Luna Park
Os homens não são todos iguais.
Desmaker memória
Eu acho que este dois gajos também deviam ir a votos
«(...) Acontece que os juízos do Vasco revelam em muitos aspectos uma ignorância quase enciclopédica assim como uma modesta vivência da arte que oscila entre o sociológico e o documental ( com alguma atracção pelo piadético). Porque o universo do Vasco é exíguo; É mesmo um daqueles casos exemplares em que à extrema vivacidade de espírito não corresponde nenhuma inteligência profunda das coisas. Como a isto se junta uma total incapacidade de definir e conceptualizar ( o que, no fundo, o impede de ser um verdadeiro historiador, entregando-o aos prazeres mais fáceis da biografia ensaística ou da reportagem historicizante), fica-se por uma espécie de empirismo buliçoso, acéfalo e assíduo da fisga. (...) Creio que no Vasco existe, num plano afectivo, o pressentimento daquilo que lhe escapa, embora ao nível intelectual a visibilidade disso lhe seja inacessível.»
do tal, agora afoitamente açoitado, Eduardo Prado Coelho, falando de Vasco Pulido Valente, nos diários II - ‘Tudo o que não escrevi’ , em 25.4.92 (ed ASA, pg 163)
Eu acho que este dois gajos também deviam ir a votos
«(...) Acontece que os juízos do Vasco revelam em muitos aspectos uma ignorância quase enciclopédica assim como uma modesta vivência da arte que oscila entre o sociológico e o documental ( com alguma atracção pelo piadético). Porque o universo do Vasco é exíguo; É mesmo um daqueles casos exemplares em que à extrema vivacidade de espírito não corresponde nenhuma inteligência profunda das coisas. Como a isto se junta uma total incapacidade de definir e conceptualizar ( o que, no fundo, o impede de ser um verdadeiro historiador, entregando-o aos prazeres mais fáceis da biografia ensaística ou da reportagem historicizante), fica-se por uma espécie de empirismo buliçoso, acéfalo e assíduo da fisga. (...) Creio que no Vasco existe, num plano afectivo, o pressentimento daquilo que lhe escapa, embora ao nível intelectual a visibilidade disso lhe seja inacessível.»
do tal, agora afoitamente açoitado, Eduardo Prado Coelho, falando de Vasco Pulido Valente, nos diários II - ‘Tudo o que não escrevi’ , em 25.4.92 (ed ASA, pg 163)
O dicionário não ilustrado, para matar saudades e deserotizar um pouco o ambiente vai tratar ‘do voto’. (apesar de já não ser um tema virgem no dicionário, mudo o ângulo de abordagem – isto agora está a soar-me mal…). E faço assim simultaneamente a minha homenagem aos esforçados apologistas de todas as candidaturas, principalmente aqueles que o conseguem fazer sem soltar um mínimo ‘foda-se’ que seja. Entradas 1150 a 1161
Utilidade do voto – Característica que está para o poder democrático como o digestivo no contexto duma refeição lenta e pesada.
Legitimidade do voto – É uma combinação da correspondente ao proxeneta com a correspondente ao cliente
Manipulação do voto - Como não dá para pegar com pinças porque não dá jeito para dobrar e enfiar na urna, acabamos muitas vezes por queimar as mãos
Dispersão do voto – Forma de aproveitar melhor a peneira com que se tapa o sol.
Concentração do voto – Mecanismo que se desencadeia quando se revela a sua faceta feminina. Uma maioria é sempre uma sofisticada sublimação dum W.C.
Oscilação de voto – Tendência mamo-antropomórfica do voto que se atenua com o soutien classicamente bipolarizado.
Orientação de voto – Nostalgia sufrágica do polícia sinaleiro.
Fixação de voto – Efeito laca aplicado ao neurónio, combinado com efeito gel aplicado à paciência. Tudo penteado com o efeito ‘que se lixe’.
Arma do povo – Pensada para poder ser automática mas acabamos por estar sempre a ter de recarregá-la.
Liberdade de voto – Por muito que nos custe é uma prorrogativa exclusiva da esferográfica.
Intenções de voto – Das boas está o abstencionismo cheio
Utilidade do voto – Característica que está para o poder democrático como o digestivo no contexto duma refeição lenta e pesada.
Legitimidade do voto – É uma combinação da correspondente ao proxeneta com a correspondente ao cliente
Manipulação do voto - Como não dá para pegar com pinças porque não dá jeito para dobrar e enfiar na urna, acabamos muitas vezes por queimar as mãos
Dispersão do voto – Forma de aproveitar melhor a peneira com que se tapa o sol.
Concentração do voto – Mecanismo que se desencadeia quando se revela a sua faceta feminina. Uma maioria é sempre uma sofisticada sublimação dum W.C.
Oscilação de voto – Tendência mamo-antropomórfica do voto que se atenua com o soutien classicamente bipolarizado.
Orientação de voto – Nostalgia sufrágica do polícia sinaleiro.
Fixação de voto – Efeito laca aplicado ao neurónio, combinado com efeito gel aplicado à paciência. Tudo penteado com o efeito ‘que se lixe’.
Arma do povo – Pensada para poder ser automática mas acabamos por estar sempre a ter de recarregá-la.
Liberdade de voto – Por muito que nos custe é uma prorrogativa exclusiva da esferográfica.
Intenções de voto – Das boas está o abstencionismo cheio
Declaração de voto – Prémio de consolação para quem mesmo com tripla falha uma declaração de amor
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Successfolie
Eu acho que quem já foi encornado, já comeu lagosta estragada, já andou de metro, não adormeça no cinema, já viu e tocou num órgão sexual alheio ao vivo e a cores, é bom em sinónimos, misturasse bem tempos verbais, tenha um pequenino complexo físico, tome diuréticos, leia gajos apaneleirados, e consiga melancolizar entre duas sandes mistas tem mais hipóteses nesta coisa dos blogues. No caso da política basta ser bom em sinónimos.
Eu acho que quem já foi encornado, já comeu lagosta estragada, já andou de metro, não adormeça no cinema, já viu e tocou num órgão sexual alheio ao vivo e a cores, é bom em sinónimos, misturasse bem tempos verbais, tenha um pequenino complexo físico, tome diuréticos, leia gajos apaneleirados, e consiga melancolizar entre duas sandes mistas tem mais hipóteses nesta coisa dos blogues. No caso da política basta ser bom em sinónimos.
