Noites transitórias





Um dos episódios da vida de Jesus que sempre gostei foi o da “Fuga para o Egipto”, pelo que representa e (é pá agora de repente começou a dar na MTV um teledisco do George Michael num ambiente debochado e bacanalizante, não sei será a melhor inspiração para escrever isto, mas adiante) para além disso porque lhe estão associadas belíssimas obras de pintura espalhadas por todo o mundo. E o que me trouxe mesmo até aqui a este tema foi ter reparado subitamente numa dessas pinturas que infelizmente nunca tive ocasião de apreciar ao vivo: trata-se dum “Descanso na fuga para o Egipto” do Orazio Gentileshi, e que está no museu de Birmingham. Apesar de O.Gentileshi sempre me ter parecido que pouco se “desfez” do seu mestre Caravaggio ( ao contrário da sua filha Artemisa, por exemplo), até esteve benzinho neste quadro. São José dorme esparramado de cabeça tombada, enquanto N. Sra dá de mamar ao menino Jesus. Nada demais. O burro observa, e o realismo do quadro faz o resto “enfiando-nos” por ali adentro. Eu penso muito no coitado do S. José. Aquilo deve ter mesmo sido “barra pesada” para o tipo. Primeiros, um anjo diz-lhe que a moça com quem ele se vai casar vai ter um filho mas que não é dele, e como se não bastasse o miúdo é logo o messias de que todos andavam a falar há séculos, vai daí, segundos, ainda mal refeito do aparato todo feito pelos reis magos, aparece-lhe outro Anjo, ele teve ter “ganho um pó” a anjos que só visto, e diz-lhe ( em latim, os anjos falam sempre em latim, para dar mais sainete) : “Surge et accipe puerum et matrem ejus et fuge in Aegyptum”, o que quer dizer em linguagem do povo: «Sebo nas canelas, pega no puto e na tua miúda e põe-te ao fresco, que isto aqui pode azedar para os teus lados, por causa do sacana do Herodes». S. José pensou que o Anjo estava a gozar com ele por causa do «põe-te ao fresco», porque aquilo no Egipto já naquela altura era uma canícula dos diabos, mas resignado lá pegou na trouxa, conseguiu convencer o burro e abalou, e nem sequer teve tempo de pôr as vacinas do miúdo em dia.
O cristianismo é também uma lição para o estudo da mobilidade dos recursos e para a globalização, mas não é isto que me traz aqui agora. Este episódio da fuga para o Egipto está igualmente recheado de pormenores pitorescos importados dos evangelhos apócrifos e muitos deles são recuperados pela iconografia, mas agora também não me está apetecer falar nem das árvores que se agacham, nem dos campos de trigo que crescem ao ritmo do cabelo embebido em kerastase, fico-me então só pela constatação desta realidade: a disponibilidade duma alma que confia, transporta uma força que não é perceptível a olho nu.

A Contra-reforma vai "forçar" alguma mudança na representação pictórica da Fuga para o Egipto, perdendo-se talvez a força de certa rusticidade da cena, e ganhando-se alguma sensibilidade quase idílica nalguns casos, por exemplo nas bonitas “fugas noturnas” de Adam Elsheimer. Mas aqui mais uma vez o S. José sai prejudicado, pois com alguma perda de protagonismo do burro, lá vai ter de ser ele a alancar com o puto às costas, substituindo, como dizem os eruditos, o “in utero” da Virgem pelo “in humero” do desgraçado do carpinteiro, que felizmente o era, pois estava talhado para ter de andar a construir mobília nova de tempos a tempos, dado que o IKEIA só acabou por ser descoberto alguns anos mais tarde. E reparo agora então que: quase sempre a força trazida pela confiança traz consigo algum sacrifício, e às vezes até alguma transitória “noite”. Mas compensa. Sempre.


Sem comentários: