vida interior

remédio da década - Rennie com pistachio

entranha da década - cólon sigmoide

generosidade da década - passagem de calças nº 40 para 44

cueca da década - unno poliamida-elastene

descoberta da década - fases da Lua

frase sublinhada da década - «se a sabedoria de shakespeare for de fiar, o homem, graças à sua cobardia, é o ser no qual o infortúnio amadurece»

recalcamento da década - venda de acções da JM abaixo de 3 euros.

visão escatológica da década - couro cabeludo

sentimento vergonhoso da década - incompreendido


Espero que o novo ciclo de translação deste planeta que nos acolhe cumpra as mesmas regras físicas que o Criador lhe destinou nos últimos, vá, 357 milhões de anos. E que a força da gravidade nos acompanhe; obsessivamente.

The Psico Country II

Existem dois tipos de lagartos: a) aqueles que, ao verem o seu clube no estado deplorável em que está, desprezam a frase do House ('misery is better than nothing'), e pura e simplesmente desistem olimpicamente dedicando-se à família ou à bebida, ou às duas coisas em simultâneo até que o fígado próprio e a paciência alheia aguentem; b) aqueles que enchem o peito de ar, oferecem a dignidade à ciência e dizem: agora vou ser um observador imparcial dos outros caralhos. O real problema de b) é que manifestamente um lagarto não pode ser imparcial quando no tabuleiro em análise se passeia um clube que enverga como símbolo um frango de rapina. Mas dado que o nosso Cavaco pediu tempos de 'frutuosos entendimentos' eu fiz um esforço de ventrículo a aurículo e ora vai daí: como é possível os lampiões terem de facto dado uma lição de bola em todas as suas vertentes (a palavra 'vertente' vale três pontos nesta modalidade do postball), ou seja, na psicológica, na táctica, na técnica, e no tunel-de-acessica (um novo elemento do jogo, como sabemos), à tripeirada? Como foi possível fazer um uretra secar um fucile, como foi possível um namorado da diana chaves meter um hulk no bolso, como foi possível um luisão pôr a alpista um falcão? Como? Eu tenho a resposta. Os portugueses têm a resposta. Jesus foi um obcecado. Jesualdo um mero calculista.

The Psico Country I

«A obsessão evitou o pânico»; foi um dos mais recentes highlights sobre a reacção nacional à gripe ex-suina, rebaptizada h1n1 depois de se ter casado civilmente com a gripe das aves.
Mas o que realmente importa é a lição: o pânico evitado pela obsessão.
Que a obsessão já tinha dado de comer a muito artista já será do domínio de todos, que já tinha alimentado o fogo de muita paixão também por muitos terá sido experimentado, e que permitiu ligar vários psiquiospeculatras à grande corrente do graveto também por alguns já foi constatado. Agora como terapia para o pânico é uma verdadeira invenção nacional, poderíamos mesmo dizer que estão abertas as portas para o grande cluster da obsessão. Observemos: tivemos a obsessão da educação (que guterres, por ser da raça inferior dos engenheiros, chamou erradamente de paixão) que nos fez evitar a seca ao conduzir-nos ao pântano, depois tivemos a famosa obsessão do déficit que nos evitou das ceroulas (lembre-se, estimadíssimo leitor, -?- que passámos directamente da tanga do barroso para o sobretudo armani do mourinho), e vivemos ainda na ressaca da obsessão tecnológica que libertou as nossas crianças do nefasto playmobile e lhes abriu as portas para o twitter de cavaco. Poderíamos já concluir, assim, que depois de devidamente dobrada a esquina de qualquer obsessão se abririam avenidas de bem estar e alamedas de prosperidade. Mas agora foi-nos dada a definitiva prova, foi-nos revelada a quarta parte do segredo: no panic at all!. Quando os medinas carreiras da galáxia nos vierem acenar com o fim do mundo, responder-lhe-emos com a obsessão que tivermos mais à mão: sejam jaquinzinhos fritos, sejam gambinhas panadas, sejam arrozinho de berbigão. Uma coisa é certa: saberemos arranjar uma obsessão. Eu por acaso teria preferido uma boa paranóia, mas ninguém me perguntou nada.

Würste füllen


projecto rejeitado para decoração da banca de enchidos de natal do pingo doce. lápis ikea, aguarela e marcador

E como é praticamente Natal até ainda vou citar outra tasca, dum lampião, me parece, de seu nome 'circo da lama'.

«Aclamado pela crítica e pelo público decidi especializar-me em palavras e expressões alemãs que apareciam muitas vezes em livros eruditos sem a respectiva tradução. Aquelas palavras e expressões que o tradutor não traduz porque confia na cultura do leitor: sturm und drang, aufklarung, blitzkrieg, blut und boden, ersatz, lebensraum, anschluss. Várias vezes discuti alguns destes conceitos ignorando por completo o seu significado, partindo do princípio intuitivo que teriam a ver com invasões, extermínios e outros passatempos habituais do povo alemão. »

Em cada geólogo um amigo

Completamente despeitados por ter sido ignorados pela cimeira de Copenhaga, os verdadeiros intervenientes no clima decidiram reunir-se de emergência numa ciumeira realizada para o efeito no triângulo das Bermudas.

O Anticiclone dos Açores fora um dos principais impulsionadores desta iniciativa e assumiu a direcção dos trabalhos por unanimidade. Começou por pedir desculpa pela ausência da Corrente Fria do Labrador, que tinha apanhado uma pontada nas costas da Gronelândia, e a sua revolta fez-se logo sentir na declaração inicial:

AdA - Não sei quem aqueles palhaços inimputáveis, como diria a nossa amiga Mizé, pensam que são! Nós que dedicamos a nossa existência a dotar o planeta de vida e animação somos tratados como meros instrumentos de estratégias obscuras de aquecimento e arrefecimento, como se fossemos escalfetas! Vou passar já a palavra à nossa companheira Monção que vai apresentar a sua declaração formal.

Dona Monção - Que lhes chovam esguichos de esperma do Xiva e do Brama são os meus votos! Planeta sustentável é a prima deles! Nós é que temos de fazer o trabalhinho sujo todo, e eles é só almoços e jantares. Fique aqui lavrada também em representação dos nossos camaradas dos Ventos Alíseos a minha formal monção de censura.

O lobi dos tufões depois duma renhida votação com a Katrina tinha escolhido o fenómeno el Niño como representante (nenhum associação o queria por causa do mau feitio); o tipo vinha com o gás todo, pelo caminho até tinha aspirado dois campos de coca na Bolívia, mais outra cabana aos três porquinhos:

El Niño - Se calhar os gajos pensam que é a engraxar o efeito de estufa que vão lá...quero lá bem eu que os cfc's se fodam, se me apetecer enfio com duas embalagens inteirinhas de laca Pantene nessas dondocas das Carlotas Polares...

Donas Calotas P. - Calma, Niño, comporta-te com maneiras, e evita os trocadilhos, faxavor! isto com a Katrina se calhar levava-se com mais elevação e discernimento. Companheiro Anticiclone, para o ano temos de instituir quotas aqui na cimeira...

- Talvez seja a única forma de aqui entrarem as putas das Placas Tectónicas... - apressou-se a dizer o El Niño.

Temendo o desenvolvimento de alguma chuva de peixeirada ácida na cimeira, a União dos Glaciares Suiços pediu a palavra:

U.G.S. - Queria chamar a especial atenção de todos que, por causa daquela coisa dos minaretes, já dois membros da nossa associação derreteram para o lago Leman e se não põem mão nisto não tarda não servimos nem para os campeonatos de patinagem no gelo.

A Camada de Ozono mantinha-se muito calada o que começou a intrigar o resto dos fenómenos presentes na cimeira... Mas antes de qualquer reacção deu-se a palavra ao Geiser Mendonça Bjork do Rós que tinha o estatuto de observador:

Geiser MBdR. - Depois da bancarrota lá na Islândia ainda fomos nós que aguentámos aquilo...ou seja, se não fosse o nosso aquecimento interior a esta hora cada português tinha de receber um islandês juntamente com um magalhães e um guantanamês em casa.

Foi nesta altura que a Camada de Ozono sentiu que tinha de se pronunciar:

Mme Couche d'Ozone - Meus amigos, eu não me conformo. Passei anos a defender a moda dos buracos, cheguei inclusivamente a fazer desfiles noutros planetas, quase tive uma colecção com uns furinhos em cornucópias vendida para as luas de Saturno e agora vêm-me estes cabrões e lixam-me o negócio! Cozonudos dum raio!

Foi então que o presidente teve de interferir, encerrando a sessão:

Anticiclone dos Açores - Companheira, nós não estamos aqui para tratar dos nossos interesses individuais, temos uma nobre e global missão a cumprir, temos de honrar os nossos heróicos antepassados: Cometas , Dilúvios e Pragas de gafanhotos , entre outros; não podemos deixar a animação do planeta nas mãos de cientistas e doutros burocratas afins! Temos igualmente um prestígio a defender. Todo o geiser que se queira fazer um vulcão tem o pleno direito de desflorestar 30 sequóias. Não queremos o planeta feito num quioito.

italics strike again

O triângulo mágico inveja, cobiça, ciúme atinge o seu clímax geométrico na desconfiança. É ela que lhes dá o volume, transformando o que se poderia ficar como mera figura artística do plano numa pomposa pirâmide por si encimada. Não deixa de ser estranho o papel que assumem na condição humana algumas propriedades da personalidade que, vistas sem circunstanciação, parecem autênticos monstros de parábola. Mas toda a doutrina moral devia ser muito cuidadosa a abordá-las. Quando o homem sai de si próprio a primeira poça que pisa é a da cobiça. Delicadamente os poetas chamaram-lhe deslumbramento, os prosadores fantasia e, por último, os confessores pecado, por isso muitas vezes não nos damos conta de que é apenas um buraco com água parada. Mal refeito e de pés molhados o homem pisa de seguida uma bosta chamada inveja. Sente-se logo mais desconfortável com o cheiro, o toque pastoso, e procura limpar-se apressado e ajudado pela grande madrinha: a vergonha; eis quando pensava que já poderia andar aos pulos pelos prados verdejantes da virtude quando, depois dum salto mal calculado, escorrega numa folha seca: o cabrão do ciúme; o mais incomodativo dos vértices do triângulo, ali a meio caminho entre o castigo e a sina. Levanta-se, olha para cima, suspira e hesita. Não sabe se deverá continuar ou se deverá voltar para si próprio. O céu transmite sempre sinais contraditórios. Está sempre na mão do homem escolher entre a desconfiança ou a confiança. Escolher entre um topo de pirâmide ou uma infinita abóbada.