Sofa-for-Food
No entanto, se me tivesse dado para uns versinhos do oscar wilde em cima dum arco-íris teria sido bem pior.
E os tempos nem seriam para menos. A evolução do país nos últimos anos é muito fácil de sintetizar: no início dos anos 90 a excitação oficial era em torno duma nova fábrica de automóveis, numa combinação mirífica de ‘incorporação nacional’ clusterizada, hoje é por causa duma fábrica de sofás. Seremos salvos pelo ikealismo adamsmithizado.
No entanto, se me tivesse dado para uns versinhos do oscar wilde em cima dum arco-íris teria sido bem pior.
E os tempos nem seriam para menos. A evolução do país nos últimos anos é muito fácil de sintetizar: no início dos anos 90 a excitação oficial era em torno duma nova fábrica de automóveis, numa combinação mirífica de ‘incorporação nacional’ clusterizada, hoje é por causa duma fábrica de sofás. Seremos salvos pelo ikealismo adamsmithizado.
Apenas para ir mantendo isto ao nível da crosta terrestre sem matar muito a cabeça
Depois da bola, da ejaculação precoce e da poesia automática, um desporto nacional que tem angariado bastantes adeptos é gozar com o E. Prado Coelho. Pois eu admiro visceralmente o tipo. Consegue aquele pleno existencial composto por não precisar de saber fazer rigorosamente nada, nem de ter planta de apresentação nenhuma, nem necessitar de demonstrar, comprovar, vender, comissionar, leiloar, ratear, geometrizar, concessionar, calcular, parametrizar nada daquilo que escreve para se desenrascar à grande e à francesa. No fundo eu também não sei fazer nada de nada, mas acabo por ter que fazer qualquer coisa para conseguir dar uma imagem minimamente aceitável de mim próprio. O gajo não; o gajo está-se a borrifar. Escreve sobre o que lhe apetece, como lhe apetece, quanto menos interessar o tema, melhor, e vive alegre e descaradamente disso. Ser apenas diletante comparado com o EPC é como ser torneiro mecânico. EPC precisa apenas de olhar para o vazio e ir dando risinhos melancólicos. Abençoado. Se fosse hoje, o Sermão da montanha incluiria o tipo, não tenho a menor dúvida, e ainda oferecia uma parábola de brinde. E isto é de palavra de honra.
Depois da bola, da ejaculação precoce e da poesia automática, um desporto nacional que tem angariado bastantes adeptos é gozar com o E. Prado Coelho. Pois eu admiro visceralmente o tipo. Consegue aquele pleno existencial composto por não precisar de saber fazer rigorosamente nada, nem de ter planta de apresentação nenhuma, nem necessitar de demonstrar, comprovar, vender, comissionar, leiloar, ratear, geometrizar, concessionar, calcular, parametrizar nada daquilo que escreve para se desenrascar à grande e à francesa. No fundo eu também não sei fazer nada de nada, mas acabo por ter que fazer qualquer coisa para conseguir dar uma imagem minimamente aceitável de mim próprio. O gajo não; o gajo está-se a borrifar. Escreve sobre o que lhe apetece, como lhe apetece, quanto menos interessar o tema, melhor, e vive alegre e descaradamente disso. Ser apenas diletante comparado com o EPC é como ser torneiro mecânico. EPC precisa apenas de olhar para o vazio e ir dando risinhos melancólicos. Abençoado. Se fosse hoje, o Sermão da montanha incluiria o tipo, não tenho a menor dúvida, e ainda oferecia uma parábola de brinde. E isto é de palavra de honra.
Acreditares em roda livre (IV)
Ela tinha grande relutância em acreditar num Deus de cartilha. Seria talvez medo de perder graus de liberdade, seria medo de ter de conviver com coisas que não percebia, seria apenas falta de pachorra. Enfim, ia-se sublimando em virtudes humanas, em éticas de atestado, num suspiro de racionalismo filigranado com técnicas de sobrevivência desenvolvidas para savanas áridas e desertas. É de facto preciso ter alguma paciência para se ser crente e é preciso ter uma alma com aptidão para se aparvalhar e ao mesmo tempo para se concentrar nem que seja em serviços mínimos. Num belo dia de crepuscular encomendado numa casa de postais ilustrados, a brisa do rio poderia ter-lhe dado inspiração para raciocinar assim: ora se para levarmos uma vida cosmologicamente sadia nos basta pensar que provavelmente aquela merda da lei da gravidade e da atracção dos corpos está certa e a porra da lua não nos vai cair em cima dos cornos um dia destes, então porque é que não poderia ser suficiente pensar que provavelmente existe um Deus misericordioso e omnipotente que nos acompanha duma forma íntima ainda que dissimulada para se ir estabelecendo um princípio de conversa para uma vida religiosamente também sadia. Todos temos uma vida religiosa – o ateísmo só existe conceptualmente, é mais ou menos como a electricidade, é algo que não existe e que apenas se convencionou chamar àquela trampa que faz andar os carrinhos de choque – todos temos uma ligação por mais ténue que seja com algo que nos transcende ontologicamente, e ninguém com as micoses controladas acredita naquela porra do ciclo da mãe natureza, género sermos o cruzamento genético dum aterro sanitário com uma estação de tratamento de águas, em co-incineração apocalíptico-escatológica ao som dos Verve e aliviados com a aromoterapia do ‘deixa andar’. Eu sei que não fica assim muito jeitoso dizer-se mas Deus parece-me em primeiro lugar, mesmo, um ser bem plausível.
Comecei com ela mas fui-me desviando - A fé também alimenta tiques ensimesmantes. Ela não era pessoa de se manter sempre no mesmo patamar, exigia que a acompanhassem aos saltos, punha-nos à prova, não abusando dos historicismos nem dos canonicismos, honra seja feita, mas tratando dos nossos pensamentos como uma gourmet exigente e experimentada; só que os mecanismos da fé assemelham-se mais a uns revueltos extremeños do que a pratos de nouvelle cuisine, e um Deus que nos exigisse sem dar muitas justificações e que depois nos justificasse sem exigir nada, continuava a ser um balanço racional demasiado rústico para ela. Gostava de coisas simples mas tinham de ser duras, densas, cortantes. Uma religião que se tivesse de preceituar para se degustar e consumir não lhe agradava, mas acabava por ir gerindo eficazmente as regras duma sociedade aparentemente contraditória e desapiedada. Assim, parecia que um Deus que se baseasse essencialmente no amor às criaturas ainda era pouco para ela dar a volta, pois até já Darwin demonstrara que um mero universo servira para criar e sustentar animais e seres humanos saudáveis, e, já agora, que estes seres humanos nem precisavam de tanta ordem assim para sobreviverem. Mas ele, agora apareceu ele, finalmente, olhava sempre para ela com um carinho genuíno. Sabia de fonte segura que Deus ainda brincaria de Darwin-man no coraçãozinho dela, tratando-a como uma tartaruguinha nuns Galápagos banhados pelo sol.
Ela tinha grande relutância em acreditar num Deus de cartilha. Seria talvez medo de perder graus de liberdade, seria medo de ter de conviver com coisas que não percebia, seria apenas falta de pachorra. Enfim, ia-se sublimando em virtudes humanas, em éticas de atestado, num suspiro de racionalismo filigranado com técnicas de sobrevivência desenvolvidas para savanas áridas e desertas. É de facto preciso ter alguma paciência para se ser crente e é preciso ter uma alma com aptidão para se aparvalhar e ao mesmo tempo para se concentrar nem que seja em serviços mínimos. Num belo dia de crepuscular encomendado numa casa de postais ilustrados, a brisa do rio poderia ter-lhe dado inspiração para raciocinar assim: ora se para levarmos uma vida cosmologicamente sadia nos basta pensar que provavelmente aquela merda da lei da gravidade e da atracção dos corpos está certa e a porra da lua não nos vai cair em cima dos cornos um dia destes, então porque é que não poderia ser suficiente pensar que provavelmente existe um Deus misericordioso e omnipotente que nos acompanha duma forma íntima ainda que dissimulada para se ir estabelecendo um princípio de conversa para uma vida religiosamente também sadia. Todos temos uma vida religiosa – o ateísmo só existe conceptualmente, é mais ou menos como a electricidade, é algo que não existe e que apenas se convencionou chamar àquela trampa que faz andar os carrinhos de choque – todos temos uma ligação por mais ténue que seja com algo que nos transcende ontologicamente, e ninguém com as micoses controladas acredita naquela porra do ciclo da mãe natureza, género sermos o cruzamento genético dum aterro sanitário com uma estação de tratamento de águas, em co-incineração apocalíptico-escatológica ao som dos Verve e aliviados com a aromoterapia do ‘deixa andar’. Eu sei que não fica assim muito jeitoso dizer-se mas Deus parece-me em primeiro lugar, mesmo, um ser bem plausível.
Comecei com ela mas fui-me desviando - A fé também alimenta tiques ensimesmantes. Ela não era pessoa de se manter sempre no mesmo patamar, exigia que a acompanhassem aos saltos, punha-nos à prova, não abusando dos historicismos nem dos canonicismos, honra seja feita, mas tratando dos nossos pensamentos como uma gourmet exigente e experimentada; só que os mecanismos da fé assemelham-se mais a uns revueltos extremeños do que a pratos de nouvelle cuisine, e um Deus que nos exigisse sem dar muitas justificações e que depois nos justificasse sem exigir nada, continuava a ser um balanço racional demasiado rústico para ela. Gostava de coisas simples mas tinham de ser duras, densas, cortantes. Uma religião que se tivesse de preceituar para se degustar e consumir não lhe agradava, mas acabava por ir gerindo eficazmente as regras duma sociedade aparentemente contraditória e desapiedada. Assim, parecia que um Deus que se baseasse essencialmente no amor às criaturas ainda era pouco para ela dar a volta, pois até já Darwin demonstrara que um mero universo servira para criar e sustentar animais e seres humanos saudáveis, e, já agora, que estes seres humanos nem precisavam de tanta ordem assim para sobreviverem. Mas ele, agora apareceu ele, finalmente, olhava sempre para ela com um carinho genuíno. Sabia de fonte segura que Deus ainda brincaria de Darwin-man no coraçãozinho dela, tratando-a como uma tartaruguinha nuns Galápagos banhados pelo sol.
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The fröliche Country
Eu fico sempre um bocado roído por dentro quando me lembro daquela Nietzshezada de que ‘se Deus quisesse tornar-se um objecto de amor, deveria ter começado por renunciar primeiro ao papel de juiz’. Mas acaba por me passar rápido. Aliás eu fico sempre para lá de três quartos de fodido sempre que alguma coisa deste descabelado se me passa pela esponja encefálica, tirando as vezes em que tem piada. E quase todos os tipos excessivos e redutores têm piada. Aliás agora criou-se a ideia de que só meia dúzia de tipos têm realmente piada, nada de mais falso, a generalidade das pessoas tem piada, tem humor genuíno; por exemplo, ainda o amigo Nietzche quando diz que a ‘principal razão do mal-estar existencial são os efeitos funestos do ar abafado’ (comi aqui umas quantas palavras mas isso também faz parte), está outra vez a ter piada, mas o artolas que cá veio noutro dia arranjar os estores disse o mesmo e não tinha a consciência que praticamente parafraseava esse mesmo tipo que dizia (fruto de muitas horas de confessionário por certo) que ‘em todas as religiões o homem genuinamente religioso é uma excepção’. Aliás passa-se o mesmo com o cavaquismo; sim, essa nova grande religião que trará para Portugal os novos ‘narcóticos europeus’ (como chamava N. à aguardente e ao cristianismo -vêem como ele tinha piada): a ‘produtividade com um cheirinho’. O mundo ficará então inebriado, seremos nós, povo reeleito, o novo objecto do amor, Deus poderá ficar como Juiz em dedicação exclusiva, põe os processos contra os chinocas no cimo da pilha e o padre Melicias vai fazer de Albaran das bíblias.
