A República da Expressão

Depois de devidamente sedimentada a gloriosa liberdade de expressão, o Senado dos Teóricos decidiu que tinha chegado o momento de passar à fase seguinte da grande caminhada do progresso: a 'ditadura da expressão'.

Mandou assim reunir o Comité das Boas Práticas e pediu-lhe para definir as linhas bases da nova organização da sociedade. Libertada do obscurantismo da verdade, libertada da iniquidade errática dos factos, importava libertar agora a sociedade da monotonia da notícia e impor engalanadamente o império dos escândalos e da opinião.

Nesta fase mais avançada onde nos conduzira o período intermédio da liberdade de expressão iria então inaugurar-se uma nova república de jornaleiros e opinalistas, e seria finalmente recuperado com pompa o nosso estado natural: todos nascemos públicos. O valor mais importante da nova sociedade estabilizara no triângulo mágico: 'dever de todos se exprimirem', 'dever de todos se escandalizarem', 'dever de todos esquadrinharem'.

O Comité das Boas Práticas definiu que doravante todos veriam substituídos os seus cartões de cidadão por um novo 'cartão de conspiração', onde ficava expresso e definido qual o escândalo oficial a que cada cidadão ficava afecto e qual a posição que nele assumiria; reconheciam-se 5 tipos de cidadão: o bufo, o conspirador, o comentador, o apaziguador e o especialista. Qualquer pessoa que se quisesse eximir a uma destas estirpes de cidadania ficaria obrigado a depositar todos os meses uma colecta mínima designada como 'taxa de ermita'. De cinco em cinco anos dar-se-ia a rotação entre tipos para não permitir vícios e garantir alguma especialização.

Todos os cidadãos teriam uma obrigação que era transversal à gama: durante um mês específico ( podiam escolher o do nascimento ou o do registo da viatura) estavam obrigados a inventar um boato novo por dia e a viver em regime de livre ampliação relativamente a um qualquer dos escândalos oficiais, devidamente escolhidos e distribuidos pela junta de freguesia. Quem não cumprisse estes mínimos veria um abaixamento na categoria de escândalo a que estava afecto. Estaria fortemente punido o tráfico de escândalos entre pessoas, se bem que certos tipos de escândalos eram, oficiosamente, incentivados. A título de simples exemplo, a descoberta dum filho ilegítimo levaria a colecta de irs reduzir-se em 20%, e o assédio de uma catequista a um mancebo garantia isenção total de iva durante um ano.

Não se pense no entanto que tudo serviria para escândalo; nem tudo poderia ser considerado opinião, e muito menos comentário. A Alta Autoridade para o Escândalo faria toda a classificação e correspondente reencaminhamento da mais pequena insinuação ou opinião. Um dos indicadores principais da República era a 'taxa interna de escândalo' que media o nível de expressão dos cidadãos; apenas eram aceitáveis níveis mínimos de 2 escândalos nacionais por cada 1000 pessoas e 12 escândalos regionais por cada mil munícipes. Sempre que esses níveis de expressão eram perigosamente diminuídos, a Alta Autoridade para o Escândalo emitia uma instrução para o investimento público em escândalos, passando o próprio Estado a ter de abastecer os media de escândalos enquanto a iniciativa privada não sentisse um ambiente propício para escandalizar; uma espécie de keynescandalismo.

A globalização e a livre circulação de escândalos e opiniões seriam vistas com outro peso e medida, com outra precaução, e voltar-se-ia a um ambiente mais proteccionista: os escândalos internos beneficiaram de apoios vários, e a importação de escândalos do exterior teria de ser analisada criteriosamente pela Alta Autoridade, não fora as mamas duma baronesa prussiana retirar protagonismo à queca dum estivador no terminal de contentores .

O Senado dos Teóricos aceitou com agrado o modelo proposto e foi instaurada oficialmente a Ditadura da Expressão, com editorais simultâneos em todos os jornais diários celebrando um novo escândalo com uma lipoaspiração no deficit publico, devidamente comentada pelo cabaz oficial de cronistas, e com participações especiais de vários cidadãos-bufos que tinham contribuído com insinuações válidas. A liberdade de expressão fora devidamente revista, sublimada, e o novo regime colocá-la-ia agora no altar que lhe estava destinado: a Padroeira da Escandaleira.

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