História Abreviada da Psicologia Portátil (*)

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[1] Com o estatuto da consciência e do inconsciente já devidamente consolidados no campeonato da explicação da mente, importa sacar um terceiro parceiro para a guerrilha; chamar-lhe-ei : a 'franja'.

[2] Todos conseguimos perfeitamente identificar acções, pensamentos e até sentimentos que são rotuladamente da responsabilidade do que chamamos simplificadamente 'consciência'. Todos também conseguimos isolar uma ou outra acção, pensamento ou sentimento aos quais acometemos a responsabilidade a algo que está numa zona que chamamos, desde freud, de inconsciente, mesmo que não tenhamos uma ideia muita precisa de como e quando lá foi parar essa incumbência, ('recalcamento' costuma ser uma boa opção de catálogo) nem do que lhe garante comida e roupa lavada . Ora não haverá nenhum descendente de adão que, depois de superados os problemas básicos de sobrevivência e sem dores nas cruzes, não se ponha a pensar na razão de determinada atitude, ou de determinada coisa-que-lhe-passou-pela-cabeça e não desabafe mais ou menos explicitamente: mas donde é que me veio esta merda. Ou seja, não lhe reconhece a origem nem no seu amado, querido e imaculado 'eu-consciente', nem sequer no seu absolutamente misterioso e singular 'eu-inconsciente'; (ao contrário do que desejam os psicanalistas, qualquer gajo com um ou outro amigo minimamente decente e disponível acabará por conseguir conhecer praticamente todos os cantos desta sua zona afamadamente obscura).

[3] Chegou então a hora da 'franja'. Em primeiro lugar não é uma zona especialmente esquisita, nem sequer demasiado ciosa do seu papel, tem um compromisso funcionário com o universo-do-eu, poderá dizer-se que é uma espécie de carlos carvalhal da psique humana, uma zona que está disposta a tudo, inclusive a ficar com algo que as outras zonas de mais pergaminhos enjeitaram, seja por falta de espaço seja mesmo por objectivo desinteresse. No entanto, pode dizer-se que a 'franja' está particularmente habilitada a dar guarida a alguns mecanismos mentais peculiares, como sejam: conflitos morais, remorsos, ciúmes, invejas, vergonhas, inseguranças, e até eu's-projectados & afins; pode dizer-se que é uma especialista do homem-micro-social, daquilo que determina as nossas reacções nos momentos limites da relação humana bi-direccional sob tensão intermitente - nem o mário crespo se lembrava disto. Como podemos antever é uma zona muito permeável ao mood social, à formação religiosa, às cicatrizes das primeiras experiencias pós adolescência, aos sobressaltos na formação da auto-imagem, and so on, enfim àquilo que a vida tem de mais tangível para a psique e que não é nem imediatamente exigido ao balcão da consciência, nem imediatamente coberto e resgatado para ser apresentado à noitinha na gruta do inconsciente. É, sem dúvida, um reino psicológico onde a ambiguidade negoceia permanentemente com a razoabilidade. Onde a consciência não entra por medo e o inconsciente evita por táctica.

4. Vemos assim que a 'franja' é um albergue da psique que está eminentemente presente na nossa luta diária para conseguir gostar decentemente de alguém, e para conseguir que alguém goste decentemente de nós, para conseguir que a necessidade coincida o mais possível com a probabilidade. Todos os sentimentos-de-relação reclamam adereços que têm constantemente de ser aqui descobertos, combinados, costurados e embalados. O ser meramente consciente é incapaz de gostar de alguém, pois gostar exige um tempero de muita coisa que já teve forçosamente de marinar na 'franja'; ou chafurdar; no limite, afinal, a consciência é apenas uma mecânica mais ou menos sofisticada, uma contabilidade de curto prazo. Apenas a passagem pela 'franja' garante o acesso de qualquer sentimento (leia-se: forma mais elaborada de emoção) ao mundo da intangibilidade e, podemos mesmo afirmar, da glória.