Eu fico sempre um bocado roído por dentro quando me lembro daquela Nietzshezada de que ‘se Deus quisesse tornar-se um objecto de amor, deveria ter começado por renunciar primeiro ao papel de juiz’. Mas acaba por me passar rápido. Aliás eu fico sempre para lá de três quartos de fodido sempre que alguma coisa deste descabelado se me passa pela esponja encefálica, tirando as vezes em que tem piada. E quase todos os tipos excessivos e redutores têm piada. Aliás agora criou-se a ideia de que só meia dúzia de tipos têm realmente piada, nada de mais falso, a generalidade das pessoas tem piada, tem humor genuíno; por exemplo, ainda o amigo Nietzche quando diz que a ‘principal razão do mal-estar existencial são os efeitos funestos do ar abafado’ (comi aqui umas quantas palavras mas isso também faz parte), está outra vez a ter piada, mas o artolas que cá veio noutro dia arranjar os estores disse o mesmo e não tinha a consciência que praticamente parafraseava esse mesmo tipo que dizia (fruto de muitas horas de confessionário por certo) que ‘em todas as religiões o homem genuinamente religioso é uma excepção’. Aliás passa-se o mesmo com o cavaquismo; sim, essa nova grande religião que trará para Portugal os novos ‘narcóticos europeus’ (como chamava N. à aguardente e ao cristianismo -vêem como ele tinha piada): a ‘produtividade com um cheirinho’. O mundo ficará então inebriado, seremos nós, povo reeleito, o novo objecto do amor, Deus poderá ficar como Juiz em dedicação exclusiva, põe os processos contra os chinocas no cimo da pilha e o padre Melicias vai fazer de Albaran das bíblias.
Acreditares imaginados em roda livre (III)
Alimentava a fé de bons sentimentos. Era um risco, já lhe tinham avisado, mas a fé dele tinha-lhe aparecido no calor dum berço e não a concebia fora do alcance dessas brasas que são uma consciência tranquila e um coração apegado a valores seguros, mesmo não se entendendo a esmiuçar demasiado quem os segurava. A mística profunda perturbava-o, os Doutores da Igreja pareciam-lhe de quando em vez ora distantes ora envoltos em demasiada apologética, e ele sentia que não precisava de fortalecer a sua convicção com tácticas intelectualmente desesperadas, antes considerava essencial ter capacidade de aceitar zelosamente, de perdoar e de se esquecer o mais possível de si próprio: tinha aprendido que nos podemos perder no reino do nosso eu subjectivo; não o percebia por completo, mas convivia serenamente com essa lacuna metafísica. Só que era um risco, já lho tinham avisado, ter uma fé de suaves assimilações, sem desequilíbrios, só que ele dava-se bem assim, considerava-se tão mais livre quanto mais simples e embalado. Só despreza um encarrilamento quem nunca levou com uma locomotiva nas trombas. Chegou a ter dúvidas, sim, mas esqueceu-as, não lhe estavam a aquecer o coração. A Fé conserva-se no calor, tinha ele aprendido, só o frio enganaria. Vieram-lhe com imagens de aquecimentos em excesso a provocar degelos inoportunos e descontrolados, mas ele pura e simplesmente sabia de fonte segura que Deus também toma conta da sua camada de ozono. Ainda lhe falaram de raspão do efeito anestesiante duma fé assim. Riu-se. Como os bebés depois de lhes passar a primeira cólica, seguros dum colo para toda a eternidade.
Alimentava a fé de bons sentimentos. Era um risco, já lhe tinham avisado, mas a fé dele tinha-lhe aparecido no calor dum berço e não a concebia fora do alcance dessas brasas que são uma consciência tranquila e um coração apegado a valores seguros, mesmo não se entendendo a esmiuçar demasiado quem os segurava. A mística profunda perturbava-o, os Doutores da Igreja pareciam-lhe de quando em vez ora distantes ora envoltos em demasiada apologética, e ele sentia que não precisava de fortalecer a sua convicção com tácticas intelectualmente desesperadas, antes considerava essencial ter capacidade de aceitar zelosamente, de perdoar e de se esquecer o mais possível de si próprio: tinha aprendido que nos podemos perder no reino do nosso eu subjectivo; não o percebia por completo, mas convivia serenamente com essa lacuna metafísica. Só que era um risco, já lho tinham avisado, ter uma fé de suaves assimilações, sem desequilíbrios, só que ele dava-se bem assim, considerava-se tão mais livre quanto mais simples e embalado. Só despreza um encarrilamento quem nunca levou com uma locomotiva nas trombas. Chegou a ter dúvidas, sim, mas esqueceu-as, não lhe estavam a aquecer o coração. A Fé conserva-se no calor, tinha ele aprendido, só o frio enganaria. Vieram-lhe com imagens de aquecimentos em excesso a provocar degelos inoportunos e descontrolados, mas ele pura e simplesmente sabia de fonte segura que Deus também toma conta da sua camada de ozono. Ainda lhe falaram de raspão do efeito anestesiante duma fé assim. Riu-se. Como os bebés depois de lhes passar a primeira cólica, seguros dum colo para toda a eternidade.
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Estarei "grávido de um beija-flor"?
Esta coisa dos blogs faz-nos sentir algo ovularmente corporativos. E eu já tive várias faltas. Já faltei à dos ‘contos mínimos’, praticamente faltei à Menamonica, faltei à doutrina dos plágios, faltei à entrada da Constança CS, estou a faltar à ‘da escrita erótico-pirosa portuguesa’. Qualquer dia rebentam-se-me as águas.
Esta coisa dos blogs faz-nos sentir algo ovularmente corporativos. E eu já tive várias faltas. Já faltei à dos ‘contos mínimos’, praticamente faltei à Menamonica, faltei à doutrina dos plágios, faltei à entrada da Constança CS, estou a faltar à ‘da escrita erótico-pirosa portuguesa’. Qualquer dia rebentam-se-me as águas.
