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Las Civias era um mosteiro na zona de Sevilha que acolhia crentes dispostos a resolver a sua relação com o prazer. Sendo certo que os tradicionais sexo ou comida eram responsáveis pela maior fatia de penitentes, as perturbações de prazer ligadas às artes mostravam um dinamismo singular. Desregulamentos em torno da música folk ou da pintura figurativa eram frequentes, tendo até ficado conhecidos os sermões dum frade sueco sobre os efeitos perniciosos das costas de Ingres, ou os dum pároco de Vichy sobre as deambulações de hormonas ao som dos Fleet Foxes. Surtos relacionados com políticos em crises peri-masturbatórias à conta de reformas fiscais também ocorriam repetidamente. Las Civias era um caso de sucesso, onde o recolhimento e a oração forneciam ao espírito fontes e reservas tão alternativas como duradouras de equilíbrio, mas sempre fora dos malabarismos de índole estóica ou dos espiritualismos. Colocados a meio caminho entre um previsível Sto Agostinho e um arriscado Freud, sem esquecer Pascal, os frades responsáveis pelo mosteiro foram criando uma arte filigrânica de sublimação dos pequenos prazeres, confiando sempre nos valores da eternidade, da misericórdia e da elasticidade do coração humano.
[2]
Em Las Civias não havia compromissos terapêuticos, não se organizavam saunas de almas, nem a purificação era uma sobremesa. Os monges sabiam que os pequenos prazeres deixavam marcas nas virtudes e que a fé se construía entre o enigma da parábola e a força do anúncio da bem-aventurança. As primeiras noções a assimilar eram as de que a verdade pode tornar irritantemente supérflua a aparência, mas a parte deve ser cautelosa na hora de camuflar o todo. A capciosa ideia de que tudo se pode reduzir a um refogado de simbologias seria fervida com a água do primeiro jejum. No mosteiro de Las Cívias percebia-se de imediato que não se podia rezar a um Deus apenas servido na bandeja do pensamento.
Os pequenos prazeres que entravam como grilhetas, fundir-se-iam, e passavam a servir como armaduras; cada um era responsável pelo seu molde no original mano-a-mano fornecido pelo cristianismo: a graça com a razão.
Las Civias era um mosteiro na zona de Sevilha que acolhia crentes dispostos a resolver a sua relação com o prazer. Sendo certo que os tradicionais sexo ou comida eram responsáveis pela maior fatia de penitentes, as perturbações de prazer ligadas às artes mostravam um dinamismo singular. Desregulamentos em torno da música folk ou da pintura figurativa eram frequentes, tendo até ficado conhecidos os sermões dum frade sueco sobre os efeitos perniciosos das costas de Ingres, ou os dum pároco de Vichy sobre as deambulações de hormonas ao som dos Fleet Foxes. Surtos relacionados com políticos em crises peri-masturbatórias à conta de reformas fiscais também ocorriam repetidamente. Las Civias era um caso de sucesso, onde o recolhimento e a oração forneciam ao espírito fontes e reservas tão alternativas como duradouras de equilíbrio, mas sempre fora dos malabarismos de índole estóica ou dos espiritualismos. Colocados a meio caminho entre um previsível Sto Agostinho e um arriscado Freud, sem esquecer Pascal, os frades responsáveis pelo mosteiro foram criando uma arte filigrânica de sublimação dos pequenos prazeres, confiando sempre nos valores da eternidade, da misericórdia e da elasticidade do coração humano.
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Em Las Civias não havia compromissos terapêuticos, não se organizavam saunas de almas, nem a purificação era uma sobremesa. Os monges sabiam que os pequenos prazeres deixavam marcas nas virtudes e que a fé se construía entre o enigma da parábola e a força do anúncio da bem-aventurança. As primeiras noções a assimilar eram as de que a verdade pode tornar irritantemente supérflua a aparência, mas a parte deve ser cautelosa na hora de camuflar o todo. A capciosa ideia de que tudo se pode reduzir a um refogado de simbologias seria fervida com a água do primeiro jejum. No mosteiro de Las Cívias percebia-se de imediato que não se podia rezar a um Deus apenas servido na bandeja do pensamento.