Girls for Decade #8

Cat Power, obviously

uma historiazinha

Nos United States of the Bordélia Zé Formosinho Bastos tinha sido escolhido para director da Cinemaqueca. O acervo patrimonial contava com raridades como a primeira cena com celulite expressa de Soraia Rebelo ou mesmo a famosa sequência que ficou para a história da libidinosidade como a 'isso faço-t'eu com o mastoideu' , em que Maria de Lurdes Farelo contracena com António Chicha num barco Rabelo.

Zé Formosinho já declarou que pretende arrancar o seu mandato com um ciclo dedicado a obras que contenham cenas com uniões civis de facto e de gravata. Afirmou igualmente que não pretende politizar a programação e que a cinemaqueca com ele nunca estará ao sub nem sobre rectício serviço de nenhuma corporação nem corpo-loção de interesses. O ministro da tutela - depois de garantir que tanto era de tutela como de tutele - solenemente declarou que estava aberta uma nova via para a dignificação, conservação e divulvação, perdão divulgação, das partes mais íntimas da cinematografia da Bordélia. Seriam privilegiadas as cópulas de autor e o período na nova experimentação, que tinha, entre outros casos, revelado ao mundo a famosa série ' 20.000 quecas submarinas' onde, num dos hippysódios, o comandante Joaquim Cousteau-mas-foi, com um lencinho woodstookiano no cabelo, segurava na botija de Sofia Lameirinho.

luis herberto vaz de b fachada helder camões

«Perguntei ao vento se trazia um cabelinho teu e até ao momento o raio do vento não me respondeu»

de-há-muito-tempo-não-se-ouvia-um-disco-cantado-em-português-tão-bom.

Parece que já há mais brasas que sardinhas

Os geólogos dizem que o calor vem do interior da terra, os meteorologistas dizem que o calor deriva dum ataque de traça no cobertor de ozono, as putas dizem que o calor são elas mesmo que provocam, os químicos dizem que o encaloramento é todo responsabilidade dum tal de carbono com verdete, os biólogos dizem que já não há fundo de costas de mamífero que aguente, a churrascaria galo velho em Ermesinde diz que desde que mudou para gás natural o frango não sabe da mesma maneira, o icebergue Gaspar, sito em Gronelandia, 23, diz que está um nadinha a assar das virilhas mas que pensa ser dos filhotes da foca Zulmira que andam com problemas nos dentes, a fossa das Marianas informa que encontrou dois bivalves heterossexuais já em fase de união à bulhão pato a 2500 m de profundidade, a secção do Chile do sindicato dos lojistas monhés diz que têm em pr0moção um lote de lareiras com revestimento em vitrocerâmica vai para dois anos e não se vendem, sendo que a culpa é dos aquecimentos centrais, do ikea e dos vendedores semi-ambulantes de Canal Caveira, a cabra Isilda diz que não a convidam para uma chanfana desde que as caçarolas de barro começaram a estalar, a corrente quente do Golfo informa que na pensão 'Saint Jean de la Copule' na cidade do Quebec vai haver duches quentes à borla a partir do dia de Reis, e o departamento de fósseis do Guincho diz que é proibido fazer bife na pedra na arriba voltada a poente.

Girls for Decade #7


Regina Spektor

um pouco mais de itálicos, por favor

Quando Deus inventou a mente humana apetrechou-a imediatamente de dois componentes fundamentais: a mentira e a vergonha. Sem eles o homem vegetaria num jardim de plástico onde os cães iriam alçar da perna para apreciar o troar do mijo. Abençoada a capacidade de chamarmos magro ao gordo, estúpido ao inteligente, novo ao velho e bonito ao feio. Demos graças por tremermos por dentro à mais leve ameaça de sermos considerados incompetentes pelos nossos filhos, imorais pelos nossos pais, flatulentes pelos nossos vizinhos. A muito pouco devemos mais do que à mentira e à vergonha. A coragem e a lealdade saberiam a palha, o amor e a amizade seriam quimeras de batráquio. A primeira mentira e o primeiro rubor são os segundos baptismos da alma, como irmãos que beberam do leite da mesma loba e fundaram as raízes da liberdade humana.

Girls for Decade #5 & #6

(secção cplp)


Mayra Andrade

Marisa Monte

Girls for Decade #4


Hanne Hukkelberg

tudo isto é para ler em itálico

Como é possível que já todos tenhamos dado conta, as percepções e as aparências são muito mais reais que os factos. O homem antes de ser racional ou mesmo sensorial é um animal de revelações. É por isso que o fenómeno mais importante da humanidade (como história e como entidade sociológica) é uma revelação que vive muito mais da aparência e da percepção do que do facto em si. O indeterminismo antropológico (leia-se: o homem como máquina psicológica de reacções e hábitos) alimenta-se precisamente desta superlativa dose de maluqueira que temos inscrita nos, vá lá, genes, para utilizar um termo assim mais cocozinho. O mecanismo religioso é a mais fantástica gestão que o homem (leia-se: máquina psicológica de reacções e hábitos) descobriu no seu interior para fazer da percepção e da aparência verdadeiras fadas do lar (leia-se: lar como último reduto da tal máquina psicológica). Assim, concluo, quem não tiver desenvolvido - não basta ter, tem mesmo de desenvolver - uma rotina religiosa nesse seu reduto, bem pode fazer uma bela camisinha de forças com franjinhas a toda essa/esta realidade factual que anda aos peidinhos no ar (leia-se: peidinhos no ar como nietzscherianamente esvoaçante).

Girls for Decade #3


Lisa Germano

Girls for Decade #2


Neko Case

Gaymebox

Segundo parece o Sepórte tem uma premessão de gaimeboqchs para casales compostos por um home e uma garina. Tal premessssão orienta-se numa estratégia de trazer mai mulherio ao estádio, contribuindo assim para o cumprimento das quotas também no que concerne às - coloridas, registe-se - bancadas de alvalade. Trata-se pois dum Clube política e ideologicamente responsável, e m'derno, intuo. Mas, Ó da guarda, parece que os auditores da taxa interna de apaneleiramento não apreciaram a medida e já ameaçaram que na próxima parada todas as plumas vão ser encarnadinhas e brancas.
Segundo consta o vizinho clube dos 6 milhõessss de portuguesessss reuniu-se de emergência para se desmarcar das medidas do rivále, e pretende alavancar a situação definindo um conjunto de iniciativass de natureza inclusiva e mobilizadora para todos e todas as mais diversas confissurações e enrebanhamentos.
Luisss Felipe Vieira começou por pedir a palavra e disse: queridos e queridas em primeiro lugar demos todos as mãos pois o sporchbôibenfica ama a todos por igual e quanto mais pluribusssss mais unum como diz o nosso lema. Para verem um luisão ou até um saviola haverá sempre lugar para todos assentarem a peidola (sorry , não resisti). Aimares do meu coração, vinde todos, trazei os vossos césares peixotos e não discriminemos nenhum mantorras, nem se perca nenhum caracolinho do nosso david luiz. Nós queremos todos: introsexuais, eritrosexuais, ornitorincosexuais, nunogomesosexuais, berloqosexuais, gaimeboxosexuais, todos! haverá premesssões para todos! inclusive circuncidados! Por cada escalpe do pinto da costa o sporchbôibenfica oferece um poster do di maria em truces adidas, ou um fim de semana com a águia benfica. Quem comprar um poster do maxi pereira tem direito a camarotes com cama de ferro e coleira com picos, que ficarão conhecidos como os cama-rotos da luz. A partir d'hoje está oficialmente lançada a gaymeboxe do sporchbôibenfica.

Girls for decade #1


Shara Worden, My Brightest Diamond

(por singular coincidência actua hoje pela primeira vez em Portugal; conferir, por exemplo, aqui ou aqui ou onde der na real bolha de vexas)

Neo-Escatologismo


Negacionismos, faltas de memória colectivas, materialismos dialécticos, geno-taras, enfim, a um pouco disto tudo assistiam Deus nosso Senhor e a sua corte de anjos e santos vai para uma carrada de séculos e ultimamente com coloridos cada vez mais arco-íricos. O Altíssimo olhava em seu redor esperando algum comentário mais pertinente por parte das abençoadas hostes, mas apenas descortinava S. Francisco de Assis fazendo festinhas a um gatinho, Sto Inácio de Loyola a fazer palavras cruzadas, e Sta Cecília assobiando o strangers in the night. O arcanjo S. Miguel chegou a desabafar: não me digam que foi para isto que eu andei à porrada com o cabrão do Lucifer, arriscando-me ainda a arranjar uma tendinite nas asas.

Durante séculos o anjo Balduíno tinha visto a sua hipótese teórica da reincarnação posta de lado pelo Criador, - chegando a apresentar mesmo algum ar de enfado na sua Sagrada Face - para já não dizer que era alarvemente gozado pelos outros anjos que diziam «olha olha o beduíno armado em sultão». Mas Balduíno mantivera-se persistentemente num regime de just keep ringing durante uns bons milhares de anos e agora sentia com fresca confiança que tinha chegado uma nova e grande oportunidade de voltar a dar força ao adormecido 'lóbi-da-reincarnação', para o qual já tinha angariado como adepto o anjo Ramirez, uma potestade loira especializada em reconstituição de almas de náufragos da pesca do atum (como se sabe a humidade em excesso faz mal ao espírito), e inclusivamente sacara duas ou três palavras encorajadoras dum tal de Aquino que, afinal, também era incapaz de virar costas a alguma animação teológica e achava a sua Summa já demasiado em conserva.

Balduíno resumia as suas teses da seguinte forma: se as almas em vez de virem logo para aqui ou para a churrascaria do primo Satanás passassem uma ou duas temporadas noutra vida terrena podia ser que se aperfeiçoassem mais e deixassem de dar razão à célebre frase: «com a história aprende-se que os homens não aprendem com a história». Yahvé mostrou-se pela primeira vez sensível ao tema e quis ouvir mais, tendo, no entanto, avisado logo Balduíno e Ramirez que não queria floreados com reincarnações em bicharada, lavagens d'almas, ou outras pirotecnias penitenciais; «há princípios intocáveis!», foi a Sua deixa.