Acreditares imaginários (II) com sequelas em roda livre
Tinha ouvido dizer ao Ortega que «os homens podem dividir-se em três classes: os que se crêem Don Juan, os que acreditam tê-lo sido e os que acreditam que o poderiam ter sido, mas não quiseram» e então, no intervalo entre dois pecados veniais e uma Ave-maria rezada às arrecuas, decidiu-se por deixar Deus fazer o servicinho à maneira d’Ele. Começou num estilo calvinista, metade cantado metade dançado, compatível com paleio de entardecer, e definiu para si dois ou três complexos do foro intimo para o acompanharem e que lhe garantissem pelo menos um aspecto intelectualmente interessante mas piedosamente aconchegavel. Foi acometido do dom apostólico da versatilidade e tanto reconfortava viúvas que extravasavam indulgências como concubinas que deficitavam carências. Na afectividade fácil e no verbo afoito encontrava o adubo que lhe faltava na doutrina débil, e nos dias de soberba mais acicatada achava-se um S. Francisco de bordel, um missionário nas terras do gineceu profundo e longínquo. Era especialista em ameaçar com a frase do ‘atire a primeira pedra’ e chegou a apaixonar-se por uma filha pródiga que tinha saído mal da parábola dos talentos. Baralhava tudo mas sentia-se transversal, Deus pagava-lhe o acreditar marialva com uma existência que dispensava grandes profundidades de carácter. Afastado o credo da boca acabava por transportá-lo nos bolsos a fazer de contra peso ao andar gingão e ao facto de só invocar o santo nome de Deus em vão. Tinha sido dispensado dessa tábua da lei a troco de envernizar talhas corrompidas e de tirar o caruncho a confessionários com escritos.
Tinha ouvido dizer ao Ortega que «os homens podem dividir-se em três classes: os que se crêem Don Juan, os que acreditam tê-lo sido e os que acreditam que o poderiam ter sido, mas não quiseram» e então, no intervalo entre dois pecados veniais e uma Ave-maria rezada às arrecuas, decidiu-se por deixar Deus fazer o servicinho à maneira d’Ele. Começou num estilo calvinista, metade cantado metade dançado, compatível com paleio de entardecer, e definiu para si dois ou três complexos do foro intimo para o acompanharem e que lhe garantissem pelo menos um aspecto intelectualmente interessante mas piedosamente aconchegavel. Foi acometido do dom apostólico da versatilidade e tanto reconfortava viúvas que extravasavam indulgências como concubinas que deficitavam carências. Na afectividade fácil e no verbo afoito encontrava o adubo que lhe faltava na doutrina débil, e nos dias de soberba mais acicatada achava-se um S. Francisco de bordel, um missionário nas terras do gineceu profundo e longínquo. Era especialista em ameaçar com a frase do ‘atire a primeira pedra’ e chegou a apaixonar-se por uma filha pródiga que tinha saído mal da parábola dos talentos. Baralhava tudo mas sentia-se transversal, Deus pagava-lhe o acreditar marialva com uma existência que dispensava grandes profundidades de carácter. Afastado o credo da boca acabava por transportá-lo nos bolsos a fazer de contra peso ao andar gingão e ao facto de só invocar o santo nome de Deus em vão. Tinha sido dispensado dessa tábua da lei a troco de envernizar talhas corrompidas e de tirar o caruncho a confessionários com escritos.
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Encosta tua cabecinha e chora
Soares com o ‘black out’ tenta o que todos tentaríamos nesta altura: que sintam a falta dele; tenta que simulemos, com uns dias de antecedência, o que poderá ser o país tendo como presidente Cavaco, e sem ele. Sem Soares. Entregues a um recreio de Sócrates, Marques Mendes e com as sombras dançantes de Vitorinos e Portas e Borges, e sem ele, sem Soares para nos defender dum Cavaco, desse bolo rei por abrir. Tenta dizer-nos baixinho: é pá pessoal e se eu vos deixar sozinhos com estes gajos e o Cavaco, vocês depois choram no ombro de quem? Vá uns dias à experiência: o teste do ombro.
Soares com o ‘black out’ tenta o que todos tentaríamos nesta altura: que sintam a falta dele; tenta que simulemos, com uns dias de antecedência, o que poderá ser o país tendo como presidente Cavaco, e sem ele. Sem Soares. Entregues a um recreio de Sócrates, Marques Mendes e com as sombras dançantes de Vitorinos e Portas e Borges, e sem ele, sem Soares para nos defender dum Cavaco, desse bolo rei por abrir. Tenta dizer-nos baixinho: é pá pessoal e se eu vos deixar sozinhos com estes gajos e o Cavaco, vocês depois choram no ombro de quem? Vá uns dias à experiência: o teste do ombro.
A manutenção das espécies
Existem, pois, razões de sobra para que as questões que toda a gente tem a presunção de entender – amor e política – sejam aquelas em que houve menor evolução.
Ortega y Gasset (em 1925)
Existem, pois, razões de sobra para que as questões que toda a gente tem a presunção de entender – amor e política – sejam aquelas em que houve menor evolução.
Ortega y Gasset (em 1925)
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Contos de acreditares imaginados
Deus já tinha entrado no coração dele antes de ler Ratzinger escrever que «a experiência com Deus – a experiência a que chamamos fé, só quem entra nela consegue descobrir alguma coisa; só quem participa da experiência formula perguntas, e só quem pergunta recebe respostas.» Nunca se tinha identificado na angústia pascaliana, nunca tinha sentido o apelo a alguma inevitabilidade da submissão da razão, e também nunca tinha encontrado suficiente segurança e consolo num resumo jesuítico género ‘no que é necessário, unidade; no duvidoso, liberdade; em tudo, caridade’. Preocupava-o aquela lógica de que a fé era algo difícil de se viver sozinho, mas acabava por só ganhar força acreditando em algo que outros já tivessem acreditado com lucro, procurando não desperdiçar nem Graças, nem Vontades. Não tinha coração nem cabeça para contradições, e safava-se melhor com mistérios e scrabbles de heterodoxias, fugindo a sete pés da ‘salvação alcançada num cepticismo que limpasse o dogmatismo intimo que sofria’. Sentia que só um bom labirinto nos afasta dum abismo.
Nota: algumas frases, que estão 'assinaladas' , são adaptadas – se bem que descontextualizadas – do Unamuno.