Os pequenos prazeres que entravam como grilhetas, fundir-se-iam, e passavam a servir como armaduras; cada um era responsável pelo seu molde no original mano-a-mano fornecido pelo cristianismo: a graça com a razão.
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Como seria fácil de prever os primeiros casos que se apresentaram em Las Cívias tinham a ver com um ‘difícil enquadramento dos prazeres carnais no seio duma consciência formada na espiritualidade da generosidade’ para utilizar a terminologia oficial dos documentos do mosteiro. Os monges não exigiam que se entendesse o alcance destas expressões mais canónicas, apenas perguntavam se os crentes estavam com disponibilidade para se colocarem nas mãos de Deus (outra das expressões utilizadas, mas que afinal apenas exigia um pouco mais de poética do que propriamente catequese para ser acolhida sem grandes reservas pelos novos e ainda um pouco ansiosos hóspedes). Uma nota interessante tem precisamente a ver com o nome que se lhes dava: nenhum. Ou seja, os monges faziam questão em não os catalogar de nenhuma forma, poderiam ser crentes, penitentes, hóspedes, residentes, pacientes, malucos, socialmente excluídos, socialmente demasiado incluídos, curiosos, ou simplesmente desesperados, o que cada um quisesse para si, cada alma é um caminho, para utilizar uma noção que parece tão bonita quanto incontroversa. Evitava-se apenas a todo o custo as patologias que apresentassem indícios de violência explícita, pois os monges tinham feito votos de paciência, e não viam com bons olhos ter de apaziguar alguma alma indo-lhe aos cornos. Aceitavam-se todo o tipo de preconceitos excepto contra a pintura abstracta (muito presente em todo o processo) e contra música dita electrónica (menos presente mas ainda assim relevante na reorientação dos prazeres em geral). Cada um mantinha a sua roupa, o seu desodorizante, a sua pasta dos dentes, e dizia-se até jocosamente, julgo que numa brincadeira apócrifa típica dos ambientes circunscritos: a cada bico o seu asseio. Não havia especiais restrições de linguagem e rapidamente todos encontravam os equilíbrios necessários entre a sobriedade e a sinceridade. Não se afirmava que o inconsciente é a fala, mas também não se entregava o recolhimento à artificialidade do silêncio. Até porque o silêncio pode ser um dos mais perversos, grosseiros e nefastos prazeres.
Como seria fácil de prever os primeiros casos que se apresentaram em Las Cívias tinham a ver com um ‘difícil enquadramento dos prazeres carnais no seio duma consciência formada na espiritualidade da generosidade’ para utilizar a terminologia oficial dos documentos do mosteiro. Os monges não exigiam que se entendesse o alcance destas expressões mais canónicas, apenas perguntavam se os crentes estavam com disponibilidade para se colocarem nas mãos de Deus (outra das expressões utilizadas, mas que afinal apenas exigia um pouco mais de poética do que propriamente catequese para ser acolhida sem grandes reservas pelos novos e ainda um pouco ansiosos hóspedes). Uma nota interessante tem precisamente a ver com o nome que se lhes dava: nenhum. Ou seja, os monges faziam questão em não os catalogar de nenhuma forma, poderiam ser crentes, penitentes, hóspedes, residentes, pacientes, malucos, socialmente excluídos, socialmente demasiado incluídos, curiosos, ou simplesmente desesperados, o que cada um quisesse para si, cada alma é um caminho, para utilizar uma noção que parece tão bonita quanto incontroversa. Evitava-se apenas a todo o custo as patologias que apresentassem indícios de violência explícita, pois os monges tinham feito votos de paciência, e não viam com bons olhos ter de apaziguar alguma alma indo-lhe aos cornos. Aceitavam-se todo o tipo de preconceitos excepto contra a pintura abstracta (muito presente em todo o processo) e contra música dita electrónica (menos presente mas ainda assim relevante na reorientação dos prazeres em geral). Cada um mantinha a sua roupa, o seu desodorizante, a sua pasta dos dentes, e dizia-se até jocosamente, julgo que numa brincadeira apócrifa típica dos ambientes circunscritos: a cada bico o seu asseio. Não havia especiais restrições de linguagem e rapidamente todos encontravam os equilíbrios necessários entre a sobriedade e a sinceridade. Não se afirmava que o inconsciente é a fala, mas também não se entregava o recolhimento à artificialidade do silêncio. Até porque o silêncio pode ser um dos mais perversos, grosseiros e nefastos prazeres.
