Acreditares em roda livre (IV)

Ela tinha grande relutância em acreditar num Deus de cartilha. Seria talvez medo de perder graus de liberdade, seria medo de ter de conviver com coisas que não percebia, seria apenas falta de pachorra. Enfim, ia-se sublimando em virtudes humanas, em éticas de atestado, num suspiro de racionalismo filigranado com técnicas de sobrevivência desenvolvidas para savanas áridas e desertas. É de facto preciso ter alguma paciência para se ser crente e é preciso ter uma alma com aptidão para se aparvalhar e ao mesmo tempo para se concentrar nem que seja em serviços mínimos. Num belo dia de crepuscular encomendado numa casa de postais ilustrados, a brisa do rio poderia ter-lhe dado inspiração para raciocinar assim: ora se para levarmos uma vida cosmologicamente sadia nos basta pensar que provavelmente aquela merda da lei da gravidade e da atracção dos corpos está certa e a porra da lua não nos vai cair em cima dos cornos um dia destes, então porque é que não poderia ser suficiente pensar que provavelmente existe um Deus misericordioso e omnipotente que nos acompanha duma forma íntima ainda que dissimulada para se ir estabelecendo um princípio de conversa para uma vida religiosamente também sadia. Todos temos uma vida religiosa – o ateísmo só existe conceptualmente, é mais ou menos como a electricidade, é algo que não existe e que apenas se convencionou chamar àquela trampa que faz andar os carrinhos de choque – todos temos uma ligação por mais ténue que seja com algo que nos transcende ontologicamente, e ninguém com as micoses controladas acredita naquela porra do ciclo da mãe natureza, género sermos o cruzamento genético dum aterro sanitário com uma estação de tratamento de águas, em co-incineração apocalíptico-escatológica ao som dos Verve e aliviados com a aromoterapia do ‘deixa andar’. Eu sei que não fica assim muito jeitoso dizer-se mas Deus parece-me em primeiro lugar, mesmo, um ser bem plausível.
Comecei com ela mas fui-me desviando - A fé também alimenta tiques ensimesmantes. Ela não era pessoa de se manter sempre no mesmo patamar, exigia que a acompanhassem aos saltos, punha-nos à prova, não abusando dos historicismos nem dos canonicismos, honra seja feita, mas tratando dos nossos pensamentos como uma gourmet exigente e experimentada; só que os mecanismos da fé assemelham-se mais a uns revueltos extremeños do que a pratos de nouvelle cuisine, e um Deus que nos exigisse sem dar muitas justificações e que depois nos justificasse sem exigir nada, continuava a ser um balanço racional demasiado rústico para ela. Gostava de coisas simples mas tinham de ser duras, densas, cortantes. Uma religião que se tivesse de preceituar para se degustar e consumir não lhe agradava, mas acabava por ir gerindo eficazmente as regras duma sociedade aparentemente contraditória e desapiedada. Assim, parecia que um Deus que se baseasse essencialmente no amor às criaturas ainda era pouco para ela dar a volta, pois até já Darwin demonstrara que um mero universo servira para criar e sustentar animais e seres humanos saudáveis, e, já agora, que estes seres humanos nem precisavam de tanta ordem assim para sobreviverem. Mas ele, agora apareceu ele, finalmente, olhava sempre para ela com um carinho genuíno. Sabia de fonte segura que Deus ainda brincaria de Darwin-man no coraçãozinho dela, tratando-a como uma tartaruguinha nuns Galápagos banhados pelo sol.

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