Deus já tinha entrado no coração dele antes de ler Ratzinger escrever que «a experiência com Deus – a experiência a que chamamos fé, só quem entra nela consegue descobrir alguma coisa; só quem participa da experiência formula perguntas, e só quem pergunta recebe respostas.» Nunca se tinha identificado na angústia pascaliana, nunca tinha sentido o apelo a alguma inevitabilidade da submissão da razão, e também nunca tinha encontrado suficiente segurança e consolo num resumo jesuítico género ‘no que é necessário, unidade; no duvidoso, liberdade; em tudo, caridade’. Preocupava-o aquela lógica de que a fé era algo difícil de se viver sozinho, mas acabava por só ganhar força acreditando em algo que outros já tivessem acreditado com lucro, procurando não desperdiçar nem Graças, nem Vontades. Não tinha coração nem cabeça para contradições, e safava-se melhor com mistérios e scrabbles de heterodoxias, fugindo a sete pés da ‘salvação alcançada num cepticismo que limpasse o dogmatismo intimo que sofria’. Sentia que só um bom labirinto nos afasta dum abismo.
Nota: algumas frases, que estão 'assinaladas' , são adaptadas – se bem que descontextualizadas – do Unamuno.
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Um gajo chega atrasado 2000 anos e corre o risco de ficar prejudicado.
«Pois àquele que tem dar-se-á e terá em abundância; mas àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado. É por isso que lhes falo em parábolas, porque vêem sem ver e ouvem sem ouvir nem entender. (...) Quando a vós, felizes os vossos olhos porque vêem e os vossos ouvidos porque ouvem» Mt 13 10-17
O meu maior ‘pecado intelectual’ é pensar que a Revelação para quem não assistiu na versão live é o cabo dos trabalhos. Assistir ao toldamento, à inquietação e à perplexidade da condição de crente é algo que não deixa de me encantar.
«Pois àquele que tem dar-se-á e terá em abundância; mas àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado. É por isso que lhes falo em parábolas, porque vêem sem ver e ouvem sem ouvir nem entender. (...) Quando a vós, felizes os vossos olhos porque vêem e os vossos ouvidos porque ouvem» Mt 13 10-17
O meu maior ‘pecado intelectual’ é pensar que a Revelação para quem não assistiu na versão live é o cabo dos trabalhos. Assistir ao toldamento, à inquietação e à perplexidade da condição de crente é algo que não deixa de me encantar.
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Conto das «perversas polimorfas» (*) : every body hurts
Ele gostava de metonimizar as mulheres como marcas de electrodomésticos. Catalogava-as pelo seu comportamento sexual com uma linguagem já muito própria. Mas eram coisas que só ele decifrava, encaixariam apenas no seu peculiar código lírico-libidinal.
A Candy. A possibilidade de criar um ambiente de vibração sem que ele começasse logo a verter fluidos por todo o lado era uma das suas prorrogativas. Tinha uma espantosa capacidade de vedar os excedentes da excitação mais preliminar, e fazia-o ingenuamente pensar que era ele que estava a escolher o programa mais acertado. Mesmo naqueles dias em que ele arriscava a estoicidade e capacidade de abstracção dela e punha os Lambshop a cantarem ‘I hate Candy’, ela demonstrava que não era uma amante problemática e oferecia-se sem restrições para todas as posições que lhe parecessem letras do alfabeto grego. O estrebucho final resumia-se a uma espremidela - de pontos negros, afinal; glutões no seu imaginário pós-coital que estava mais povoado do ‘Candy, it´s been really nice, but I’ve got to go’ (dos magnetic fields). Era profissionalmente amadora.
A Philips. Com ela sentia-se sempre no banco de trás de uma limousine, marcava o ritmo como em ‘Laura’ dos Scissor Sisters e ia dizendo ‘you know what I mean’ cada vez que lhe afastava a merda do engate do cinto de segurança de zonas que pensava já serem seu exclusivo nessa altura. Terminavam invariavelmente a ver o dvd do ‘Always’ no parque de estacionamento do Cascais shopping, comendo pistachios da Ramazzoti e jurando fidelidade àqueles estofos de pele. Muitos mirones acabaram por não saber quem matou o António por causa duma sessão de ejaculação mais arrastada. Antes da despedida fumavam um charro a meias espreguiçando-se ao lado da prateleira das promoções dos tira-nódoas aproveitando para desempenar os efeitos na coluna.
A Teka. «Tens micro-ondas de paixão» dizia ele encaracolado no prato giratório dorsal e ainda mal refeito dos suores repentinos. «Sexo é apenas temperatura» dizia-lhe ela tentando forçar a sua erecta capacidade de brincar com terminações e consoantes mais esperneantes. «Depende muito» - respondia ele já em fase mole; grafologicamente ele era considerado uma pessoa inconstante apesar de ter uma inclinação bem definida, e ela tinha-se tornado especialista em lhe arredondar as arestas semanticas mais irrequietas. Acabava por ser uma união essencialmente copulativa apesar de tanta conversa de aparência substantiva e desgarrada. Eram geralmente vencidos pela sedução gramatical dum tapete afegão em frente a uma lareira. Estavam conscientes que o calor interno é sempre falacioso, mas também cioso do falo e rapidamente se transforma em ardor quando menos se espera. A Rita Lee não se terá lembrado, mas amor é licor beirão e sexo é raposeira, só que antes uma boa comichão que uma pila sem eira nem beira (vendo bem não resisti).
A Míele. Parecia que estava ali sempre para as curvas. Orgasmava-se que nem um relógio, as pernas abriam-se como num ângulo pré definido, o gemido era réplica da billie holiday e se fosse preciso fazia meias luas com órbitas helicoitais. Fornicar era um regalo. Mas. Um sussurro soprado podia ser uma corrente de ar, um cotovelo era a ponta duma bigorna, uma luminosidade maior que a conta fazia-lhe o leito parecer um luna park e um carinhoso rosnar poderia transformá-la numa autêntica gazela enxertada de avestruz. Aquilo era levado como mais uma modalidade olímpica, ele fazia de tapete umas vezes, noutras de argola, e nos melhores dias fazia de paralelas. Por mera misericórdia poupava-o à figura de cavalo com arções. Mas não era egoísta, no fim, para desinfectar, passava tudo pela sua amiga Vaporeto que tinha sempre a última palavra.