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O primeiro caso que tornou célebre Las Civias foi o de um polaco chamado Gaspar Kespersky. Apresentou-se no mosteiro no final dum verão dos anos 90 e disse que tinha prazer em contrariar, não era uma mera desconfiança patológica, nada disso, até confiava razoavelmente nas pessoas, mas era incapaz de concordar com elas, ou melhor, tinha a cupidez da contrariação, como ele lhe chamava, chegando a produzir-se um estranho e agradável formigueiro no corpo quando lhe surgia uma situação em que podia contrariar alguém, principalmente quando nenhuma circunstância o fizesse prever e muito menos aconselhar, numa espécie de vertigem-do-contrário. Depois de uma série inicial de casos ligados aos prazeres da carnália (como eram, talvez abusivamente, chamados os despropósitos sexuais) a situação de Gaspar foi acolhida com um misto de entusiasmo e responsabilidade. Tradicionalmente são identificadas duas correntes teóricas de abordagem para as disfunções morais do prazer; numa assume-se que o corte tem de ser radical, e que as energias outrora anexas ao vício se irão dissipando naturalmente pelos caminhos doravante traçados por uma consciência em regime de manutenção apertada; noutra, e aquela que o mosteiro privilegiava, aposta-se numa progressiva redução da intensidade, na desfocagem do objecto do prazer, no entrincheiramento no terreno do inimigo com saídas furtivas para o minar. Gaspar provou apetitosamente dessa estratégia e habituou-se a contrariar apenas as pessoas que exibissem apreço pelas músicas dos Mercury Rev e dos Lambshop. Em tudo o resto começou a cultivar um certo prazer pela condescendência, inclusive pelo funk e pelos livros duma tal de Agustina. Os monges, na altura, chamaram a este processo a ‘transferência luminosa do prazer’, tendo necessitado até duma autorização canónica especial dada a sua proximidade – pelo menos simbólica - ao freudiano 'amor de transferência'. Deus quando estende a mão não é para tirar mas sempre para dar, explicavam eles com garbo quando tornaram semi-público o sucesso do caso de Kespersky às autoridades eclesiásticas. Os mecanismos que regem o prazer são os mesmos que regem o luto, chegou então a afirmar frei Vargas, num opúsculo que ficou conhecido como ‘Dando vargas à imaginação’.
