Lorenzo podia dizer-se que ainda era um rapaz. Sonhava em ser alpinista, iria ser alpinista tenho agora a certeza, agora que vou escrever esta história, claro; só que não o seria para sempre; esta noção de “para sempre” faz confusão quando ainda se é ainda rapaz, não é bem fazer confusão, é mais não interessar para nada, ou melhor, o “para sempre” é quase um dado adquirido quando se é rapaz, é uma espécie de borla dada à juventude, para compensar as exigências desleixadas da nostalgia.
Não sei se era o “ver o que os outros não viam” que o seduzia, nem sei se era o “estar mais próximo do que quer que fosse” que o seduzia, eu cá, que sou o narrador-patrão desta história, gosto mais de pensar que ele era seduzido por viver fascinado, por ir vivendo consumindo pouco oxigénio, num despojamento energético, vivendo numa ofegância provocada por um cansaço quase desejado, quase obsessivo - esse conceito tão reflexivo - o cansaço próprio duma alma que se julga trepadora, e duma mente que não gosta de pensar mas que não consegue fugir do pensamento.
Enquanto preparava a grande subida conheceu uma rapariga. Linda. Não, era apenas bonita, as raparigas são apenas bonitas, lindas são as mulheres. Chamava-se Theresa. O nome mais bonito que uma mulher pode ter é Teresa.
Theresa gostou logo de Lorenzo, não é para abreviar a história, foi mesmo assim, mas ele não percebeu, claro, só pensava na montanha, no cume, mas mesmo assim ainda deu para se encantarem um bocadinho, ainda deu para Lorenzo se esquecer da montanha por uns momentos. Viveram a frescura atrevida dum final de adolescência, chegaram a fazer um rolo de carne no aconchego dum sopé, cada um sonhando com aquilo que podia, e queria, porque ainda dava para escolherem os sonhos, e depois cada um acordou para o lado que estava virado, uma gira evidência, como que deixando a geometria dum despertar desenhar a fisionomia dum destino. Lorenzo já tinha conhecido outras raparigas, mas nenhuma-tal-tinha-sido-alguma-assim.
Só que Lorenzo estava era fixado, não queria ficção, contentou-se – aparentemente - com a fricção e tinha uma montanha para subir, tinha um cume para desfrutar, tinha uma ofegância para vascular, tinha um coração para rebentar para o qual não contava com a companhia do carinho de Theresa. Mas ele na altura não valorizava a falta desse carinho. Se calhar ele julgava que o vento agreste, e gelado, e inspirador, dum cume dispensava a carícia duma pele virgem de rapariga. Mas a pele é a primeira coisa a perder a virgindade, penso eu agora, mas eu não tenho nada a ver com esta história, claro, até posso é atrapalhar. E a tal virgindade que a pele perde, também está constantemente a recuperá-la, todos somos cobras, só que Lorenzo não tinha tempo, nem paciência, para pensar nisto. Ia subir.
Lorenzo esteve no cume ainda muito tempo. Enquanto lá esteve, apesar de ter vivido agarrado a ele sorvendo o gelo, acabou por não o valorizar em demasia, limitou-se a ter apenas alguma consciência dele. Não tinha sequer tempo, nem pulmão, para ter muita consciência. Chegou a olhar para baixo, poucas vezes note-se, procurando vislumbrar os cabelos negros de Thereza, mas não era para olhar para uma miúda que Lorenzo tinha subido ao cume duma montanha, não lhe convinha sequer olhar para baixo, isso distraía-o, e num cume uma distracção é fatal. É que no cimo duma montanha poderemos estar muito bem acompanhados, mas nunca ninguém nos dá a mão verdadeiramente, nunca ninguém nos dá a sua pele, que está seca. E Lorenzo foi descobrindo entre fôlegos mal paridos que jamais conseguiria saborear de verdade o aroma duma pele amiga enquanto estivesse no cume duma montanha.
Um dia, desceu. Queria correr, sentia necessidade de correr. Queria velocidade mas sem estar sempre preocupado com o sítio onde punha o pé. Se calhar Lorenzo convenceu-se que já tinha visto o que queria no cimo da montanha. Ou o que precisava. Eu devia saber isto, dado que sou eu que estou a contar a história, sou eu o dono desta merda de história, mas às vezes é assim, não sabemos o que fazer com aquilo que temos.
