequivocamente mais decente, deixando o defunto em boas, sagradas e desinteressadas mãos. Qualquer homem escolheria apresentar-se ao Criador com essa medalha: ‘aqui estou, ela matou-me’. Seria juntar o sacramento ao martírio num pleno digno dos primórdios da Religião da Cruz. A felicidade é uma arma quente como já cantaram os Beatles. A viuvez-pelo-homicídio não será uma morada mística mas é aquilo que um bom conservador designaria: um razoável estado de satisfação possível sem os riscos desnecessários do entusiasmo.

Viúva-alegre #9

A sua oscilação entre momentos dalguma apatia e dalguma exaltação era, pensava, um preço que tinha de pagar por ter sido tão eficiente no seu processo de defuntação do marido. Entre o início do plano concreto e a sua execução tinham passado pouco mais de dois meses e, se bem que não pode contar com acompanhamento psicoterapeutico, assumia que a infraestrutura do luto estava assente num terreno de certa forma movediço. No entanto, e apesar de nunca ter lido Hegel, nem sequer em creme para as estrias, desconfiava que seria nalgum conflito que se encontrava o motor do renascimento, diga-se alegramento, no caso. Muitas vezes olhava para si como uma ditadura que passara a democracia por via dum golpe de estado e que ficara com uma guerra civil entalada na garganta. Nestas alturas, entranha-se um espírito reformista, ou seja, no caso, abre-se um pouco mais as pernas. Mas ela estava avisada: a viúva sábia procura um homem, a viúva tola encontra-o.

Viúva-alegre #8

A liberdade da mulher pela via do assassínio (não judicialmente provado) do marido é um estado dalguma forma equilibrado. Não produz mais sofrimento que a chamada morte natural, é mais controlável que a chamada morte súbita e violenta, e deixa uma sensação de ‘coisa bem acabada’que como sabemos ajuda à construção da generalidade das personalidades estáveis e saudavelmente previsíveis. Convicta da robustez dos seus poderes de sedução e firme na sua intenção de construir uma vida baseada em médias-altas satisfações reparou que pela primeira vez experimentava serem mais os caminhos que se lhe abriam do que as portas que se lhe fechavam. Tinha sim de se cuidar para não passar directamente do estado sóbrio à ressaca sem desfrutar da bebedeira propriamente dita. Dalguma forma pressentia também que nos últimos anos negligenciara o estado de rigidez do seu rabo, pelo que antes de tudo teria de garantir no seu novo circulo de, digamos, amizades pelo menos alguém com competências firmadas como nadegador-salvador e assim valorizar o seu investimento em saias travadas e encarnadas. Verificou que tinha um caderno de encargos simples e que a missão de auto-alegrar uma viúva se revelava até gratificante, desde que o fenómeno da reencarnação não passasse duma inventona de fanáticos com deficit de proteínas animais, ou de adoradores dissimulados do determinismo histórico.

Viúva-alegre #7

Um dos momentos chave no alegramento de viúvas é aquele em que o encarnado entra na toillete. É uma espécie de facada na viuvez, e só é comparável com a primeira ida às putas depois da missa do galo. Escolheu uma saia relativamente travada, presa à sua cintura ainda adolescente (o defunto não era bailarino) por um cinto negro de pele de roedor desconhecido. O teste foi feito durante o almoço num dos restaurantes habituais e aparentemente não provocara nenhum olhar embaraçante. O jantar já estava marcado com um antigo sócio do marido. Um homem que já teria sido motivo para algumas cenas de ciúmes do defunto no passado e que por isso representava também um passo importante na sua emancipação e, por maioria de razão, alegramento. Curiosamente este homem já tinha sido alvo dum processo de envenenamento que nunca ficara bem explicado, se bem que ele alegava ‘coisas de negócios’, parecendo dominar a situação. Ela gostava de homens falsos-seguros. O seu marido era um falso-inseguro, raça absolutamente perigosa, se bem que irritante. Depois do jantar ele levou-a a casa, e disse-lhe que poderia contar sempre com ele, que ele estaria ali para o que desse e viesse, mas não precisas de te vir já, respondeu-lhe ela; na brincadeira.

