Viúva-Alegre #2

Teve apenas saudades do marido durante os primeiros dois dias que passou a rasgar as várias recordações que guardara. Ele era de tendências, digamos, tecnicamente românticas e presenteara-a ao longo dos anos com imensos detalhes da mais clássica ternura: desenhos, versos, pequenas historietas, dedicatórias diversas, enfim, aquela panóplia que qualquer amor parvo sustenta e que uma trituradora de papel dissolve sem especial gasto nem de energia nem de lágrima. Ela gostara razoavelmente dele, disso não tinha dúvida, ele era aquilo que se costumava chamar na gíria dos relacionamentos ‘um homem especial’, e, diga-se, agora também ainda gostava, mas de outra forma, pois no fundo era ele que lhe permitia ser viúva. Assassinara-o, sim, mas tantas vezes ele dissera: «tu és a minha razão de viver». Cansou-se de tanta responsabilidade, mas também nunca o poderia ver nas mãos de outra que não uma santa consagrada, ou, vá lá, um anjo com pergaminhos.
A sua primeira extravagância foi ir ao cinema sozinha. Sempre se conseguira esquivar a ir ao cinema em formato casal, temendo que ele exagerasse nas manifestações externas e oficiais de carinho, aproveitando-se do ambiente penumbroso das salas de cinema. Não seria nada de mais, mas ela gostava de apreciar o cinema sem interferências.
No final do filme ficou refastelada na cadeira. Saboreando os créditos finais. Sentia-se bem na sua nova pele de viúva, gozando também de créditos póstumos. Livre de sentimentos banais mas irradiando alguma hipótese académica de sofrimento.

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