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Uma das grandes inovações de Las Civias encontrava-se na singular forma como distinguiam ‘vício’ de ‘perturbação do prazer’. Segundo a norma do Mosteiro, o prazer desgovernado não implicaria dependência, ou seja, há nele um maior convívio com os desígnios da vontade, há inclusive uma certa dose de consciência de debilidade da vontade. Na entrada do Mosteiro estava escrito: ‘Aqui reencontrareis as capacidades do querer’. Foi uma frase que empolgou Luís Rosales, um asturiano ainda na flor da idade que apresentava fortes sintomas dum desvio moral que ficou denominado como o ‘prazer-de-desistência’. Este mecanismo levava a que Luis procurasse, libidinosamente pode mesmo dizer-se, pessoas que lhe exigissem algo que ele sabia dificilmente poder corresponder. Ou seja, não se desencadeava um - mais tradicional - processo de ‘prazer-de-abandono’ (também conhecido como calimerismo), mas, outrossim, a sua alma começava a alimentar-se duma gostosa sensação de desistência, uma espécie mais elaborada do clássico ‘eu não sirvo para ti-vou-me embora’, mas com maior alavanca dramática. Foi precisamente frei Vargas que o recebeu, num dia chuvoso, o que era raro, e deu-se rapidamente conta daquilo que verdadeiramente caracterizava este caso especifico de desnorte do prazer: era o seu deleite em elucubrar sobre o complexo de culpa que poderia ter inculcado na outra pessoa, uma espécie de neurose do remorso alheio. Parecia algo demasiado elaborado e frei Vargas não conseguiu facilmente que o seu diagnóstico fosse aceite, de tal forma que Luis Rosales esteve muito próximo de ser despachado com um atestado de chaladice mórbida. No entanto, com a sua capacidade persuasiva, Frei Vargas conseguiu que Rosales ficasse num regime de jejum de açucares e audição de Magnetic Fields pelo menos durante uma semana à experiência. Estava certo. A falta de açucares combinada com a sanfona de Merritt desencadeou um movimento da libido de Rosales no sentido de umas trancinhas de folhado que costumava comer com uma antiga namorada numa pastelaria da Calle de las Sencillas Madres em Oviedo onde um cego hondurenho tocava bandolin a troco de moedas de 20 pesetas. Essa moça, de seu nome Sabrina e hoje casada com um médico oftalmologista de Gijon tinha sido desprezada por Rosales depois de este ter descoberto que ela tinha dois incisivos postiços. Frei Vargas sabia que o remorso era um mecanismo relativamente pouco canónico mas mostrava-se uma carta de bastante eficácia nos casinos da alma. O caso foi forçado a posterizar como 'o cego hondurenho' mas a hierarquia do convento nunca o assumiu como oficial, impedindo inclusive Vargas e Rosales de falarem sobre ele em público, nem mesmo por causa das trancinhas de folhado da Calle de las Sensillas Madres.
[6]
Frei Vargas fez parte do lote inicial de monges que se instalaram no mosteiro andaluz. Tinha sido um singular noviço beneditino, aquilo a que se costuma chamar uma vocação tardia. Trabalhara até aos 25 anos num casino em Marbella e decidira mudar de vida depois de ver os destroços humanos provocados pelas dívidas do jogo. Todas as razões são boas para mudar de vida foi a primeira frase que ouviu do monge beneditino que o atendeu pela primeira vez. Vargas era visto como aquilo que se pode chamar um gajo meio chanfrado e não apresentava nenhum dos tiques de escrupulosismo tão típico das neófitos mais adultos. Mas tinha imensa paciência, o que o ajudava a compor com decência os arremessos mais vibrantes de heterodoxia. Foi-se-lhe revelando uma capacidade persuasiva fora do comum e não estranhou que depois de dois anos numa pastoral falhada em Las Palmas tivesse sido convidado para a fundação de Las Civias. O superior quando o convidou disse-lhe simplesmente: vai e não faças muita merda.
Mas não lhe disse para evitar pôr as mãos na dita e Vargas era um curioso pelas guerras intestinas da consciência. Estava na hora de voltar outra vez à roleta; da vontade. Como já se percebeu não era uma pessoa impetuosa, mas revelava-se um verdadeiro furão atrás da reconstrução da felicidade dos 'seus descompensados'. Corria imensos riscos, driblava anos e anos de espiritualidade conservadora, fazia de cada caso uma mistura de cruzada e de crochet. Adorava reincidentes. É sua a famosa frase: quem não repete a queda não merece levantar-se. Apesar de Las Civias não adoptar estritamente a regra beneditina, a dupla oração e trabalho fazia parte do ácido ribonucleico do mosteiro. Vargas vinha de uma família de preguiçosos compulsivos e só à custa de muita marretada percebeu o valor dessa combinação, mas ali em pleno coração andaluz sentia todas as nervuras dum trabalho, e apesar de ser um dotado para a percepção e persuasão cada caso saia-lhe do corpo. Sabia que era tudo um trabalho-de-penitência-e-graça. Uma coisa deste mundo e do outro. Mas que o levava a mais de uma média de vinte foda-ses por dia. Entendia o trabalho do mosteiro como uma espécie de reciclagem dos mecanismos do prazer, uma ecologia-do-gozo. Quando um dia se escrever a história da alma humana Frei Vargas merecerá um capítulo só para ele.