A Bosh. ‘Try not to breath’, estava ela sempre a dizer, «porra, se era para me estares a lembrar dos REM não valia o trabalho» pensou ele da primeira vez. Mas rapidamente se apercebeu que estava na presença duma mulher que não dava cavaco a tabus. Tudo era curva, tudo era carne, tudo era encaixe, tudo era fluido, tudo era válvula, tudo era escape. A surpresa era a sua arma de arremesso, descomprimir significava um risco e virar-lhe costas podia desencadear um autêntico atentado ao pudor. «És um imberbe, Quim» dizia-lhe ela trocadilho-provocantemente com uma aparafusadora numa mão e uma bucha na outra. Tudo era jogo, tudo era batota, tudo era trunfo, tudo era Joker. Acabavam sempre a arfar. Envoltos na poeira de quem aspira e esfrega, mas nunca deixa nada a brilhar.
A Ariston. Chegava a teorizar enquanto comia um yogurte purificador: basicamente o sexo nem era bom nem mau, era apenas uma coisa para se fazer limpinho e sem perfurações desnecessárias. O ‘acto’ era inclusivamente algo não designável: era as ‘coisas’, ou o ‘aquilo’, e nos dias melhores usava um verbo, o ‘fazer’. Nunca uma função foi tão dramaticamente instrumentalizada num ‘porque é assim’. ‘Cumprir’ era a palavra de ordem, ‘prazer’ uma marcha sincopada, e ‘fantasia’ uma guia de marcha. Mas às vezes sabiam-lhe bem as coisas certinhas e sem sobressaltos, numa trincheira também se podem ganhar batalhas, não se via a cara do inimigo e havia sempre ração de combate. Tudo estava ligado, tanto mais que roupa lavada e barriga cheia rimam com glândula aliviada e estima em apneia. E raramente um torcicolo interrompia a pendularidade daqueles momentos porque os músculos já sabiam com antecedência que aquele seria dia de oficial abanar. Nunca era o corpo que pagava, porque era a alma que vivia constantemente no prego.
A Zanussi. Só ele soubera adivinhar o sítio onde ela ligava à terra, só ele conseguia descobrir quando uma mulher assim ainda poderia centrifugar mais um pouco antes de ficar totalmente seca. Meio pastorinha de prado, meio mulheraça de esquina, mão ora na anca de esguelha, ora arredondando a franja em volta da orelha, era um fenómeno de fusão, um milagre da química, da física, da estatística, da criação, no fundo. O sexo em formato de acto era igual ao sonho em formato de sublimação. Pegava nela com o cuidado duma poncheira e com a firmeza duma rebarbadora, sentia-se meio maquilhador, meio torneiro mecânico e chorava românticos pingos de solda. Fecundava sem filtro mas sem medo de fazer borra.
E no fim, quando tudo já lhe doía
chegava a Moulinex a cantar,
E então já se sabia:
Ou fodia,
Ou ela punha-o a andar.
(*) expressão usada por Woody Allen em ‘Annie Hall’ ( julgo)
Ele gostava de metonimizar as mulheres como marcas de electrodomésticos. Catalogava-as pelo seu comportamento sexual com uma linguagem já muito própria. Mas eram coisas que só ele decifrava, encaixariam apenas no seu peculiar código lírico-libidinal.
A Candy. A possibilidade de criar um ambiente de vibração sem que ele começasse logo a verter fluidos por todo o lado era uma das suas prorrogativas. Tinha uma espantosa capacidade de vedar os excedentes da excitação mais preliminar, e fazia-o ingenuamente pensar que era ele que estava a escolher o programa mais acertado. Mesmo naqueles dias em que ele arriscava a estoicidade e capacidade de abstracção dela e punha os Lambshop a cantarem ‘I hate Candy’, ela demonstrava que não era uma amante problemática e oferecia-se sem restrições para todas as posições que lhe parecessem letras do alfabeto grego. O estrebucho final resumia-se a uma espremidela - de pontos negros, afinal; glutões no seu imaginário pós-coital que estava mais povoado do ‘Candy, it´s been really nice, but I’ve got to go’ (dos magnetic fields). Era profissionalmente amadora.
A Philips. Com ela sentia-se sempre no banco de trás de uma limousine, marcava o ritmo como em ‘Laura’ dos Scissor Sisters e ia dizendo ‘you know what I mean’ cada vez que lhe afastava a merda do engate do cinto de segurança de zonas que pensava já serem seu exclusivo nessa altura. Terminavam invariavelmente a ver o dvd do ‘Always’ no parque de estacionamento do Cascais shopping, comendo pistachios da Ramazzoti e jurando fidelidade àqueles estofos de pele. Muitos mirones acabaram por não saber quem matou o António por causa duma sessão de ejaculação mais arrastada. Antes da despedida fumavam um charro a meias espreguiçando-se ao lado da prateleira das promoções dos tira-nódoas aproveitando para desempenar os efeitos na coluna.
A Teka. «Tens micro-ondas de paixão» dizia ele encaracolado no prato giratório dorsal e ainda mal refeito dos suores repentinos. «Sexo é apenas temperatura» dizia-lhe ela tentando forçar a sua erecta capacidade de brincar com terminações e consoantes mais esperneantes. «Depende muito» - respondia ele já em fase mole; grafologicamente ele era considerado uma pessoa inconstante apesar de ter uma inclinação bem definida, e ela tinha-se tornado especialista em lhe arredondar as arestas semanticas mais irrequietas. Acabava por ser uma união essencialmente copulativa apesar de tanta conversa de aparência substantiva e desgarrada. Eram geralmente vencidos pela sedução gramatical dum tapete afegão em frente a uma lareira. Estavam conscientes que o calor interno é sempre falacioso, mas também cioso do falo e rapidamente se transforma em ardor quando menos se espera. A Rita Lee não se terá lembrado, mas amor é licor beirão e sexo é raposeira, só que antes uma boa comichão que uma pila sem eira nem beira (vendo bem não resisti).
A Míele. Parecia que estava ali sempre para as curvas. Orgasmava-se que nem um relógio, as pernas abriam-se como num ângulo pré definido, o gemido era réplica da billie holiday e se fosse preciso fazia meias luas com órbitas helicoitais. Fornicar era um regalo. Mas. Um sussurro soprado podia ser uma corrente de ar, um cotovelo era a ponta duma bigorna, uma luminosidade maior que a conta fazia-lhe o leito parecer um luna park e um carinhoso rosnar poderia transformá-la numa autêntica gazela enxertada de avestruz. Aquilo era levado como mais uma modalidade olímpica, ele fazia de tapete umas vezes, noutras de argola, e nos melhores dias fazia de paralelas. Por mera misericórdia poupava-o à figura de cavalo com arções. Mas não era egoísta, no fim, para desinfectar, passava tudo pela sua amiga Vaporeto que tinha sempre a última palavra.
A Bosh. ‘Try not to breath’, estava ela sempre a dizer, «porra, se era para me estares a lembrar dos REM não valia o trabalho» pensou ele da primeira vez. Mas rapidamente se apercebeu que estava na presença duma mulher que não dava cavaco a tabus. Tudo era curva, tudo era carne, tudo era encaixe, tudo era fluido, tudo era válvula, tudo era escape. A surpresa era a sua arma de arremesso, descomprimir significava um risco e virar-lhe costas podia desencadear um autêntico atentado ao pudor. «És um imberbe, Quim» dizia-lhe ela trocadilho-provocantemente com uma aparafusadora numa mão e uma bucha na outra. Tudo era jogo, tudo era batota, tudo era trunfo, tudo era Joker. Acabavam sempre a arfar. Envoltos na poeira de quem aspira e esfrega, mas nunca deixa nada a brilhar.
A Ariston. Chegava a teorizar enquanto comia um yogurte purificador: basicamente o sexo nem era bom nem mau, era apenas uma coisa para se fazer limpinho e sem perfurações desnecessárias. O ‘acto’ era inclusivamente algo não designável: era as ‘coisas’, ou o ‘aquilo’, e nos dias melhores usava um verbo, o ‘fazer’. Nunca uma função foi tão dramaticamente instrumentalizada num ‘porque é assim’. ‘Cumprir’ era a palavra de ordem, ‘prazer’ uma marcha sincopada, e ‘fantasia’ uma guia de marcha. Mas às vezes sabiam-lhe bem as coisas certinhas e sem sobressaltos, numa trincheira também se podem ganhar batalhas, não se via a cara do inimigo e havia sempre ração de combate. Tudo estava ligado, tanto mais que roupa lavada e barriga cheia rimam com glândula aliviada e estima em apneia. E raramente um torcicolo interrompia a pendularidade daqueles momentos porque os músculos já sabiam com antecedência que aquele seria dia de oficial abanar. Nunca era o corpo que pagava, porque era a alma que vivia constantemente no prego.
A Zanussi. Só ele soubera adivinhar o sítio onde ela ligava à terra, só ele conseguia descobrir quando uma mulher assim ainda poderia centrifugar mais um pouco antes de ficar totalmente seca. Meio pastorinha de prado, meio mulheraça de esquina, mão ora na anca de esguelha, ora arredondando a franja em volta da orelha, era um fenómeno de fusão, um milagre da química, da física, da estatística, da criação, no fundo. O sexo em formato de acto era igual ao sonho em formato de sublimação. Pegava nela com o cuidado duma poncheira e com a firmeza duma rebarbadora, sentia-se meio maquilhador, meio torneiro mecânico e chorava românticos pingos de solda. Fecundava sem filtro mas sem medo de fazer borra.
E no fim, quando tudo já lhe doía
chegava a Moulinex a cantar,
E então já se sabia:
Ou fodia,
Ou ela punha-o a andar.
(*) expressão usada por Woody Allen em ‘Annie Hall’ ( julgo)
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Apenas fazendo um banal aquecimento
Mulher que não apresente uma ligeira, mas bem definida, peculiaridade (*) de fala nunca será completamente sedutora.
(*) Tique, dificuldade, perturbaçãozinha, flic-flac no palato, hesitação crónica, enrolamento, gaguez, drible de vogais, arrastamento, dislexia, sopinha de massa, ventilação, carregamento de erres, distorções fonéticas, etc
Mulher que não apresente uma ligeira, mas bem definida, peculiaridade (*) de fala nunca será completamente sedutora.
(*) Tique, dificuldade, perturbaçãozinha, flic-flac no palato, hesitação crónica, enrolamento, gaguez, drible de vogais, arrastamento, dislexia, sopinha de massa, ventilação, carregamento de erres, distorções fonéticas, etc
Ano novo: bate pop popmente como quem riffa por mim
Detesto escrever sobre o acto de escrever e afins. Por isso vamos já despachar isso para o ano todo; e com um rapaz de quem gosto que é para não ter de sujar muito as mãos.
{1} Sincère ? J’écris afin de ce qui était vrai ne soit plus vrai. Prison montrée n’est plus une prison.
{2} Le gouache résiste davantage à l’eau. Elle fait son petit mortier contre les évanescences qui la guettent. Elle tente de respecter les intentions de l’auteur, du respectable auteur ! Ne me convient pas.
{3} Je parle de ma grande et première impression. Ensuite, bien sûr, il est possible que je retombe dans les distractions, et qu’il me vienne à l’esprit une pensée morale comme on dit. Il faut même m’y attendre (*)
E como estamos em maré de arrumar já as coisinhas para o ano todo, o próximo post deverá ser hardcore. A publicidade é mais interessante invenção do homem depois da memória e ambas têm uma relação circense com a realidade.
Mas depois o resto do ano será passado com os anjos.
(*) de Henri Michaux in 'Passages' da Gallimard
Detesto escrever sobre o acto de escrever e afins. Por isso vamos já despachar isso para o ano todo; e com um rapaz de quem gosto que é para não ter de sujar muito as mãos.
{1} Sincère ? J’écris afin de ce qui était vrai ne soit plus vrai. Prison montrée n’est plus une prison.
{2} Le gouache résiste davantage à l’eau. Elle fait son petit mortier contre les évanescences qui la guettent. Elle tente de respecter les intentions de l’auteur, du respectable auteur ! Ne me convient pas.
{3} Je parle de ma grande et première impression. Ensuite, bien sûr, il est possible que je retombe dans les distractions, et qu’il me vienne à l’esprit une pensée morale comme on dit. Il faut même m’y attendre (*)
E como estamos em maré de arrumar já as coisinhas para o ano todo, o próximo post deverá ser hardcore. A publicidade é mais interessante invenção do homem depois da memória e ambas têm uma relação circense com a realidade.
Mas depois o resto do ano será passado com os anjos.
(*) de Henri Michaux in 'Passages' da Gallimard
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