Mas o lobi-da-reincarnação desta vez tinha-se preparado bem. Ramirez sacou logo de início duma arma argumentativa fortíssima dizendo «estamos a despender recursos enormes com o sistema actual do Purgatório», e nem se acanhou perante os sobrolhos franzidos da zona mais conservadora, passando a palavra a Balduíno que rematou com uma sagacidade de felino «o bem é denso e cumulativo, o mal é volátil e esporádico». Deus se estivesse na Capela Sistina ter-se-ia espreguiçado, mas preferiu fazer um ar interessado, chamando-os mais para perto e perguntando-lhes: «Quer faríeis então com os recursos do Purgatório nessa vossa modalidade?».

Balduíno sentiu então aquele fernicoque de espinha próprio dos grandes momentos e mandou avançar Stª Matilde Rebuffel que se destacara em santidade por tratar os cavalos dos regimentos napoleónicos na sua campanha italiana à base duma pomada de guelra de faneca benzida nas margens do Reno, deixando-os prontos para brilhar em qualquer hipódromo com ou sem baronesas. Sta Matilde tinha desenvolvido um sistema de reincarnações em que cada alma ia experimentando situações de vida que lhe carregavam a garupa de experiência e elasticidade, ora do lado dos mais tendencialmente oprimidos, ora do lado dos tendencialmente mais opressores. Mas Matilde começa verdadeiramente a brilhar quando tira do bolso o papelinho onde tinha desenhado todo o esquema revolucionário de gestão de carreiras reincarnadas aplicado a almas em regime de purgatório-free. Os representantes do sindicato dos guardiães do reino de todas as purgas começavam a remexer-se na cova das nuvens.


(pormenor do papelinho de Sta Matilde contendo o esquema básico das reincarnações)

O verdadeiro segredo não estava afinal apenas no mecanismo pendular de reincarnações tipo homem rico-homem pobre, mas sim nos períodos intermédios entre elas, onde cada alma como que passava por um pousio de sabática recuperação, uma unidade celestial ali entre a nave espacial e a célula de neurónio de australopiteco, podendo rever alguns detalhes sobre as melhores técnicas de utilização de livre arbítrio sob condições hormonal e financeiramente adversas. Sendo certo que cada alma desconheceria sempre por completo os contornos da nova encarnação, este sistema permitiria, segundo o lobi-da-reincarnação, uma transição controlada entre os vários degredos terrestres, naquilo que os actuais representantes da espécie dependente de antibióticos designam pós-pós-pós-modernamente por sistema auto-sustentado.

Foi nesta altura que o Anjo Veloso (especializado em síncopes súbitas por intoxicação alimentar) e São Grunevaldo (conhecido por ir às amoras com São Bento), os dois chefes do sindicato do Purgatório, temendo pelo destino da sua corporação ancestral, se chegaram à frente e reclamaram «como podemos estar a dar antena a estes arrivistas lunáticos sem quaisquer provas dadas no exigentíssimo project management d'almas, quando é evidente que isto não é trabalho para maus desenhadores, e viver não é uma psicoterapia». Sta Matilde deu um passo em frente e disse que então ainda tinha algo de importante a dizer. Deus franziu a sua Sereníssima Face.

«O mundo vive enfatuado num progresso com presuntos de barro. A história consome a história, a treva consome a luz, o velho consome o novo. O homem queima oportunidades numa braseira de esquecimento. A invenção do futuro não está a compensar o desgaste do passado. É preciso uma nova via de preparação de almas, a penitência purga mas pode não salvar. Há que saber fazer uma pausa quando não é a meta que define a vitória».

Sururu montado nas fraldas da last frontier das galáctias. Balduíno pensava que tinha marcado pontos, mas o lobi-da-purga tinha muito peso. São Grunevaldo pega na palavra e não é de rodeios: «o homem tem todas as oportunidades inscritas na sua alma, a vida é um único contínuo, one body-one soul, foi assim que tudo foi concebido, foi assim que Job ficou com desgastantes azias, foi assim que David aviou com o Golias, não transformemos a providência num plano tecnológico de novas oportunidades...». «Chega!» - disse Deus, sentindo já demasiada poeira cósmica no ar, não havia uma guerra químico-teológica daquelas desde os tempos em decidira abrir as águas para o Moisés passar.

O reaparecimento do lobi-da-reincarnação significava um abanão nas bases da Criação, mas de facto as Sodomas agora reproduziam-se que nem pombos. O homem tornara-se um bicho entre o obstinado caprichoso e o desinteressado folgazão. A roda da história alimentava-se da inércia da estupidez. Mas o que fazer com homens que passariam a aprender com 'as vidas' em vez de aprenderem com 'a vida'. Balduíno & Ramirez teriam de continuar a esforçar-se, mais ainda não era desta que um tipo passava de marceneiro a banqueiro com intervalo para lanche místico-táctico. E Veloso & Grunevaldo também teriam de dar mais corda aos sapatinhos, o purgatório andava num certo marasmo e já não acicatava as consciências.

Foi então que Deus decidiu dar uma chicotada psicológica no balneário dos anjos ( se resulta nos lagartos resulta em qualquer lado). Chamou os dois líderes das facções em confronto no concurso de bricolage teológico e disse-lhes: «Meninas e meninos, ponham mas é essa cambada de calaceiros em que se tornaram os anjos da guarda a mexer os rabinhos, pois os indicadores aqui do Paraíso estão a ficar piores que os lá de baixo».

E foi assim que começaram a ficar conhecidas as 'beatificações Veloso & Ramirez', nas quais um gajo que só tinha feito merda a vidinha toda era safo à ultima hora só por ter ajudado um saramago qualquer a atravessar a passadeira com o semáforo encarnado.

Rolando Ginja

Rolando Colaço fora um rapaz perfeitamente normal até se ter submetido a um tratamento revolucionário para a recomposição demográfica do seu deficit capilar. Nessa sequência e após vários implantes de duvidosa proveniência foi confrontado com uma moleirinha ao nível duma paisagem lunar após a explosão em busca do milagroso agádoizó. Inconformado, recorreu aos serviços de plástica & estética dum especialista credenciado que, nada lhe prometendo no seu aspecto em geral, lhe garantia farta cabeleira em particular. A intervenção correu sem necessidade de atestados falsos e o efeito obtido levou a que a enfermeira do recobro, Vânia Coentrão, de fogosa fama, exclamasse: «Rolandinho, o menino ficou uma autêntica ginja!». E assim ficou posterizado: Rolando Ginja.

Rolando Ginja no pós operatório

A tara pelos clássicos que o cirurgião plástico Leonardo Vassily alimentava desde os seus tempos de faculdade, levara-o a uma técnica de recuperação de coiros cabeludos denominada de minotaurização, uma combinação entre criatividade hormonal, cogumelos mágicos, transplantes avulsos, e citações de Plutarco. Nalguns casos, como foi o de Rolando Ginja, esmerava-se; iconoclasticamente.

Rolando estava assim pronto a iniciar uma nova vida, procurando fazer render ao máximo a sua nova condição de minotauro-ginja. Desde logo percebeu que uma vida solitária não estava protegida pela lei que inexplicavelmente apenas contemplava uniões entre machos e fêmeas sem qualquer atributo mitológico, num desprezo evidente pelas raízes culturais da nossa civilização. Decorrentemente todas as suas experiências de teor romântico se viram turvadas ao desembocar num beco sem qualquer possibilidade de relevância jurídica, para além de desencadearem um, mais do que justificado, alarme mitológico nas mulheres que, ao olharem para o seu minotauro-ginja pensavam de si para si «uma coisa é fornicá-los outra é pari-los».

Rolando Ginja e Célia Saraiva em Amor Romântico na sua fase turva
Rolando Ginja sentia-se assim desiludido com o rumo que tinham levado a suas experiências românticas, nas quais ele tinha entregue o melhor de si a todos os níveis - desde os corninhos à ginjinha - mas não tinha sido o suficiente para se libertar do labirinto de incompreensão constitucional que lhe estava destinado. O amor não quebrava todas as barreiras, envergonhando-se assim séculos e séculos de poetas e místicos, e abria-se caminho a mais um rol de séculos e séculos de orgulho para dramatófilos e existencialistas carecas.
Restava-lhe enveredar pela etapa seguinte de relacionamentos mais baseados no intercâmbio de fluidos e afago de coiros. Aumentava a despesa em álcool e lingerie, mas diminuía a conta da florista e do trovador. Rolando mostrava-se episodicamente melancólico, mas regra geral fazia jus à sua condição de minotauro-ginja, ora investindo, ora bufando, ora sendo um autêntico tauro-sapiens que apresentava a ternura ainda num estado tão puro como o vodka de Novosibirsk.

Rolando Ginja e Carla Solange em momento de experimentação lúdica
Mas mais uma vez o impedimento legal de formalizar juridicamente uniões sólidas baseadas num processo de destilação comum entre um minotauro-ginja e uma roliça fêmea (nenhuma mulher se sustenta com uma mera bebedeira e uma amizade colorida pelo entardecer na lezíria) levaram Rolando a um processo de depressão e desligamento do mundo do qual saiu apenas a muito custo, e graças à intervenção das freiras de uma ordem especializada em problemas de índole mitológica e desvios de carácter relacionados com a interpretação literal da filosofia clássica.
Foi em pleno processo de recuperação que o nosso Rolando Ginja descobriu a sua verdadeira vocação de partilha sensorial. Afastado da procriação, afastado do amor romântico, afastado do experimentalismo lúdico, descobriu o seu caminho no amor-em-pluralismo. Iria dedicar-se a promover a causa dos amores-grupais entre minotauros, ex-jogadores de rugby franceses e modelos de Botero.

Rolando, François Cabernet, Julia Guiomar e Sandra Bajouli em pleno activismo do lobi ginja
Rolando reencontrou nessa sua causa uma nova razão para viver. Sem barreiras de classe, nem de penugem , nem de apêndices cranianos, nem de largura de cintura, homens, mulheres, seres mitológicos, e convalescentes do serviço nacional de saúde, todos poderiam construir uma vida em comum sem necessitar de adoptar nem gatos, nem cães, nem periquitos, nem quaisquer outros mamíferos transgénicos, tendo como lema: «Temos de ir levando isto por partes e com tempo para coçar os tomates»
Rolando transformou-se assim o mais activo elemento daquilo que ficou conhecido como o 'lobi-ginja', que acolhia portadores de pilas, testas e lombos de todas as maneiras, rigidezes e feitios, e que deu aos minotauros e às mulheres sem verba para a depilação laser uma nova luz de fantasia & esperança.

A República da Expressão

Depois de devidamente sedimentada a gloriosa liberdade de expressão, o Senado dos Teóricos decidiu que tinha chegado o momento de passar à fase seguinte da grande caminhada do progresso: a 'ditadura da expressão'.

