Lúcia e Armando estavam com problemas em gerir os seus
mal-entendidos e a desenvencilharem-se das rasteiras que traz uma vida em comum. No entanto,
decidiram por mútuo acordo que isso não era razão suficiente para se separarem.
Para tal haveria que criar um mecanismo que estabelecesse uma espécie de
desentendimento organizado, algo que em vez de apelar para a mais tradicional união
na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, deixasse antes bem clarificado
quais as pontes de discórdia, e estabelecesse as regras para o que era uma
dedução e o que era uma intuição, ou o que era uma ironia e o que era uma piada,
e por aí adiante. Chamaram o Dr. Sílvio e pediram-lhe o esboço dum MOM, um
Memorandum of Misunderstanding. Silvio Saraiva era um especialista em
reconciliações impossíveis, tinha no seu currículo verdadeiros milagres da
concertação conjugal e considerou este processo de parasociabilidade um desafio
à sua altura. Hoje, o seu trabalho no Memorando de Desentendimento de Lúcia e
Armando é uma peça de referência, um modelo de sincretismo e eficiência legal que
faz doutrina em todo o mundo relacionado com o direito de família,
inclusivamente já foi estendido com adaptações a universos jurídicos adjacentes
ou afins, e que aqui temos a fortuna de reproduzir na integra e de forma
inédita:
artigo 1º O gracejo
Considera-se gracejo dentro dos limites a piadola, dito
espirituoso, ou chalaça, que não envolva directa ou indirectamente actos
copulares específicos ou genéricos de nenhum dos conjugues com terceiros, a não
ser que venha disfarçada em jogral de rima cruzada.
artigo 2º A insinuação
Considera-se uma insinuação aceitável aquela que não inclua
explicitamente: a) actividades de pendor clintonianas; b) referências
grosseiras a passados devidamente prenupciais e fora do contexto.
artigo 3º O tom
Qualquer entoação em frase, interjeição ou simples onomatopeia é aceitável desde que não seja
acompanhada por mão na anca.
artigo 4º A formulação
Está vedada a formulação de ideias através de alíneas ou
qualquer outro tipo de organização esquemática de ideias. Um desacordo, uma
irritação, ou mesmo uma indignação enraivecida deve ser apresentada
erraticamente quando não mesmo aos repelões de discurso.
artigo 5º A provocação
O acto provocatório verbal ou gestual deve ser sempre
exercido num ambiente em que a resposta possa ser imediata e se adapte sem
restrições à ironia ou mesmo ao sarcasmo, e desde que devidamente salvaguardada
a inexistência de venenos no circuito doméstico.
artigo 6º A abstinência
Pode ser ameaçada dentro de um quadro de compensações a
anexar ao presente acordo, devidamente rubricado e lubricado.
artigo 7º O insulto
Considera-se insulto profiláctico aquele que: não envolva
outros membros da família até ao terceiro grau, nem quaisquer orgãos do
aparelho reprodutor masculino ou feminino.
artigo 8º A periodicidade
Está vedado qualquer tipo de manifestação de hostilidade em
dois dias seguidos ou cinco intercalados dentro de cada mês. Os dias de lua
cheia ou nova deverão preferencialmente ser passados a ver dvd's do seinfield
ou da procissão das velas, consoante os credos.
artigo 9º Os juízos de intenção
Todos os juízos de intenção, os verdadeiros dopings do
desentendimento, terão direito a contra-análise que se deverá efectuar em
ambiente neutro, de preferência almofadado, com algemas e chicotes opcionais.
artigo 10º As justificações
São admitidas por via deste memorandum as seguintes
invocações paliativas:
- 'hoje
estou muito sensível'
- 'hoje
estou com a cabeça cheia'
- 'hoje
ando mais distraído/a'
- 'isto
amanhã passa-me'
Excepcionalmente poderão invocar-se interferências de índole
zodiacal nos mesmos termos e condições previstos no artigo 8º quando aplicável.
artigo 11º A neura
O mecanismo da 'neura' poderá ser considerado atenuante
desde que previamente anunciado com um prazo mínimo de 48 horas.
artigo 12º A represália
Sem prejuízo do disposto no artigo 6º é considerada
'represália fora do penico' quando um capricho conhecido e praticado de forma
ininterrupta há mais de dois anos por uma das partes, sem ser formalmente
denunciado e repudiado, não venha a ser considerado, respeitado e caridosamente
acarinhado pela outra parte.
artigo 13º A recriminação
É admissível sempre que acompanhada pelos factores
atenuantes: a) 'tu também tiveste um bocadinho de'; b) 'mas eu também não
estive muito feliz quando'. A possibilidade de prevalência desta atitude só é
possível, à luz deste memorandum, se se exercer em paralelo o mecanismo de
comunhão na culpa.
artigo 14º O ressentimento
Só são admitidos ressentimentos acompanhados de
somatizações bem definidas: choro, borbulhagem, dor nas
articulações, suores em zonas expostas e, em casos mais desesperados, pingo no
nariz. O ressentimento que se confine
apenas às esferas dos egos e dos eventuais inconscientes está vedado em
absoluto.