Mas agora também reparo

Proibido a crianças-adultos em fase de construção de personalidade



Que raio, aborrecem-me tanto os moralismos da série “coisas bem acabadas”. Mas parece que só assim é que se forja um carácter forte: fomentando o dever de acabar aquilo que se começou, de nunca deixar nada por terminar, de fazer as coisas bem feitas. E ainda para ajudar à festa este moralismo de almanaque parece irritantemente fazer todo o sentido. Mas arrepiam-me ( coitadinho...) tanto as coisas que fazem sentido; são uma espécie de damas d’honor do não menos arrepiante “estava-se mesmo a ver”. Semaforizam-me a existência. Mas desgraçadamente não nos safamos dessas éticas do “acabar o que começámos”. Dessas moralidadezinhas de “menu do dia”, que acabam por ignorar displicentemente o ensinamento que se poderia retirar dos rodízios em constante reabastecimento. Mas que porra, realmente, isto de que para se ter uma personalidade forte é preciso sentir a responsabilidade de terminar, já me está a incomodar mais do que o vento cheio de areia a bater no focinho, e já nem falo da situação das virilhas porque essas estão também muito batidas mas pelas piadas da estação. (não estás é a arranjar outras piadinhas...)



Que pena não se poder viver apenas atamancando, e ser à mesma uma fonte de virtudes. Já não nos bastava a sina metafísica de não podermos ser acto e potência ao mesmo tempo, ou a sina biológica de não podermos deixar uma mijinha a meio, ou a sina lógica de não podermos meter o Rossio na rua da Betesga, ainda tínhamos de alimentar esta sina moral de ter de acabar as coisas para moldarmos uma personalidade modelo. Chega mas é de moralengas destas que, vai-se a ver, só servem para fazer fretes às cartilhas de fraca vazão.



Se o mundo já é de si uma morada incompleta, sim o mundo, esse estendal da ropinha dos deuses, esse abanico de mulheres enganadas, esse carrocel para homens-meninos aparvalhados, porque carga d’água é que para construirmos um espírito forte temos de lutar por ter as coisas bem terminadas e bem assentes. Porque é que não será mais acertado irmos também deixando constantemente tudo em suspenso, como deuses. Cheiinhos de incompletude, cheiinhos de “eu já cá volto”, cheiinhos de “ eu já acabo isto”, cheiinhos de “amanhem-se agora que eu quando puder já cá venho outra vez”. Assim sim! Viver em “pendurância”, como convém à nossa condição de seres incompletos e dados a baloiçar. Seres pendulares, diriam os mais eruditos, os mais foucaultizados e mal pagos.



Minha insonsa alma doravante será mas é temperada só pela salgada imperfeição, pelo avinagrado provisório, e pela ketchupada incompletude, acabaram-se as maioneses “amoraladas”, pré fabricadas, e sempre já prontinhas a usar. Deixar tudo por terminar, apenas gerir pendências, viver do bom expediente da eterna e adolescente esperança, é a única garantia que podemos ter de que nunca abandonaremos nada nem ninguém. Quem diz que põe uma pedra sobre um assunto, verá no corpinho que ela se irá desforrar e enfiar-se-á no seu sapatinho sem ele se dar conta.



A sabedoria não está em acabar, antes sim em saber viver, serenamente quanto baste e inquieto quanto se aguente, deixando sempre tudo incompleto, deliberada e controladamente incompleto. Sábios serão os que conseguem viver de porta sempre entreaberta, sem medo de apanharem as incómodas pontadas, por causa da corrente d'ar provocada pela baixa pressão relativa à ausência da famosa “consciência do dever cumprido”. E sábios serão os que não perdem um segundo a ler esta merda, e fogem a sete pés dos que lhes querem demonstrar o contrário do que já está demonstrado e à custa de joguinhos de palavras.



Eu quero acreditar que um carácter forte se forja em nunca desfrutar do prazer de terminar algo, mas em ter sempre o coração a bater palmas e a pedir enconres. Mas agora também reparo: para que é que serve um carácter forte? E para acabar bem as coisas bastará o medo das deixar incompletas.

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