Mandou assim reunir o Comité das Boas Práticas e pediu-lhe para definir as linhas bases da nova organização da sociedade. Libertada do obscurantismo da verdade, libertada da iniquidade errática dos factos, importava libertar agora a sociedade da monotonia da notícia e impor engalanadamente o império dos escândalos e da opinião.

Nesta fase mais avançada onde nos conduzira o período intermédio da liberdade de expressão iria então inaugurar-se uma nova república de jornaleiros e opinalistas, e seria finalmente recuperado com pompa o nosso estado natural: todos nascemos públicos. O valor mais importante da nova sociedade estabilizara no triângulo mágico: 'dever de todos se exprimirem', 'dever de todos se escandalizarem', 'dever de todos esquadrinharem'.

O Comité das Boas Práticas definiu que doravante todos veriam substituídos os seus cartões de cidadão por um novo 'cartão de conspiração', onde ficava expresso e definido qual o escândalo oficial a que cada cidadão ficava afecto e qual a posição que nele assumiria; reconheciam-se 5 tipos de cidadão: o bufo, o conspirador, o comentador, o apaziguador e o especialista. Qualquer pessoa que se quisesse eximir a uma destas estirpes de cidadania ficaria obrigado a depositar todos os meses uma colecta mínima designada como 'taxa de ermita'. De cinco em cinco anos dar-se-ia a rotação entre tipos para não permitir vícios e garantir alguma especialização.

Todos os cidadãos teriam uma obrigação que era transversal à gama: durante um mês específico ( podiam escolher o do nascimento ou o do registo da viatura) estavam obrigados a inventar um boato novo por dia e a viver em regime de livre ampliação relativamente a um qualquer dos escândalos oficiais, devidamente escolhidos e distribuidos pela junta de freguesia. Quem não cumprisse estes mínimos veria um abaixamento na categoria de escândalo a que estava afecto. Estaria fortemente punido o tráfico de escândalos entre pessoas, se bem que certos tipos de escândalos eram, oficiosamente, incentivados. A título de simples exemplo, a descoberta dum filho ilegítimo levaria a colecta de irs reduzir-se em 20%, e o assédio de uma catequista a um mancebo garantia isenção total de iva durante um ano.

Não se pense no entanto que tudo serviria para escândalo; nem tudo poderia ser considerado opinião, e muito menos comentário. A Alta Autoridade para o Escândalo faria toda a classificação e correspondente reencaminhamento da mais pequena insinuação ou opinião. Um dos indicadores principais da República era a 'taxa interna de escândalo' que media o nível de expressão dos cidadãos; apenas eram aceitáveis níveis mínimos de 2 escândalos nacionais por cada 1000 pessoas e 12 escândalos regionais por cada mil munícipes. Sempre que esses níveis de expressão eram perigosamente diminuídos, a Alta Autoridade para o Escândalo emitia uma instrução para o investimento público em escândalos, passando o próprio Estado a ter de abastecer os media de escândalos enquanto a iniciativa privada não sentisse um ambiente propício para escandalizar; uma espécie de keynescandalismo.

A globalização e a livre circulação de escândalos e opiniões seriam vistas com outro peso e medida, com outra precaução, e voltar-se-ia a um ambiente mais proteccionista: os escândalos internos beneficiaram de apoios vários, e a importação de escândalos do exterior teria de ser analisada criteriosamente pela Alta Autoridade, não fora as mamas duma baronesa prussiana retirar protagonismo à queca dum estivador no terminal de contentores .

O Senado dos Teóricos aceitou com agrado o modelo proposto e foi instaurada oficialmente a Ditadura da Expressão, com editorais simultâneos em todos os jornais diários celebrando um novo escândalo com uma lipoaspiração no deficit publico, devidamente comentada pelo cabaz oficial de cronistas, e com participações especiais de vários cidadãos-bufos que tinham contribuído com insinuações válidas. A liberdade de expressão fora devidamente revista, sublimada, e o novo regime colocá-la-ia agora no altar que lhe estava destinado: a Padroeira da Escandaleira.
Barbara Kruger

operação face visível

Como constatamos e consequentemente, nos melhores dias, sabemos, a igualdade não é uma condição da natureza. É uma construção ora social, ora politica, ora cultural, ora religiosa. Todos iguais perante a lei, a sociedade ou mesmo perante Deus é um edifício ou uma prática conceptual que nos é imposta. Cada pessoa antes de se sentir igual sente-se diferente.

História Abreviada da Psicologia Portátil (*)

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[1] Com o estatuto da consciência e do inconsciente já devidamente consolidados no campeonato da explicação da mente, importa sacar um terceiro parceiro para a guerrilha; chamar-lhe-ei : a 'franja'.

[2] Todos conseguimos perfeitamente identificar acções, pensamentos e até sentimentos que são rotuladamente da responsabilidade do que chamamos simplificadamente 'consciência'. Todos também conseguimos isolar uma ou outra acção, pensamento ou sentimento aos quais acometemos a responsabilidade a algo que está numa zona que chamamos, desde freud, de inconsciente, mesmo que não tenhamos uma ideia muita precisa de como e quando lá foi parar essa incumbência, ('recalcamento' costuma ser uma boa opção de catálogo) nem do que lhe garante comida e roupa lavada . Ora não haverá nenhum descendente de adão que, depois de superados os problemas básicos de sobrevivência e sem dores nas cruzes, não se ponha a pensar na razão de determinada atitude, ou de determinada coisa-que-lhe-passou-pela-cabeça e não desabafe mais ou menos explicitamente: mas donde é que me veio esta merda. Ou seja, não lhe reconhece a origem nem no seu amado, querido e imaculado 'eu-consciente', nem sequer no seu absolutamente misterioso e singular 'eu-inconsciente'; (ao contrário do que desejam os psicanalistas, qualquer gajo com um ou outro amigo minimamente decente e disponível acabará por conseguir conhecer praticamente todos os cantos desta sua zona afamadamente obscura).

[3] Chegou então a hora da 'franja'. Em primeiro lugar não é uma zona especialmente esquisita, nem sequer demasiado ciosa do seu papel, tem um compromisso funcionário com o universo-do-eu, poderá dizer-se que é uma espécie de carlos carvalhal da psique humana, uma zona que está disposta a tudo, inclusive a ficar com algo que as outras zonas de mais pergaminhos enjeitaram, seja por falta de espaço seja mesmo por objectivo desinteresse. No entanto, pode dizer-se que a 'franja' está particularmente habilitada a dar guarida a alguns mecanismos mentais peculiares, como sejam: conflitos morais, remorsos, ciúmes, invejas, vergonhas, inseguranças, e até eu's-projectados & afins; pode dizer-se que é uma especialista do homem-micro-social, daquilo que determina as nossas reacções nos momentos limites da relação humana bi-direccional sob tensão intermitente - nem o mário crespo se lembrava disto. Como podemos antever é uma zona muito permeável ao mood social, à formação religiosa, às cicatrizes das primeiras experiencias pós adolescência, aos sobressaltos na formação da auto-imagem, and so on, enfim àquilo que a vida tem de mais tangível para a psique e que não é nem imediatamente exigido ao balcão da consciência, nem imediatamente coberto e resgatado para ser apresentado à noitinha na gruta do inconsciente. É, sem dúvida, um reino psicológico onde a ambiguidade negoceia permanentemente com a razoabilidade. Onde a consciência não entra por medo e o inconsciente evita por táctica.

4. Vemos assim que a 'franja' é um albergue da psique que está eminentemente presente na nossa luta diária para conseguir gostar decentemente de alguém, e para conseguir que alguém goste decentemente de nós, para conseguir que a necessidade coincida o mais possível com a probabilidade. Todos os sentimentos-de-relação reclamam adereços que têm constantemente de ser aqui descobertos, combinados, costurados e embalados. O ser meramente consciente é incapaz de gostar de alguém, pois gostar exige um tempero de muita coisa que já teve forçosamente de marinar na 'franja'; ou chafurdar; no limite, afinal, a consciência é apenas uma mecânica mais ou menos sofisticada, uma contabilidade de curto prazo. Apenas a passagem pela 'franja' garante o acesso de qualquer sentimento (leia-se: forma mais elaborada de emoção) ao mundo da intangibilidade e, podemos mesmo afirmar, da glória.

5. Como cuidar então da 'franja', devemos mesmo perguntar-nos. Como saber se 'algo' está lá bem, ou se tem de passar uma temporada de limpeza no inconsciente, ou passar uma prova de fogo no jogo da consciência, ali ao frio e ao vento? Como avaliar o estado de maturidade dum ciúme, por exemplo? Estará no momento de confrontá-lo, ou será melhor abafá-lo. A 'franja' fornece-nos a verdadeira terceira via da psique: é o local onde - por exemplo - o ciúme pode ir vendo o que se passa lá fora, mas sem se comprometer, sem dar mau aspecto, e o 'eu-consciente', se precisar de contactá-lo, não precisará de fazer nenhum malabarismo, não dará o flanco . Na história da mente humana a 'franja' apareceu precisamente naquele dia em que a consciência precisou de se defender sem se esconder. É uma trincheira para sentimentos com sala-de-estar e kitchenete, mas também com abertura para artilharia fina. E decorada sempre à vontade da freguês, algo que nenhum dos outros apartamentos da psique se podem gabar.

6. A 'franja' anda sempre connosco de forma cúmplice. Enquanto isso, e ao invés, a consciência é, normalmente, obrigada a isso, e ao inconsciente arrastamo-lo porque temos medo de ficar sem passado, medo de ficar sem medos. Mas 'a franja' não nos acompanha como uma sombra (nem sequer como no modelo Junguiano), não é uma almofada de compensações, nem sequer é um - muito na moda - elemento integrador do 'si-mesmo'. A 'franja' é uma máquina de revelação. Um confessionário de poche.

7. O processo psíquico de intervenção da 'franja' desenvolve-se desta forma: pega num complexo já conhecido (não trabalha com material em bruto), de seguida dá-lhe, de início, umas palmadinhas nas costas, para logo depois lhe prestar uma pitada de susto (espécie de amassamento, absolutamente essencial), e de seguida colocá-lo entre a parede do ridículo e a espada do desconforto (nenhum sentimento se deve sentir folgado), finalmente propõe-lhe um desafio chantageante (a psique é um terreno lavrado pela chantagem) : ou vais à luta, ou vais para a solitária. É nessa fase que a consciência interfere tentando dar um ar da sua graça, é dela sempre a última palavra para dar brilho ao inquilino da 'franja': fornece-lhe o drama. O drama está para o conteúdo da 'franja' como a fala está para o conteúdo do inconsciente. Este, o inconsciente, bastas vezes nem sequer é convidado para a dança. Quem puxa então os cordelinhos de toda esta articulação? Confesso, não se sabe. Como podemos descortinar se estamos a perder o controlo à situação? Um método muito simples: nunca chegar ao ponto em que a consciência se canse em demasia e descarregue todo o material psíquico para cima da 'franja'. Por analogia diríamos, sem colcha não pode haver franja.

