ou do efeito de não se andar a par das notícias
Tinham um casamento armadilhado pelo amor. E só Deus sabe o quanto ela o amava. Era um genuíno casamento por conveniência; pois nada é mais conveniente que o amor, nada ajeita melhor as coisas, nada deixa melhor as coisas como elas são, nada é mais conservador que o amor. Quando ela o enganava – sim, Francesca enganava-o claro, com aqueles desenganos da carne – ele apenas dizia «só quero é que não sejas inconveniente, não te esqueças que nós amamo-nos». Ela nunca conseguia resistir quando alguém lhe chamava lascivamente e com sotaque andaluz: «Ó rubia!» Só que aquilo também não passava dum mero efeito marmoreado no conveniente estuque amoroso. Pietro sabia isso. Era tão conveniente apenas amarem-se; nem se ajeitavam mesmo a ter mais nada em comum, nem sequer precisavam de rezar ao mesmo Deus, aliás ela até dizia como a Elis Regina que «não sabia rezar, só queria mostrar o seu olhar», os deuses haveriam de compreender, e até abençoar se vissem necessidade. E ele lá andava todo consolado, deixava as inconveniências de lado e amavam-se ao som dum contrato. Amavam-se, essa é que é essa. A mais forte das conveniências; até tinham chegado a falar em ter filhos pendurados nesse amor. «Vê lá, oh rubia» dizia Pietro, provocador «se tens arcaboiço para empinares o teu umbigo e desafiares a lua cheia». Mas ela era muito calculista, sabia que o casamento podia ficar em risco, tinha medo que o cabelo lhe escurecesse, tinha medo de descalcificar e de perder o fulgor dentário que lhe acolitava o sorriso espampanante. O amor era mesmo o que lhes servia, e convinha, não lhes interessava o negócio da espécie, Darwin já tinha morrido há muito, e multiplicarem-se não encaixava naquela álgebra particular deles. Pietro deixava aquilo correr, o amor parecia o bastante para manter o negócio de porta aberta, não precisavam de mais nada. Às vezes até o sexo atrapalhava, e isso chegava a dar-lhes vontade de rir, «isto de facto o amor é do caraças» diziam os dois a rir-se. E depois claro, já não paravam com as piadas, «temos de continuar a investir na nossa relação» era das que gostavam mais, mas nessa altura é porque já estavam mesmo com umas copulazinhas a mais no bucho.
E assim lhes corriam os dias, armadilhados pelo tal amorzinho correspondido. Até que um dia ele interpelou-a inesperadamente: «Acho que se calhar precisamos de qualquer coisa mais importante que isto de nos amarmos»; Francesca, que estava a ver-se ao espelho, numa primeira reacção ainda sobre o efeito do gel, terá pensado «tu queres ver que o gajo agora quer que eu pinte o cabelo». Mas não, Pietro também não pensava em algo de tão profundo, ele apenas sentia que aquela união já mereceria mais que o simples amor, essa coisa sempre refém da reciprocidade, sempre dependente de desinfestações e extintores. Pietro pensava que já era tempo de terem uma relação como deve de ser, baseada em coisas sólidas, que não os deixassem a pensar um dia como dois desconsolados: «apenas nos amámos». «Andaste a ler livros sozinho, Pietro?», é que eles tinham combinado que nunca leriam senão os dois juntos. Mas não, não tinham sido leituras solitárias e proibidas, Pietro era muito respeitador dos seus compromissos, e nem no dentista lia revistas para ajudar a passar o tempo. Aquilo era mesmo a cabecinha dele a ajoelhar-se, não suportava mais tempo ser apenas um amador. Tinha ouvido falar em casamentos por interesse. Queria experimentar. Queria experimentar essa felicidade onde todas as manobras tinham de ser calculadas, e no fim a satisfação era algo que se podia apalpar. Essa merda do amor não tinha consistência. Mas Francesca começava a ficar incomodada, até porque já estava acomodada. O amor servia-lhe tão bem, para quê a felicidade. Para quê lutar pela verdade. O amor servia-lhe tão bem. Até dava para se desenganar, e nem precisava de fazer contas de cabeça. E só Deus sabe quanto ela o amava. Mas afinal era mesmo verdade, nenhum homem se aguentava só com o amor. Ela tinha lido isso num livro, à socapa; é que também nenhuma mulher se aguenta num compromisso.
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