Mas não lhe disse para evitar pôr as mãos na dita e Vargas era um curioso pelas guerras intestinas da consciência. Estava na hora de voltar outra vez à roleta; da vontade. Como já se percebeu não era uma pessoa impetuosa, mas revelava-se um verdadeiro furão atrás da reconstrução da felicidade dos 'seus descompensados'. Corria imensos riscos, driblava anos e anos de espiritualidade conservadora, fazia de cada caso uma mistura de cruzada e de crochet. Adorava reincidentes. É sua a famosa frase: quem não repete a queda não merece levantar-se. Apesar de Las Civias não adoptar estritamente a regra beneditina, a dupla oração e trabalho fazia parte do ácido ribonucleico do mosteiro. Vargas vinha de uma família de preguiçosos compulsivos e só à custa de muita marretada percebeu o valor dessa combinação, mas ali em pleno coração andaluz sentia todas as nervuras dum trabalho, e apesar de ser um dotado para a percepção e persuasão cada caso saia-lhe do corpo. Sabia que era tudo um trabalho-de-penitência-e-graça. Uma coisa deste mundo e do outro. Mas que o levava a mais de uma média de vinte foda-ses por dia. Entendia o trabalho do mosteiro como uma espécie de reciclagem dos mecanismos do prazer, uma ecologia-do-gozo. Quando um dia se escrever a história da alma humana Frei Vargas merecerá um capítulo só para ele.
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Outro dos casos mais famosos de Las Civias foi o de Peter Kavanah, um industrial de Dublin que apresentava um curioso transtorno-de-deleite: fantasiava com apresentadoras de reality shows fazendo-lhe entrevistas sobre a sua suposta fama de conquistador erótico de estrelas da pop. Tal devaneio levava-o descuidar os seus deveres familiares mais simples, atentar contra a biologia ao exercer a ruminação com o aparelho neurológico, e tratar as outras mulheres com uma indiferença grosseira e absurda. Não era um caso mitigado de duplicação de personalidade, pois Kavanah tinha a perfeita noção do artificialismo do seu desvio-de-prazer, nem sequer uma qualquer compensação de insucessos d'engate pois tinha uma história de sedução discreta mas sem grandes máculas. Frei Vargas andava demasiado ocupado com um caso de mentira compulsiva e não se pode ocupar de Peter. Aliás Vargas não gostava de casos com fractura de hormona exposta, e por isso até agradeceu a coincidência. Peter tinha sido enviado para Las Civias por indicação da sua irmã, carmelita em Salamanca, e até chegara lá um pouco a contragosto, mas a conversa inicial foi-lhe completamente esclarecedora:' irás escarnecer do teu prazer'. Apesar da ligeira sensação de ameaça de lavagem ao cérebro, Kavanah avançou levado ao colo pela curiosidade, até porque escarnecer lhe aparecia uma fusão estranha entre a carne e o enternecer. Inesperadamente deu de caras com um 'tratamento' à base de paninhos quentes, leituras do Cântico dos cânticos e muitas rodelas de abacaxi ao som de Mark Eitzel, o suficiente para deixar qualquer irlandês à beira duma ataque de cranberies. Mas o que foi um facto é que duas semanas e 50 terços depois, ele mostrava-se absolutamente incapaz de olhar para uma estrela televisiva sem lhe ver logo dois belos ananazes a envolver todo o seu sistema glandular mamário, algo que o fazia corar praticamente em segundos. A noção de vergonha está para a recuperação da alma sadia como o escape roto estão para o automobilismo: leva sempre a tomar medidas. Estávamos perante a consumação de uma tese que ficou famosa em Las Cívias como 'a glândula da vergonha'. Las Civias tinha descoberto que certos estados de espírito ambíguos como a vergonha eram caminhos de rejuvenescimento interior e digamos até dalguma vitória da odisseia da razão sobre as pobres epopeias dos sentidos.