8. O principal conteúdo da 'franja' são as várias formas de seguranças e inseguranças. Venham elas do condicionamento social, ou do condicionamento moral, ou do condicionamento cultural, ou do condicionamento genético, ou venham elas mesmo do condicionamento astrológico. Por isso pode dizer-se que a 'franja' é uma recondicionadora, um patamar com espelho e biombo, adaptado tanto a uma consciência que frequentemente se cansa de ser consciência, como a um inconsciente que nunca sabe se está bem aperaltado para sair. Outra das funções mais importantes da 'franja' é permitir que a psique se apetreche deste conhecimento revolucionário: a segurança é composta por um puzzle pequenas inseguranças. Apesar de parecer um enunciado quase a meio caminho entre o prosaico e o gosto duvidoso, é determinante para entender a correlação vectorial que conduz aos mecanismos da segurança: um bom sistema de inseguranças é aquele que permite que as suas forças se anulem entre si; por exemplo, quem está inseguro sobre a amizade de alguém, não deve procurar estar também inseguro sobre o prazer que lhe proporciona, mas deve estar inseguro sobre a qualidade da sua pele, pois, como se sabe, uma boa técnica de coçar é algo tremendamente irresistível. E não fosse eu já estar farto disto, haveriam de ver.

9. Franja que se preze é aquela que um dia abre os olhinhos à consciência e lhe diz: estás fodida comigo se deixas o gajo escrever mais de 3 linhas por junto. Parece que tem vaselina nas putas das falangetas.



(*) corrupção livre do título do livro (que nunca li) de Enrique Vila-matas, 'história abreviada da literatura portátil'

Chuva em Novembro

Quando os conterrâneos da Maité Proença traduziram por 'ordem implicada' a Implicate Order que o físico David Bohm trouxera para a praça pública no início dos anos 80, Deus nosso Senhor, levemente abespinhado, decidiu finalmente pôr o planeta sob escuta; mandou uma dupla de anjos montar um tenda na parte de trás do Hubble para ninguém topar e vai de instalar antenas multidireccionais viradas para todas as aulas de física do universo, churrascarias de carne incluídas. Quando Deus nosso Senhor decidiu que a suportar esta merda subatómica toda iria estar uma mistura de tudo e de nada nunca pensou nas traduções brasileiras, e isso estava agora a mostrar-se uma certa imprudência face à capacidade da língua portuguesa tropicalizada em libertar toda a teoria quântica e em transformar o vazio desconhecido numa espécie de cúmplice da grande barrela universal em expansão, descobrindo assim a careca conspirativa do Criador.

É hoje absolutamente certo que Deus não tinha especial pachorra para cálculos e mandou dois anjos que tinham ganho um concurso de ideias, e que possuíam experiência em roleta, desenvolverem uma espécie de gelatina transparente e pegajosa onde toda a energia iria desovar em forma de partículas que baloiçam qual pedacinhos de fruta cristalizada. Umas acabam por se chatear e vão passar umas temporadas no bolo rei, enquanto outras se afeiçoam ao mundo do vácuo gelatinoso e passam o tempo na palheta umas com as outras dizendo mal dos iogurtes com pedaços e fazendo olhinhos para formulas matemáticas com aspecto de bordado de lingerie.

A primeira grande dúvida que se colocou ao Altíssimo foi se haveria de compor uma banda sonora para acompanhar os saltos de vácuo gelatinoso, mas depois de ter antecipado o som dos discos dos animal colective decidiu que a música só deveria aparecer uns milénios mais tarde, quando o chimpanzé já tivesse resolvido os problemas relacionados com o polegar oponível. Assim, o realmente primeiro problema físico da criação foi efectivamente quando Deus teve de fazer com que um electrão aos saltos de trampolim pela angélica e invisível gelatina não produzisse o mais piqueno ruído, sabendo-se de antemão a dificuldade pois por detrás dum grande electrão está sempre uma grande protona; a zumbir-lhe.

Um mundo de fundo gelatinoso e silencioso a fazer de cama elástica a umas merdas cristalizadas aos pulos, e sem prestar contas se não a um casal de anjos mafiosos, foi então como isto se processou na sua base, e assim se manteve desconhecido até gajos como o Nils Bohr terem desencantado o bailado quântico à pala dumas lentes embaciadas num microscópio, e imbuídos duma poeira cósmica chamada curiosidade científica, uma espécie de sarna mas que faz menos comichão. Por causa das tosses, neste momento muitos deles amassam pão de centeio num purgatório gerido pelo pingo doce.

Quando Deus começou a topar que estava quase a ser descoberta a tramóia chamou os dois anjos, de seus nomes Soromenho e Polidoro, e disse-lhes: quero isto abafado. «Lancem a confusão, façam crer por uns tempos que eu não existo e que a gelatina é apenas uma espécie de fruta cristalizada mais líquida, e se for preciso tratem de ter uns jornalistas por conta, preciso de sossego para voltar a repensar esta coisa, vou voltar a estar atento àquela cegada da economia, julgo terem avançado mais nas teorias do caos do que propriamente os físicos».

Soromenho e Polidoro, os dois anjos responsáveis pela gelatina quântica, que viviam em união mística sem registo civil, e até tinham conseguido autorização de Deus para adoptar uma ninhada inteira do cometa Halley, arregaçaram as asas e puseram-se ao caminho, tendo-lhes sido especialmente recomendado para não se esquecerem que Deus para além de ser o electricista-chefe também é amor, a forma suprema de energia, já se sabe. Depois de recolhidas as escutas obtidas na ré do Hubble, Soro & Poli diagnosticaram que no planeta terra se vivia um caso típico de 'esclerose da causalidade', ou seja, obcecados com uma 'história repleta de pelourinhos e guilhotinas' (ouvi esta frase ontem na televisão e gostei tanto que não resisti), os homens escondem-se numa mistura pendular de indiferença e de escândalo. De irascibilidade e quessefodismo. Deus teria de agir rápido.

Encontraram Deus embrenhado em fórmulas de matemática duvidosa, mantinha-se a sua mania de tudo fazer para que d'alguma forma pudesse ser percebido, testado, gostava de milagres mas acabavam por lhe dar uma alguma azia - coisa que mesmo que quisesse explicar ninguém acreditava. Estava ligeiramente arrependido por não ter posto música no salto de trampolim dos electrões na gelatina invisível, pois a música tinha-se revelado um óptimo ambientador, e inclusive poderia ter tranquilizado as mentes mais desconfiadas ou espevitado os mais crédulos, mas fazê-lo agora daria um certo aspecto ilusionista à coisa e havia pergaminhos metafísicos a defender. Se bem que Deus, como o retiveram os grandes homens de Estado, nunca receara o ridículo.

Mostrar mais, tapar mais, mistério, revelação, era afinal esse o dilema que Soromenho & Polidoro tinham colocado em cima da mesa de Deus. Uma dúvida apenas para deuses ou coristas, registe-se.

Fora descoberta a possibilidade duma 'ordem implicada' na grande tramóia da Criação. Não era implícita era implicada. Uma gelatina cúmplice com o Criador, onde estava gravada a verdadeira atracção universal, por onde tinham de passar periodicamente os constituintes básicos do ser para ora se refrescarem, ora receberem indicações de viagem, ora se abastecerem de energia. Era uma estação de serviço com loja de conveniência. No núcleo do átomo vivia-se, pois, um mais que corriqueiro ambiente de amanuência sob o aspecto duma sofisticada réplica de cosmologia em formato liliputiano. Estava encontrada a chave: continuar alimentar a grande aventura da ciência com novas qualidades de gelatina quântica, novos sabores, novos aromas, novas texturas. Soromenho e Polidoro tinham uma nova missão depois da distracção evolucionista de que os biólogos progenetas se tinham tentado aproveitar para construir os seus planos de reforma.

O mundo emprenhado pela consciência e apalpado pela inconsciência sabia agora que a desconfiança não chegava para o conhecimento, que o conhecimento não chegava para o bem estar , que o bem estar não chegava para a felicidade e que a felicidade era afinal uma mera construção do excesso de confiança. A pegajosidade quântica da gelatina garantiria sempre a eficácia do eterno retorno. Soromenho e Polidoro desmontaram então o aparato da ilharga do Hubble e compraram acções da Prisa. Ao sétimo dia Deus em vez de ter descansado deveria ter acendido a televisão antes de tirar as suas conclusões mais definitivas.

Ficaram apenas por explicar os pormenores da escolha de Soromenho e Polidoro para toda esta dinâmica da criação do, soit disant, mundo físico. Deus vivia momentos de fastio, tinha havido a rebelião de Lucifer e assim, mas a coisa amainara. Lembrou-se então de lançar um concurso de ideias à sua corte de anjos para poder escolher o melhor substrato para a Criação. A ideia da base quântica de gelatina da dupla Soro & Poli sobressaiu sobre a de Gabriel (que ainda assim recebeu uma menção honrosa pela sua ideia da onda cósmica, e por isso foi premiado uns milénios depois com a Anunciação) e também sobre a do anjo Inácio que tinha sugerido uma complicada combinação de gases (mas que mesmo assim ainda teve o seu momento de glória no Big Bang, que acabou por ficar conhecido na gíria angélica como a cólica-do-inácio). Deus tinha ficado seduzido pela combinação entre movimento e invisibilidade que a solução de Soromenho e Polidoro consubstanciava e deu-lhes carta verde, tendo entrado pessoalmente no processo apenas quando os gases produzidos pela cólica-de-inácio já se mostrassem minimamente respiráveis. O Natal ficou então aprazado para Dezembro.