5. Como cuidar então da 'franja', devemos mesmo perguntar-nos. Como saber se 'algo' está lá bem, ou se tem de passar uma temporada de limpeza no inconsciente, ou passar uma prova de fogo no jogo da consciência, ali ao frio e ao vento? Como avaliar o estado de maturidade dum ciúme, por exemplo? Estará no momento de confrontá-lo, ou será melhor abafá-lo. A 'franja' fornece-nos a verdadeira terceira via da psique: é o local onde - por exemplo - o ciúme pode ir vendo o que se passa lá fora, mas sem se comprometer, sem dar mau aspecto, e o 'eu-consciente', se precisar de contactá-lo, não precisará de fazer nenhum malabarismo, não dará o flanco . Na história da mente humana a 'franja' apareceu precisamente naquele dia em que a consciência precisou de se defender sem se esconder. É uma trincheira para sentimentos com sala-de-estar e kitchenete, mas também com abertura para artilharia fina. E decorada sempre à vontade da freguês, algo que nenhum dos outros apartamentos da psique se podem gabar.

6. A 'franja' anda sempre connosco de forma cúmplice. Enquanto isso, e ao invés, a consciência é, normalmente, obrigada a isso, e ao inconsciente arrastamo-lo porque temos medo de ficar sem passado, medo de ficar sem medos. Mas 'a franja' não nos acompanha como uma sombra (nem sequer como no modelo Junguiano), não é uma almofada de compensações, nem sequer é um - muito na moda - elemento integrador do 'si-mesmo'. A 'franja' é uma máquina de revelação. Um confessionário de poche.

7. O processo psíquico de intervenção da 'franja' desenvolve-se desta forma: pega num complexo já conhecido (não trabalha com material em bruto), de seguida dá-lhe, de início, umas palmadinhas nas costas, para logo depois lhe prestar uma pitada de susto (espécie de amassamento, absolutamente essencial), e de seguida colocá-lo entre a parede do ridículo e a espada do desconforto (nenhum sentimento se deve sentir folgado), finalmente propõe-lhe um desafio chantageante (a psique é um terreno lavrado pela chantagem) : ou vais à luta, ou vais para a solitária. É nessa fase que a consciência interfere tentando dar um ar da sua graça, é dela sempre a última palavra para dar brilho ao inquilino da 'franja': fornece-lhe o drama. O drama está para o conteúdo da 'franja' como a fala está para o conteúdo do inconsciente. Este, o inconsciente, bastas vezes nem sequer é convidado para a dança. Quem puxa então os cordelinhos de toda esta articulação? Confesso, não se sabe. Como podemos descortinar se estamos a perder o controlo à situação? Um método muito simples: nunca chegar ao ponto em que a consciência se canse em demasia e descarregue todo o material psíquico para cima da 'franja'. Por analogia diríamos, sem colcha não pode haver franja.

8. O principal conteúdo da 'franja' são as várias formas de seguranças e inseguranças. Venham elas do condicionamento social, ou do condicionamento moral, ou do condicionamento cultural, ou do condicionamento genético, ou venham elas mesmo do condicionamento astrológico. Por isso pode dizer-se que a 'franja' é uma recondicionadora, um patamar com espelho e biombo, adaptado tanto a uma consciência que frequentemente se cansa de ser consciência, como a um inconsciente que nunca sabe se está bem aperaltado para sair. Outra das funções mais importantes da 'franja' é permitir que a psique se apetreche deste conhecimento revolucionário: a segurança é composta por um puzzle pequenas inseguranças. Apesar de parecer um enunciado quase a meio caminho entre o prosaico e o gosto duvidoso, é determinante para entender a correlação vectorial que conduz aos mecanismos da segurança: um bom sistema de inseguranças é aquele que permite que as suas forças se anulem entre si; por exemplo, quem está inseguro sobre a amizade de alguém, não deve procurar estar também inseguro sobre o prazer que lhe proporciona, mas deve estar inseguro sobre a qualidade da sua pele, pois, como se sabe, uma boa técnica de coçar é algo tremendamente irresistível. E não fosse eu já estar farto disto, haveriam de ver.

9. Franja que se preze é aquela que um dia abre os olhinhos à consciência e lhe diz: estás fodida comigo se deixas o gajo escrever mais de 3 linhas por junto. Parece que tem vaselina nas putas das falangetas.



(*) corrupção livre do título do livro (que nunca li) de Enrique Vila-matas, 'história abreviada da literatura portátil'

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