Viúva-alegre #6

O primeiro ataque sério de remorsos deu-se quando lhe serviram lulas estufadas num restaurante ao Príncipe Real. Tinha sido com um prato de lulas que roubara o defunto a uma amiga sua com quem ele namorava. Nesse momento viu que seria o defunto-da-sua-vida, e não seria avisado deixar a coisa nas mãos duma providência que forçosamente poderia não saber cozinhar. Foi directa e resoluta no primeiro passo, assim como o seria também no último, se bem que neste se tenha socorrido do croquete-de-estimação como se sabe. O remorso é um estado de alma sempre passageiro, uma espécie de cólica que se alivia com o primeiro espasmo disponível. Este curou-o com mais uma ida à sapataria. Os sempre presentes sapatos. Loiras ou morenas, solteiras ou viúvas, altas ou atarracadas, deficientemente-fodidas ou rainhas do kamasutra, todas se reclinam perante os cantos de sereia destas albardas das extremidades inferiores. Mesmo não sendo nos pés onde uma viúva coloca os maiores propósitos na sua caminhada para o alegramento, foi curado o primeiro remorso com umas sandálias dignas de Alcatraz, e assim partiu para o roçar-de-pernas num sub-table dance com um ex-colega da catequese, procurando pelo menos que se rentabilizasse a depilação laser paga com o subsídio de funeral. Cada novo amante deveria obedecer a um rigoroso plano de negócios. O defunto não lhe perdoaria nem o esbanjamento, nem o improviso.

Viúva-alegre #5

De saias, cortinados e restaurantes escolhidos e devidamente programados pensou em telefonar a um qualquer amigo de infância que tivesse encontrado no funeral. Estava indecisa entre dois e foi incapaz de descartar um deles. Ambos homens de inúmeros atractivos e com uma disponibilidade genuinamente interessada. Uma viúva alegre cria e alimenta sempre um misto de curiosidade e zelo, se associarmos isto à forma lúbrica como qualquer homem vive estes dois estados de espírito poderemos concluir, e acertadamente, que a nossa viúva nunca chegou a ter de incluir a solidão no seu caderninho de dança. Durante uma semana treinou a pose, afinou a maquilhagem e o penteado, seleccionou as palavras obrigatórias e domesticou o saco lacrimal. Quem lhe resistisse ou era cego ou tinha mau feitio. Serviram ambos como boas lebres na sua maratona de viuvez-alegre e chegou a meio do verão fresca como um pêro e tão livre como quando fizera a primeira comunhão, mais pronta para os luares de Agosto que uma loba da dreamworks. Confirmou que se desfizera do marido no momento certo. Nem uma ruga a mais nem uma ruga a menos. Mantinha a mesma capacidade de drible curto e passe em profundidade dos tempos em que estava nas juniores do cio.

Viúva-alegre #4

Todas as mulheres devidamente casadas passam pela mais ou menos sub-reptícia tentação de matar o marido, ou então que alguém o mate por elas. A viuvez é o estado feminino mais perfeito: tudo revelado e tudo escondido, pleno de disponibilidade e pleno de submissão. Ela sabia isso e não tinha enjeitado o primeiro momento em que se tinham associado os primados da coragem e da racionalidade. Era por isso uma mulher viúva e realizada nesta fase da sua vida; não era apenas um género de nova vida para viver, era mesmo um estado de felicidade que conseguira alcançar mais cedo do que a mera natureza lhe propunha entregar. As fotografias do defunto estavam nos lugares estratégicos, todos os odores que poderiam cumprir uma função reminiscente tinham sido expurgados e, obviamente, os cortinados eram novos. Nada simboliza mais a liberdade para uma mulher viúva do que uns cortinados novos. Quanto aos sofás e aos tapetes, bem isso ela logo veria, - dependeria da utilização futura -estavam como novos pois o defunto era um homem mais de cama, sorte a dele, pensava ela, pois nunca se sabe qual a serventia duma boa coluna por entre as agruras dum purgatório em fase posterior à da ressurreição da carne. A cozinha deixou de lhe interessar como elemento prático. Seria uma frequentadora de restaurantes. Nenhuma viúva se pode alegrar comendo em casa.