Vai ser bom nascer em Mortágua

Cortesia de mptv
(leia-se 'gamado de')

1. o estado deve interferir em quem as pessoas gostam?

não

2. o estado deve interferir em quem as pessoas beijam?

não


3. o estado deve interferir em com quem as pessoas se relacionam sexualmente?

não ( dentro dos limites das leis que regulamentam a integridade fisica e psicológica)


4. o estado deve interferir em como as pessoas se relacionam sexualmente?

não

5. estado deve interferir em como as pessoas se organizam socialmente?

sim

6. o estado deve dar indicações legais positivas sobre certas formas de associação e organização básica entre pessoas?

sim

7. o estado deve dar indicações legais positivas sobre formas de associação que privilegiem a autosustentação da espécie?

sim

8. o estado deve inibir alguma forma de associação?

não (excepto as criminosas)

9. o estado ao não estabelecer medidas de apoio expresso a algum tipo especifico de associação entre pessoas, pode considerar-se que esteja a criar uma inibição a esse tipo específico de associação?

não

10. o estado pode exercer a sua razão de existir sem ter subjacentes juízos de índole ética ou mesmo moral?

não

11. o estado ao estar a dar indicações positivas sobre alguma forma de associação está a ter subjacente algum juízo ético, ou mesmo moral ?

sim

12. o estado deve fazer prevalecer o principio da sustentação da espécie acima do princípio da igualdade de direitos de associação ?

sim

13. o estado ao estar a dar indicações positivas sobre uma forma de associação entre pessoas que tenha subjacente uma forte possibilidade de concurso para a sustentação da espécie está a prestar vassalagem a alguma corrente ideológica ou religiosa específica e limitada?

não

14. o estado ao estar a dar indicações positivas sobre uma forma de associação entre pessoas que concorra para a sustentação da espécie está a adquirir responsabilidades específicas na concretização desse desiderato?

não e sim


15. a responsabilidade de sustentação da espécie é apenas de índole individual?

não

16. a responsabilidade de sustentação da espécie é apenas de índole social?

não

17. a existência e funcionamento dum estado pressupõe a existência dum modelo de sociedade?

sim

18. a existência dum modelo de sociedade é compatível com a liberdade que a maioria dos seres humanos considera (mesmo que por razões diversas) fazer parte essencial da sua constituição ontológica de base?

sim

19. há risco de que a existência - mesmo que não explicita nem formal - de um 'modelo de sociedade' possa conduzir a politicas de cariz utopizante ( e/ou entupizante) de 'sociedade modelo'?

sim

20. o estado ao igualizar as indicações legais positivas para todas as formas de associação e organização social básica entre pessoas estará também a colocar-se ao serviço duma perversa utopia instrumental de 'sociedade modelo'?

sim


21. deve, então, o estado dar privilégio jurídico à associação básica entre pessoas de sexos diferentes apenas por esta conter, ainda que seja apenas de forma bio-vagamente implícita, a eventual possibilidade de ajudar a concorrer para a sustentação da espécie?

sim.

22. deve, então, o estado conceder o acesso ao 'casamento civil' a pessoas do mesmo sexo?

não.

página 282

«É uma coisa estranha, a escrita»

Tristes Trópicos

seria impossível não me envolver na temática que é realmente importante

Ontem vieram a lume as revelações semi-bombásticas (bombástico mesmo era se ele fosse viciado em earl grey) da autobiografia de André Agassi, (utilizando o famoso método Caim de promoção editorial) segundo a qual ele teria enfiado para o bucho umas quantas de metanfetaminas, supostamente para se alegrar; c'est toujours la joie de vivre. Na altura estava casado com Brook Shields e a coisa não andava bem na carreira, ou seja, os dois paus que tinha ao seu alcance não lhe estavam a garantir a felicidade que qualquer homem - com ou sem brinco - sente que tem direito. No entanto, eu não quero enveredar pela abordagem específica desta temática, antes sim, queria apenas que um tal de bettencourt, ó caralho, fosse rapidamente comprar daquelas merdas, de ligeirinho as arremessasse pela peidola acima daqueles cabrões que se designam por 'equipa técnica de alvalade', de seguida desfazia mais uns desses comprimidos e misturava nos voltarenes que tomam aqueles paneleiros que constituem um tal de 'grupo de trabalho de alvalade' quando têm inflamaçõezinhas nos músculos, - o que não prova que os tenham, atenção - e com o que sobrasse aproveitava o próprio bettencurte e tomava ele mesmo nem que fosse para o chazinho lhe saber a merda e ver se arrebita; no fundo até eu.

Modernidade Legislativa

Penso que muito mais importante e urgente do que legislar sobre o 'casamento entre pessoas do mesmo sexo' será garantir protecção jurídica e mesmo incentivar a legislação sobre o 'sexo entre pessoas do mesmo casamento'.
Como é sabido por todos, salvo vagas excepções apenas encontradas na literatura e nos folhetos de imobiliárias, o sexo entre pessoas do mesmo casamento é algo que tem vindo a perder prevalência - definhar seria demasiado ilustrativo - face a outros tipos de sexo que são muito mais acarinhados pela sociedade em geral e pelos motéis em particular. Ora o sexo entre pessoas do mesmo casamento é uma tradição praticamente com milénios, tem inclusivamente trazido ao mundo seres respeitadores da ordem pública e com princípios e custa ver assim dissipar-se por entre modas e questiúnculas várias o quão bonito que pode ser ver duas pessoas devida e cerimonialmente esposadas a rigorosa e estrictamente foderem. Ao ter passado a ser um comportamento em vias de se tornar uma curiosidade antropológica é urgente que o novo governo dê verdadeiras mostras de modernidade e avance com medidas legislativas claras e distintivas.

Assim, a nova e urgente legislação sobre o sexo entre pessoas do mesmo casamento deverá tomar em consideração o seguinte:

1) Marido e mulher devem poder escolher sem quaisquer limitações a utilização de locais como a cozinha, a sala, ou inclusivamente o corredor, no limite a mezzanine, e para isso deve o Estado garantir que os seus filhos tenham zonas protegidas onde se possam entreter no durante, e em perfeita segurança e acompanhamento especializado.

2) Por cada hora de preliminares que o homem tenha de suportar para entreter a mulher que está com a sensualidade em ponto morto certamente por ter servido de cobaia para os lucros do pingo doce, deve o Estado garantir downloads grátis de músicas que incentivem a própria e perspectivada cópula, ou, pelo menos, a necessária lubrificação das zonas em preparo e apreço.

3) Como é sabido, seja pela força aniquiladora do hábito ou por mero cansaço, a instituição do sexo entre pessoas do mesmo casamento tem tendência a ir perdendo incidência estatística e apela a medidas exógenas de encorajamento. A assimilação desta prática a outras de natureza mais estritamente higiénica como sejam a lavagem dos dentes ou o corte simétrico das unhas tem contribuído também para que se desvaneça o grande e decisivo contributo que foi dado pelo ideal romântico, e coloca-nos hoje perante um novo dilema da modernidade: deverá o tráfico sexual intra-matrimonial estar também sujeito às leis da concorrência? Ora sendo o sexo entre pessoas do mesmo casamento um típico caso de monopólio artificial, parece essencial a criação duma entidade reguladora que indique para cada caso o tipo de cópula e respectiva compensação, para além de ir aferindo a evolução do equilíbrio das forças e instintos em presença no mercado, perdão, casal.

4) Uma das questões essenciais a tomar logo em consideração na nova legislação sobre o sexo entre pessoas do mesmo casamento é que esta não deve produzir interferências nos direitos ao sexo entre pessoas de casamentos diferentes, nem mesmo ao sexo entre pessoas sem casamento nenhum, nem obviamente imiscuir-se nas opções assexuais entre pessoas de qualquer casamento, se bem que a assexualidade deverá ser sempre assumida como uma ineficiência em qualquer relação que envolva descendentes de adão, quer seja pela via abélica quer seja pela via caímica.

5) Tomando em consideração que, ao contrário do que toda a literatura recomenda, o sexo entre pessoas do mesmo casamento acaba por resultar apenas duma mera combinação de interesses básicos, que vão desde a 'preservação da espécie' até ao 'espero agora que o gajo não me chateie a mioleira nos próximos 15 dias', deve o Estado garantir que não aparecem interesses alheios ao sistema que o pervertam e criem ineficiências, designadamente a corrupção pela via dos adereços de moda, a chantagem pela via das prateleiras do frigorífico vazias, ou mesmo o clássico abuso de posição dominante, mesmo que, valha-nos isso, ainda sejam o que vai permitindo uma ou outra boa foda intra-matrimonial; há, no fundo, que deixar também a economia paralela funcionar.

6) Sem prejuízo da existência de quaisquer outras formas aristotélicas de satisfação de instintos de contornos carnais, o sexo entre pessoas do mesmo casamento deve ser a forma a privilegiar na conciliação de interesses potencialmente divergentes, e se no direito se tem tentado resolver algumas ineficiências com a denominada 'acção sumária', deverá ser instituída formalmente a figura fiscal das 'senhas-de-rapidinha-intra-matrimonial' como paradigma do comportamento preventivo de anti-risco, e uma forma de aliviar confrontações que muitas vezes acabam no banco dos hospitais ou no contencioso bancário sem se ter produzido qualquer derramamento glandular decente.

Livro do Zénesis

Constata-se exaustivamente que o grande prejudicado em todo este processo mal conduzido duma criação, agora sabe-se, feita às três pancadas (sete, para ser mais preciso) foram os descendentes de Abel. Este bimbo, depois de oferecer ao Criador o primeiro ensopado de borrego da história acabaria por entrar nela pela porta piquena, tendo permitido que o mau feitio do seu irmão mais velho - que apenas sabia fazer saladas como molho mediterrânico - vingasse, num apalpão civilizacional, pode dizer-se, sem precedentes.
Para castigo, ou mera consequência da precipitação gastronómica, deixou então toda uma genealogia de bons e jeitosos primatas hominídeos, a quem já não lhes bastando a cegada da maçã precipitadamente trincada, ficaram ainda reféns da perversa sedução do vegetarianismo, das virulências pandémicas e dos - esporádicos, vá lá - períodos de euforia dos lampiões.
Chegados a uma suposta fase de maturidade genética são ainda confrontados com a utilização do seu bem mais precioso, - tirando a ejaculação telecomandada - ou seja um tal de livre arbítrio, em escolhas absurdas como entre pandermixes versus tamiflus, gatos fedorentos domesticados em televisão versus feras escanzeladas domesticadas em circos, ou canavilhas versus desidérios, ou mesmo, num desafio indigno da estirpe de David, Jesus versus Jesualdo.
Ao invés, os descendentes desse rebento de soja de seu nome Caim, passeiam-se pelo planeta azul escrevendo livros, dando entrevistas, enrolando papiros com alongamentos do esfíncter, pintando aguarelas e abanando cordas de bandolim como se fossem pintelhos de sereia.
Tudo seria ainda assim sofrivelmente suportável não fora a crueldade do Criador se ter começado a manifestar de forma inapelável para com os seus filhos de alma alagartada (vénia ) , que assim sofrem ignomínias sem nome, quais incompreendidos, e mesmo estupefactos, Abeles.
Ora sendo Deus uma mera criação da sua - d'Ele - própria cabeça ( vénia) não se Lhe pode desculpar que deixe estes seus filhos lagartos desamparados, e entregues ao cajado dum sistema caímico que não lhes reconhece nem penalties, nem offsides, nem golos com o antebraço.
É pois com alguma indignação com este Deus que só pode ter ficado ligeiramente embuchado pelas insinuaçõezinhas indecorosas e dissimuladas daqueles pimentos morrones que habitam as grutas do lado sul da 2ª circular que eu aqui me apresento solicitando um respeitoso rewind ao Senhor do Tempo (vénia).
Os que se agarram à cauda genealógica da geração de Abel exigem uma reparação urgente da situação, sentem que foram vítimas de um combate de round único e pelo menos querem escolher um lugar com janela na arca de noé para serem os primeiros a ver a pombinha.