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Em Las Civias não havia preconceitos contra a imaginação. Quando eram confrontados com o cânone da perversidade da mente os monges diziam na brincadeira que lhes fora confiado o graal da mente. 'Temos de pôr essa poderosa máquina do desejo ao serviço das parábolas do reino' dizia Vargas a Jean Claude Michelet, um belga absolutamente perdido-de-prazeres por despir mulheres-polícia com o olhar. Qualquer tomografia comparada com a sua imaginação parecia uma máquina de ecografias desfocada. As conversas com Michelet eram antecâmaras do inferno pois ele possuía uma capacidade única de descaramento e punha os pormenores ao serviço do todo com a distinção dum autêntico joalheiro de vulvas. Estes tipo de desgovernos geralmente eram conduzidos em Las Civias com o recurso a baterias de dispersão-de-atenção. Nem toda a luxúria de sensualidade tem origens na debilidade da vontade, era também esta a concepção no mosteiro, e por isso tinha sempre de ser testada a sua força. Michelet vivera muitos anos perto dum cruzamento sem semáforos onde uma policia sinaleira de seu nome Anettte Soulanges exibia um cardápio de movimentos, aqui pode dizer-se: capaz de parar o trânsito. Jean Claude tomou aí balanço para uma carreira de despidor de gendarmas que se iria revelar destruidora da sua personalidade. Era um caso em que o comportamento obsessivo também entrava na equação assumindo quase que o perfil dum excesso-de-vontade, como uma queda de água se pode considerar um excesso de rio para uma certa falta de leito. Jean Claude Michelet começou por ser testado a despir copas de árvores. Vargas disse-lhe: dou-te dez minutos para me contares quantas ameixas estão escondidas naquela copa. Acabava de inventar uma técnica que se tornaria clássica: o desafio do absurdo. Las Cívias tinha essa fantástica característica: fazia as nuvens serem pisadas como se fossem terra firme. E era algo que ficava para sempre; principalmente durante as trovoadas.
[9]
Las Cívias fechou as portas no dia de todos dos santos do ano de 2007. Um ataque de curculionoideas desfez irremediavelmente todas as peças de madeira do mobiliário e isso foi sentido por todos como um sinal de mudança. Aquando da fundação do mosteiro em 1992 tinham inscrito uma placa aproveitando uma ideia do livro do improvável Javier Marias que saíra nesse ano: 'O nosso maior prazer é pensar no futuro, essa será a nossa salvação diária'. Mas em Las Civias, onde sempre se tinha bebido do busca e alcançarás mistelizado com o sonha e ficarás aquém, e se sabia por Pascal que toda a moral consistia em concupiscência e graça, não era possível manter mais a situação. Uma nuvem de resignação abafava agora tudo e todos. A verdade manifesta-se mesmo quando nos ilude, - quase como Freud dissera no seu 'elas dizem a verdade mesmo quando mentem' dando estatuto e património às histéricas - era uma convicção de Vargas, um dos primeiros a querer fechar a loja. Mas um dos últimos a sair. O último peregrino de Las Civias tinha sido um militar grego que tinha prazer em desenhar mulheres nuas com pernas tornadas e depois sombreá-las com um azul que só aparecia no mar no entardecer depois das marés vivas. Parecia algo de inócuo, mas Vargas tinha descoberto uma irascibilidade escondida nesse prazer. O problema do prazer desgovernado é sempre a falta de capacidade para amar que ele esconde. Konstantino saiu de Las Cívias a desenhar Santo António's com um violão a tocar Baden Powell inundando o papel de várias tonalidades de ocres. Tudo parecia mais absurdo na hora da partida. A tal espuma, mas agora sem dias. 'Quando se está a chegar às respostas Deus muda as perguntas'.
2 comentários:
Fico a aguardar a saga de reabertura do canal. De Suez.
C.
mais rápido se arranja uma Saga Carnal...
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