Viúva-alegre #3

De memória rasa e conta bancária bojuda decidiu fazer uma pequena viagem comercial dedicada ao guarda-roupa. Passaria rapidamente do negro para os cinzentos-escuros e progressivamente iria introduzindo uns verdes secos e uns grenás. Na Primavera já estaria pronta para se alaranjar no seu novo estatuto civil e, por que não dizê-lo, sentimental. De qualquer modo todos os dias rezaria uma ave-maria pelo defunto, - isso fora uma promessa solene que fizera enquanto desenroscava a tampa do frasco de veneno - à que inclusivamente juntaria uma novena durante os primeiros dias de todos os Setembros, envergando sempre um véu negro de renda comprado nuns saldos das galerias Lafayete. Homem novo calculou que só voltaria a experimentar lá mais pelo verão, quando os dias fossem maiores e os riscos de que as libidinosas noites se lhe atravessassem inesperadamente pelo caminho fossem mais reduzidos. Para além disso por essa altura já poderia apresentar sem criar especial escândalo uma roupa mais justa à carne; e sabe-se como o folgazão desejo dos homens é muito sensível à roupa justa. O exagero de despesa em lingerie tratava-se de desperdício pois quando eles chegassem a esse ponto de focagem já estariam perfeitamente dominados. Seria bastante mais bem empregue o dinheiro a tratar das pernas. Lipoaspirou, drenou e esfoliou como se o futuro da humanidade dependesse do estado das suas coxas. O primeiro solstício já seria festejado com uma minisaia em tons de azul-turquesa.

Viúva-Alegre #2

Teve apenas saudades do marido durante os primeiros dois dias que passou a rasgar as várias recordações que guardara. Ele era de tendências, digamos, tecnicamente românticas e presenteara-a ao longo dos anos com imensos detalhes da mais clássica ternura: desenhos, versos, pequenas historietas, dedicatórias diversas, enfim, aquela panóplia que qualquer amor parvo sustenta e que uma trituradora de papel dissolve sem especial gasto nem de energia nem de lágrima. Ela gostara razoavelmente dele, disso não tinha dúvida, ele era aquilo que se costumava chamar na gíria dos relacionamentos ‘um homem especial’, e, diga-se, agora também ainda gostava, mas de outra forma, pois no fundo era ele que lhe permitia ser viúva. Assassinara-o, sim, mas tantas vezes ele dissera: «tu és a minha razão de viver». Cansou-se de tanta responsabilidade, mas também nunca o poderia ver nas mãos de outra que não uma santa consagrada, ou, vá lá, um anjo com pergaminhos.
A sua primeira extravagância foi ir ao cinema sozinha. Sempre se conseguira esquivar a ir ao cinema em formato casal, temendo que ele exagerasse nas manifestações externas e oficiais de carinho, aproveitando-se do ambiente penumbroso das salas de cinema. Não seria nada de mais, mas ela gostava de apreciar o cinema sem interferências.
No final do filme ficou refastelada na cadeira. Saboreando os créditos finais. Sentia-se bem na sua nova pele de viúva, gozando também de créditos póstumos. Livre de sentimentos banais mas irradiando alguma hipótese académica de sofrimento.

Viúva-Alegre #1

Matara o marido numa quarta-feira de Setembro. Deixara passar as férias sem grandes convulsões, apenas com dois ou três caprichos para não criar particulares desconfianças, e tinha evitado matá-lo num fim-de-semana, pois se o domingo já de si é sagrado, ele costumava passar o sábado a pôr-se em dia com as notícias. O marido gostava de andar informado e ela também não queria que ele se apresentasse ao Grande Desconhecido com algum acontecimento importante por saber.
Matara-o apenas introduzindo veneno nuns croquetes que supostamente teriam sido confeccionados pela sua mãezinha. Pelo sim pelo não matavam-se 3 coelhos: o coelho-álibi-perfeito, o coelho-sogra-inconsolável, e, claro, o coelho-marido-defunto. Encerravam-se entre carne picada, por assim dizer, alguns anos de um certo amor, entre outras miudezas, vivido em comum. Foi asseado, - ele não tinha sequer vomitado -, rápido, e aparentemente acompanhado de dor de pouca monta, coisa que qualquer asmático já suportara depois duma corridinha rápida para apanhar um eléctrico.
Tornara-se viúva de plenos direitos. Faltava agora juntar o alegre.