Las Civias [nota breve e final]

O mosteiro foi destruído no Verão de 2008 e não restam vestígios da sua passagem pela paisagem lunar da antiga zona mineira de Rio Tinto na Andaluzia.

Por curiosidade possuo um dos primeiros esquiços do projecto de arquitectura do edifício, um documento sem qualquer valor artístico ou técnico - tratava-se certamente dum mero e embrionário esboço impressionista, mas , isso sim, com vários detalhes de enigmático interesse.

O arquitecto era, foi, um Espanhol de origem basca, Jaime Olazabal, que se radicara em Portugal na zona de Azeitão nos anos 70 e que chegou a este projecto por ser primo dum dos alfaiates do bispo de Sevilha.

O desenho a que tive acesso - e não hesitei na sua aquisição - apresenta várias singularidades, para além da sua péssima reprodução aqui

A mais relevante deixarei para o fim, mas desde logo a par de algumas incongruências de perspectiva e mesmo de equilíbrio de planos, são evidentes: a ideia de duas plantas (?) separadas (P. A e P. B), desconheço se já resultado dalguma indicação dada pelo eclesiástico dono da obra, e sem forma de comunicação evidente (mas tal poderia dever-se ao facto de estarmos ainda na presença dum esboço rudimentar) , e a existência de vastas zonas envidraçadas , (assim entendo os sombreados) o que se por um lado revela uma certa simbologia de transparência ou abertura, não deixa de arrepiar pelo efeito de estufa a que imediatamente nos faz associar.

No entanto, é impossível não fazer também a associação ao que terá sido certamente a principal fonte de inspiração de Olazabal para o mosteiro de Las Cívias.

Trata-se dum quadro de Picasso do ano de 46, denominado 'Desnudo Echado sobre cama azul', uma obra que podemos encaixar facilmente num ambiente hedonista e de busca de alegria de viver, e com um pouco mais de dificuldade, mas não impossibilidade, num mosteiro. È evidente a ligação entre o projecto arquitectónico de Las Civias e este quadro de Picasso e não sei de todo a razão; nem sequer se essa ligação não esteve apenas na cabeça de Olazabal e agora na minha. Preserve-se a cabeça de VExas, claro.

Las Civias

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Las Civias era um mosteiro na zona de Sevilha que acolhia crentes dispostos a resolver a sua relação com o prazer. Sendo certo que os tradicionais sexo ou comida eram responsáveis pela maior fatia de penitentes, as perturbações de prazer ligadas às artes mostravam um dinamismo singular. Desregulamentos em torno da música folk ou da pintura figurativa eram frequentes, tendo até ficado conhecidos os sermões dum frade sueco sobre os efeitos perniciosos das costas de Ingres, ou os dum pároco de Vichy sobre as deambulações de hormonas ao som dos Fleet Foxes. Surtos relacionados com políticos em crises peri-masturbatórias à conta de reformas fiscais também ocorriam repetidamente. Las Civias era um caso de sucesso, onde o recolhimento e a oração forneciam ao espírito fontes e reservas tão alternativas como duradouras de equilíbrio, mas sempre fora dos malabarismos de índole estóica ou dos espiritualismos. Colocados a meio caminho entre um previsível Sto Agostinho e um arriscado Freud, sem esquecer Pascal, os frades responsáveis pelo mosteiro foram criando uma arte filigrânica de sublimação dos pequenos prazeres, confiando sempre nos valores da eternidade, da misericórdia e da elasticidade do coração humano.