Theresa já lá não estava. O sopé aparentava alguma desolação, mas Lorenzo agora podia correr, correr para onde lhe apetecesse, num cume é que não se podia ser rebelde, os cumes matavam as rebeldias. Mas Thereza tinha ido com outro, raios. Um engenheiro. «Porra, um engenheiro electrotécnico! Para que é que lhe serve um engenheiro», pensava Lorenzo, «se era para montar os candeeiros na sala eu também haveria de o conseguir», a falta de oxigénio não lhe tinha feito perder o sarcasmo, nem a ironia, via-se. Lorenzo já não era um rapaz, descera dum cume mas, e assim às primeiras, parecia ter sido trocado por um busca-pólos! Teria a cume valido a pena? Teria sido o cume uma mera fantasia topográfica que alimentara ilusões de meninos armados em homens, pensava agora Lorenzo, ele que nem gostava de pensar. Ou o mal era afinal de Thereza, que tinha estupidamente preferido um homem especializado em ligações à terra, e não pôde esperar por outro que a podia ligar às nuvens. Coisas de mulheres, se calhar.
Mas agora o que ele não aceitava era que ter estado num cume daqueles lhe tivesse retirado definitivamente a hipótese de poder correr ao lado de Theresa, e de ficar ofegante, mas com a ofegância de correr com ela ao colo, e de rodopiar, um homem que nunca rodopiou com uma mulher ao colo é uma merda, isso é sabido por todos, até por Lorenzo que tinha passado uma carrada de tempo no cimo duma montanha.
Só que de repente, sim foi assim de repente, quase sem ele se dar conta, Lorenzo perdeu a vontade de correr. Ficou apenas andando pela pradaria, também não era arrastando-se, era andando mesmo, como um qualquer peão, também não era como um pedinte, era um peão mesmo, e nunca contou a ninguém o que tinha vivido no cimo da montanha; estava pois sem cume, mas sem interesse pela sua memória, e sem Theresa, mas aqui inesperadamente com medo da sua memória. A pior coisa que um homem pode ter na memória é uma mulher, deve rapidamente mudar para uma boa jogada de futebol, ou uma boa anedota, ou um negócio que tenha corrido bem, e era isso o que Lorenzo ia fazendo. Aprendera isso nos dias da alta montanha, quando não podia ocupar a cabeça com coisas estéreis, mas vendo bem uma mulher nem é uma coisa estéril, bem antes pelo contrário na grande maioria dos casos, mas isto é uma consideração de narrador que não acrescenta nada à história; caprichos de narrador é o que é.
Ainda havia uma sensação que apoquentava Lorenzo, era um bocadinho uma sensação do tipo “descompensação cinéfila”, mas não deixava de ser uma sensação, tratava-se de ele julgar que nem sequer afinal tinha sofrido uma porra dum verdadeiro desgosto de amor. Era uma daquelas sensações de que um tipo até se envergonha. E a Lorenzo, que nunca se tinha envergonhado, porque no cume duma montanha vá lá um tipo ter tempo para se envergonhar, isso atrapalhava-o realmente, condicionava-o até, vendo bem, e para estes condicionamentos ele nem estava preparado.
Mas Lorenzo lá foi sacudindo estes novos condicionamentos, e os nervos, que acabou por descobrir e reconhecer a muito custo que também os tinha, e foi seguindo as regras da pradaria. Tinha aprendido no cume a adaptar-se , a disfarçar-se para enganar as avalanches. Afinal não se tinha perdido tudo. Penso agora, se calhar eu ainda devia era casar o Lorenzo nesta história, mas não, nestas histórias os casamentos não casam com o resto do enredo, até o podem mesmo enrodilhar, e não fica bem ver um ex-alpinista de rodillas. Lorenzo e Thereza nunca mais se encontrariam, nem numa loja de ferragens na secção das iluminárias, não estavam afinal feitos um para o outro; os engenheiros electrotécnicos servem também para isto: para separar as águas, para fazerem as electrolises dos amores, para dar às mulheres a possibilidade de se vingarem dos homens que um dia desdenharam o oxigénio da pradaria.
Só que Teresa era tão bonita, com uns cabelos bem negros, com um olhar tão bem rasgado, «cabrão do engenheiro», pensava Lorenzo, mas só pensava de vez em quando.
Algum dia também é existência. Era essa a esperança de Lorenzo.
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