Acreditares imaginados em roda livre (III)

Alimentava a fé de bons sentimentos. Era um risco, já lhe tinham avisado, mas a fé dele tinha-lhe aparecido no calor dum berço e não a concebia fora do alcance dessas brasas que são uma consciência tranquila e um coração apegado a valores seguros, mesmo não se entendendo a esmiuçar demasiado quem os segurava. A mística profunda perturbava-o, os Doutores da Igreja pareciam-lhe de quando em vez ora distantes ora envoltos em demasiada apologética, e ele sentia que não precisava de fortalecer a sua convicção com tácticas intelectualmente desesperadas, antes considerava essencial ter capacidade de aceitar zelosamente, de perdoar e de se esquecer o mais possível de si próprio: tinha aprendido que nos podemos perder no reino do nosso eu subjectivo; não o percebia por completo, mas convivia serenamente com essa lacuna metafísica. Só que era um risco, já lho tinham avisado, ter uma fé de suaves assimilações, sem desequilíbrios, só que ele dava-se bem assim, considerava-se tão mais livre quanto mais simples e embalado. Só despreza um encarrilamento quem nunca levou com uma locomotiva nas trombas. Chegou a ter dúvidas, sim, mas esqueceu-as, não lhe estavam a aquecer o coração. A Fé conserva-se no calor, tinha ele aprendido, só o frio enganaria. Vieram-lhe com imagens de aquecimentos em excesso a provocar degelos inoportunos e descontrolados, mas ele pura e simplesmente sabia de fonte segura que Deus também toma conta da sua camada de ozono. Ainda lhe falaram de raspão do efeito anestesiante duma fé assim. Riu-se. Como os bebés depois de lhes passar a primeira cólica, seguros dum colo para toda a eternidade.

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