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Em Las Civias não havia compromissos terapêuticos, não se organizavam saunas de almas, nem a purificação era uma sobremesa. Os monges sabiam que os pequenos prazeres deixavam marcas nas virtudes e que a fé se construía entre o enigma da parábola e a força do anúncio da bem-aventurança. As primeiras noções a assimilar eram as de que a verdade pode tornar irritantemente supérflua a aparência, mas a parte deve ser cautelosa na hora de camuflar o todo. A capciosa ideia de que tudo se pode reduzir a um refogado de simbologias seria fervida com a água do primeiro jejum. No mosteiro de Las Cívias percebia-se de imediato que não se podia rezar a um Deus apenas servido na bandeja do pensamento.
Os pequenos prazeres que entravam como grilhetas, fundir-se-iam, e passavam a servir como armaduras; cada um era responsável pelo seu molde no original mano-a-mano fornecido pelo cristianismo: a graça com a razão.
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Como seria fácil de prever os primeiros casos que se apresentaram em Las Cívias tinham a ver com um ‘difícil enquadramento dos prazeres carnais no seio duma consciência formada na espiritualidade da generosidade’ para utilizar a terminologia oficial dos documentos do mosteiro. Os monges não exigiam que se entendesse o alcance destas expressões mais canónicas, apenas perguntavam se os crentes estavam com disponibilidade para se colocarem nas mãos de Deus (outra das expressões utilizadas, mas que afinal apenas exigia um pouco mais de poética do que propriamente catequese para ser acolhida sem grandes reservas pelos novos e ainda um pouco ansiosos hóspedes). Uma nota interessante tem precisamente a ver com o nome que se lhes dava: nenhum. Ou seja, os monges faziam questão em não os catalogar de nenhuma forma, poderiam ser crentes, penitentes, hóspedes, residentes, pacientes, malucos, socialmente excluídos, socialmente demasiado incluídos, curiosos, ou simplesmente desesperados, o que cada um quisesse para si, cada alma é um caminho, para utilizar uma noção que parece tão bonita quanto incontroversa. Evitava-se apenas a todo o custo as patologias que apresentassem indícios de violência explícita, pois os monges tinham feito votos de paciência, e não viam com bons olhos ter de apaziguar alguma alma indo-lhe aos cornos. Aceitavam-se todo o tipo de preconceitos excepto contra a pintura abstracta (muito presente em todo o processo) e contra música dita electrónica (menos presente mas ainda assim relevante na reorientação dos prazeres em geral). Cada um mantinha a sua roupa, o seu desodorizante, a sua pasta dos dentes, e dizia-se até jocosamente, julgo que numa brincadeira apócrifa típica dos ambientes circunscritos: a cada bico o seu asseio. Não havia especiais restrições de linguagem e rapidamente todos encontravam os equilíbrios necessários entre a sobriedade e a sinceridade. Não se afirmava que o inconsciente é a fala, mas também não se entregava o recolhimento à artificialidade do silêncio. Até porque o silêncio pode ser um dos mais perversos, grosseiros e nefastos prazeres.
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O primeiro caso que tornou célebre Las Civias foi o de um polaco chamado Gaspar Kespersky. Apresentou-se no mosteiro no final dum verão dos anos 90 e disse que tinha prazer em contrariar, não era uma mera desconfiança patológica, nada disso, até confiava razoavelmente nas pessoas, mas era incapaz de concordar com elas, ou melhor, tinha a cupidez da contrariação, como ele lhe chamava, chegando a produzir-se um estranho e agradável formigueiro no corpo quando lhe surgia uma situação em que podia contrariar alguém, principalmente quando nenhuma circunstância o fizesse prever e muito menos aconselhar, numa espécie de vertigem-do-contrário. Depois de uma série inicial de casos ligados aos prazeres da carnália (como eram, talvez abusivamente, chamados os despropósitos sexuais) a situação de Gaspar foi acolhida com um misto de entusiasmo e responsabilidade. Tradicionalmente são identificadas duas correntes teóricas de abordagem para as disfunções morais do prazer; numa assume-se que o corte tem de ser radical, e que as energias outrora anexas ao vício se irão dissipando naturalmente pelos caminhos doravante traçados por uma consciência em regime de manutenção apertada; noutra, e aquela que o mosteiro privilegiava, aposta-se numa progressiva redução da intensidade, na desfocagem do objecto do prazer, no entrincheiramento no terreno do inimigo com saídas furtivas para o minar. Gaspar provou apetitosamente dessa estratégia e habituou-se a contrariar apenas as pessoas que exibissem apreço pelas músicas dos Mercury Rev e dos Lambshop. Em tudo o resto começou a cultivar um certo prazer pela condescendência, inclusive pelo funk e pelos livros duma tal de Agustina. Os monges, na altura, chamaram a este processo a ‘transferência luminosa do prazer’, tendo necessitado até duma autorização canónica especial dada a sua proximidade – pelo menos simbólica - ao freudiano 'amor de transferência'. Deus quando estende a mão não é para tirar mas sempre para dar, explicavam eles com garbo quando tornaram semi-público o sucesso do caso de Kespersky às autoridades eclesiásticas. Os mecanismos que regem o prazer são os mesmos que regem o luto, chegou então a afirmar frei Vargas, num opúsculo que ficou conhecido como ‘Dando vargas à imaginação’.
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Uma das grandes inovações de Las Civias encontrava-se na singular forma como distinguiam ‘vício’ de ‘perturbação do prazer’. Segundo a norma do Mosteiro, o prazer desgovernado não implicaria dependência, ou seja, há nele um maior convívio com os desígnios da vontade, há inclusive uma certa dose de consciência de debilidade da vontade. Na entrada do Mosteiro estava escrito: ‘Aqui reencontrareis as capacidades do querer’. Foi uma frase que empolgou Luís Rosales, um asturiano ainda na flor da idade que apresentava fortes sintomas dum desvio moral que ficou denominado como o ‘prazer-de-desistência’. Este mecanismo levava a que Luis procurasse, libidinosamente pode mesmo dizer-se, pessoas que lhe exigissem algo que ele sabia dificilmente poder corresponder. Ou seja, não se desencadeava um - mais tradicional - processo de ‘prazer-de-abandono’ (também conhecido como calimerismo), mas, outrossim, a sua alma começava a alimentar-se duma gostosa sensação de desistência, uma espécie mais elaborada do clássico ‘eu não sirvo para ti-vou-me embora’, mas com maior alavanca dramática. Foi precisamente frei Vargas que o recebeu, num dia chuvoso, o que era raro, e deu-se rapidamente conta daquilo que verdadeiramente caracterizava este caso especifico de desnorte do prazer: era o seu deleite em elucubrar sobre o complexo de culpa que poderia ter inculcado na outra pessoa, uma espécie de neurose do remorso alheio. Parecia algo demasiado elaborado e frei Vargas não conseguiu facilmente que o seu diagnóstico fosse aceite, de tal forma que Luis Rosales esteve muito próximo de ser despachado com um atestado de chaladice mórbida. No entanto, com a sua capacidade persuasiva, Frei Vargas conseguiu que Rosales ficasse num regime de jejum de açucares e audição de Magnetic Fields pelo menos durante uma semana à experiência. Estava certo. A falta de açucares combinada com a sanfona de Merritt desencadeou um movimento da libido de Rosales no sentido de umas trancinhas de folhado que costumava comer com uma antiga namorada numa pastelaria da Calle de las Sencillas Madres em Oviedo onde um cego hondurenho tocava bandolin a troco de moedas de 20 pesetas. Essa moça, de seu nome Sabrina e hoje casada com um médico oftalmologista de Gijon tinha sido desprezada por Rosales depois de este ter descoberto que ela tinha dois incisivos postiços. Frei Vargas sabia que o remorso era um mecanismo relativamente pouco canónico mas mostrava-se uma carta de bastante eficácia nos casinos da alma. O caso foi forçado a posterizar como 'o cego hondurenho' mas a hierarquia do convento nunca o assumiu como oficial, impedindo inclusive Vargas e Rosales de falarem sobre ele em público, nem mesmo por causa das trancinhas de folhado da Calle de las Sensillas Madres.
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Frei Vargas fez parte do lote inicial de monges que se instalaram no mosteiro andaluz. Tinha sido um singular noviço beneditino, aquilo a que se costuma chamar uma vocação tardia. Trabalhara até aos 25 anos num casino em Marbella e decidira mudar de vida depois de ver os destroços humanos provocados pelas dívidas do jogo. Todas as razões são boas para mudar de vida foi a primeira frase que ouviu do monge beneditino que o atendeu pela primeira vez. Vargas era visto como aquilo que se pode chamar um gajo meio chanfrado e não apresentava nenhum dos tiques de escrupulosismo tão típico das neófitos mais adultos. Mas tinha imensa paciência, o que o ajudava a compor com decência os arremessos mais vibrantes de heterodoxia. Foi-se-lhe revelando uma capacidade persuasiva fora do comum e não estranhou que depois de dois anos numa pastoral falhada em Las Palmas tivesse sido convidado para a fundação de Las Civias. O superior quando o convidou disse-lhe simplesmente: vai e não faças muita merda.
Mas não lhe disse para evitar pôr as mãos na dita e Vargas era um curioso pelas guerras intestinas da consciência. Estava na hora de voltar outra vez à roleta; da vontade. Como já se percebeu não era uma pessoa impetuosa, mas revelava-se um verdadeiro furão atrás da reconstrução da felicidade dos 'seus descompensados'. Corria imensos riscos, driblava anos e anos de espiritualidade conservadora, fazia de cada caso uma mistura de cruzada e de crochet. Adorava reincidentes. É sua a famosa frase: quem não repete a queda não merece levantar-se. Apesar de Las Civias não adoptar estritamente a regra beneditina, a dupla oração e trabalho fazia parte do ácido ribonucleico do mosteiro. Vargas vinha de uma família de preguiçosos compulsivos e só à custa de muita marretada percebeu o valor dessa combinação, mas ali em pleno coração andaluz sentia todas as nervuras dum trabalho, e apesar de ser um dotado para a percepção e persuasão cada caso saia-lhe do corpo. Sabia que era tudo um trabalho-de-penitência-e-graça. Uma coisa deste mundo e do outro. Mas que o levava a mais de uma média de vinte foda-ses por dia. Entendia o trabalho do mosteiro como uma espécie de reciclagem dos mecanismos do prazer, uma ecologia-do-gozo. Quando um dia se escrever a história da alma humana Frei Vargas merecerá um capítulo só para ele.
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Outro dos casos mais famosos de Las Civias foi o de Peter Kavanah, um industrial de Dublin que apresentava um curioso transtorno-de-deleite: fantasiava com apresentadoras de reality shows fazendo-lhe entrevistas sobre a sua suposta fama de conquistador erótico de estrelas da pop. Tal devaneio levava-o descuidar os seus deveres familiares mais simples, atentar contra a biologia ao exercer a ruminação com o aparelho neurológico, e tratar as outras mulheres com uma indiferença grosseira e absurda. Não era um caso mitigado de duplicação de personalidade, pois Kavanah tinha a perfeita noção do artificialismo do seu desvio-de-prazer, nem sequer uma qualquer compensação de insucessos d'engate pois tinha uma história de sedução discreta mas sem grandes máculas. Frei Vargas andava demasiado ocupado com um caso de mentira compulsiva e não se pode ocupar de Peter. Aliás Vargas não gostava de casos com fractura de hormona exposta, e por isso até agradeceu a coincidência. Peter tinha sido enviado para Las Civias por indicação da sua irmã, carmelita em Salamanca, e até chegara lá um pouco a contragosto, mas a conversa inicial foi-lhe completamente esclarecedora:' irás escarnecer do teu prazer'. Apesar da ligeira sensação de ameaça de lavagem ao cérebro, Kavanah avançou levado ao colo pela curiosidade, até porque escarnecer lhe aparecia uma fusão estranha entre a carne e o enternecer. Inesperadamente deu de caras com um 'tratamento' à base de paninhos quentes, leituras do Cântico dos cânticos e muitas rodelas de abacaxi ao som de Mark Eitzel, o suficiente para deixar qualquer irlandês à beira duma ataque de cranberies. Mas o que foi um facto é que duas semanas e 50 terços depois, ele mostrava-se absolutamente incapaz de olhar para uma estrela televisiva sem lhe ver logo dois belos ananazes a envolver todo o seu sistema glandular mamário, algo que o fazia corar praticamente em segundos. A noção de vergonha está para a recuperação da alma sadia como o escape roto estão para o automobilismo: leva sempre a tomar medidas. Estávamos perante a consumação de uma tese que ficou famosa em Las Cívias como 'a glândula da vergonha'. Las Civias tinha descoberto que certos estados de espírito ambíguos como a vergonha eram caminhos de rejuvenescimento interior e digamos até dalguma vitória da odisseia da razão sobre as pobres epopeias dos sentidos.
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Em Las Civias não havia preconceitos contra a imaginação. Quando eram confrontados com o cânone da perversidade da mente os monges diziam na brincadeira que lhes fora confiado o graal da mente. 'Temos de pôr essa poderosa máquina do desejo ao serviço das parábolas do reino' dizia Vargas a Jean Claude Michelet, um belga absolutamente perdido-de-prazeres por despir mulheres-polícia com o olhar. Qualquer tomografia comparada com a sua imaginação parecia uma máquina de ecografias desfocada. As conversas com Michelet eram antecâmaras do inferno pois ele possuía uma capacidade única de descaramento e punha os pormenores ao serviço do todo com a distinção dum autêntico joalheiro de vulvas. Estes tipo de desgovernos geralmente eram conduzidos em Las Civias com o recurso a baterias de dispersão-de-atenção. Nem toda a luxúria de sensualidade tem origens na debilidade da vontade, era também esta a concepção no mosteiro, e por isso tinha sempre de ser testada a sua força. Michelet vivera muitos anos perto dum cruzamento sem semáforos onde uma policia sinaleira de seu nome Anettte Soulanges exibia um cardápio de movimentos, aqui pode dizer-se: capaz de parar o trânsito. Jean Claude tomou aí balanço para uma carreira de despidor de gendarmas que se iria revelar destruidora da sua personalidade. Era um caso em que o comportamento obsessivo também entrava na equação assumindo quase que o perfil dum excesso-de-vontade, como uma queda de água se pode considerar um excesso de rio para uma certa falta de leito. Jean Claude Michelet começou por ser testado a despir copas de árvores. Vargas disse-lhe: dou-te dez minutos para me contares quantas ameixas estão escondidas naquela copa. Acabava de inventar uma técnica que se tornaria clássica: o desafio do absurdo. Las Cívias tinha essa fantástica característica: fazia as nuvens serem pisadas como se fossem terra firme. E era algo que ficava para sempre; principalmente durante as trovoadas.
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Las Cívias fechou as portas no dia de todos dos santos do ano de 2007. Um ataque de curculionoideas desfez irremediavelmente todas as peças de madeira do mobiliário e isso foi sentido por todos como um sinal de mudança. Aquando da fundação do mosteiro em 1992 tinham inscrito uma placa aproveitando uma ideia do livro do improvável Javier Marias que saíra nesse ano: 'O nosso maior prazer é pensar no futuro, essa será a nossa salvação diária'. Mas em Las Civias, onde sempre se tinha bebido do busca e alcançarás mistelizado com o sonha e ficarás aquém, e se sabia por Pascal que toda a moral consistia em concupiscência e graça, não era possível manter mais a situação. Uma nuvem de resignação abafava agora tudo e todos. A verdade manifesta-se mesmo quando nos ilude, - quase como Freud dissera no seu 'elas dizem a verdade mesmo quando mentem' dando estatuto e património às histéricas - era uma convicção de Vargas, um dos primeiros a querer fechar a loja. Mas um dos últimos a sair. O último peregrino de Las Civias tinha sido um militar grego que tinha prazer em desenhar mulheres nuas com pernas tornadas e depois sombreá-las com um azul que só aparecia no mar no entardecer depois das marés vivas. Parecia algo de inócuo, mas Vargas tinha descoberto uma irascibilidade escondida nesse prazer. O problema do prazer desgovernado é sempre a falta de capacidade para amar que ele esconde. Konstantino saiu de Las Cívias a desenhar Santo António's com um violão a tocar Baden Powell inundando o papel de várias tonalidades de ocres. Tudo parecia mais absurdo na hora da partida. A tal espuma, mas agora sem dias. 'Quando se está a chegar às respostas Deus muda as perguntas'.