Contos do amor gozoso

Ou do efeito perverso de não saber dançar



Giuseppe era o verdadeiro guru do humor da pátria. A referência das referências, o pai de todas as buchas de riso, aquele a quem a veneração quase assumia laivos duma nova religiosidade, onde crentes e sacerdotes se uniam, e fabricavam eles mesmo os seus próprios deuses de bricolage, à facon, no cadinho incensado da risada redentora. Todos o adoravam praticamente sem excepção, numa unanimidade confrangedora, desde a mente mais sofisticadamente transgénica até ao espírito mais ecologicamente rústico, desde o pelintra mais revoltado até ao magnate mais acomodado, desde o «bêbedo olímpico ao servente abstémio», como diria S. Beckett. Fazia, ele sim, o verdadeiro Pleno (não aquela merda de tisanas que se apregoam por aí). Era dono da montra mais cobiçada pela plateia do pronto-a-rir da urbe, onde os convidados misturavam nervosamente o medo de serem bandarilhados em público, com o irreprimível desejo juvenil de serem entronizados numa galeria de fama, carimbada pelo seu pegajoso selo branco. Discurso que não levasse uma tiradinha importada do seu humor aforístico não conseguiria empolgar nenhum auditório, padreco que não enfiasse uma chalaça das suas no sermão bem se podia flagelar em público que nem provocava o “valha-me Deus” numa carmelita descalça, e nenhuma brigada de trânsito resistia a uma desculpa bem artilhada por uma piada benzida por este Buda do humor.



Só que Giuseppe queria mais, as fronteiras do seu país sufocavam-no, a língua era a sua pátria mas também a sua prisão, sentia-se pouco mais que um guarda-fiscal da boa disposição nacional, e achava que tinha direito ao paraíso fiscal do humor global. Achava que algum dia teria o mundo a seus pés de tacha arreganhada, manipulando as almas ao ritmo do gargalhado, construindo milagres do sol e cobrindo a gentalha com o manto do seu riso amestrado.



Uma oportunidade iria certamente espreitar e ele não era esquisito; honra seja feita pelo narrador à personagem: ele não era esquisito, apresentava até uma humildade de conquistador, dispunha daquela certeza de que as oportunidades são para se agarrar e é um desperdício usá-las para adornar suspiros, porque senão mais vale transformá-las em chás de beneficência.



Era no Quebec que brilharia a chama da oportunidade. Num programa de “anedotas animadas” tinha aberto o lugar para uma personagem que falasse inglês e francês mas com sotaque genuíno. Ele não desdenhou a chance, e receberam-no com um misto de curiosidade etnográfica e de interesse por ser portador de mão-de-piada-de-obra barata. Giuseppe saiu-se bem, claro, e ia instalando aos poucos a sua imagem; não era uma flor de estufa, e dava-se lindamente em todos os ambientes, jogando na dose certa com o encanto do pavoneamento e com o encanto da submissão.



As oportunidades atraem-se, e aí estava outra a pedi-las: o modelo do programa para adormecer as criancinhas do Quebec estava a esgotar-se, e os estudos de audiência revelavam que o contador de anedotas com sotaque tinha muito boa imagem junto das criancinhas. Foi-lhe então colocada a hipótese de criar à volta da lavagem dos dentes das criancinhas um mundo de engraçada fantasia e de suave relaxamento e santo entorpecimento. Giuseppe viu aí a sua chave de ouro e, qual gazua, avançou desembestado para o sucesso. Iria transformar para sempre a mitologia da higiene dental, cada bochechadela das suas seria um hino à hilariedade. E de facto, bochechar nunca mais foi o mesmo no reino do Quebec. O ritmo da escovadela dentária de Giuseppe tornou-se num break dance generalizado, e o mundo parava de boca aberta enquanto ele rodopiava as suas piadinhas deambulando em cima do fio dental. Crianças e graúdos começavam a ficar rendidos ao seus gargarejos, e o único senão de tanto riso era que a excitação já começava a tornar-se inimiga do santo sono das crianças.



O sucesso começou a dar nas vistas, e a atracção exerceu-se logo nas grandes marcas da higiene dentária; foi por um triz que ele não sucumbiu à financeira tentação de se tornar na imagem global do Tantum verde, rentabilizando assim até exaustão o seu já mais que mais famoso gargarejo televisivo. Mas à última hora uma visão providencial mostrou-o como uma espécie de Albarran do Quebec, e devolveu-lhe a lucidez que sempre o tinha acompanhado desde a primeira hora. Declinou - devidamente agradecido - o tentador convite, e ficou-se pela cívica atitude de emprestar a sua curiosa imagem à campanha pública das “gengivas sãs”, com um sketch de massagem gengívica que ainda hoje levanta o lábio superior a qualquer carrancudo profissional que viva para lá dos grandes lagos.



Giuseppe via agora que tinha cumprido a sua primeira etapa, e talvez a mais difícil, mas começava a constatar que estava com a sua imagem um pouco, pode-se mesmo dizer, colada ao céu-da-boca. Precisava de dar o salto e de se abalançar definitivamente para ser o sonhado ícone do humor global. Ele só descansaria quando fosse mesmo o guardião do Olimpo da chalaça. E outra grande oportunidade estava milagrosamente à espreita: um dos grandes humoristas de topo de gama do mundo anglo-saxónico tinha um programa diário em que fazia de barbeiro, e onde ia despejando a sua piadética para cima do cliente, que pouco mais fazia que ir dando de bandeja as deixas para o mestre poder brilhar. A mais fina ironia política coexistia harmonicamente com a brejeirice mais rudimentar. Ora o actor que passava o tempo sentado envolvido num lençol e que entregava a sua popa ao sacrifício, estava assolado do mais que óbvio ataque de hemorróidas, e Giuseppe, não se fazendo rogado, atacou com o seu instinto matador oferecendo-se de forma quase irrecusável para o lugar. (talvez até seduzido de forma inapelável pelo prazer incomensurável que tinha quando lhe mexiam no cabelo, misturando-se aqui um pouco a inveja que assola intermitentemente este narrador em relação à sua personagem)



E aí estava, Giuseppe entrou pianinho, sem querer fazer nem mossa nem sombra à estrela instalada e incensada, e deixou até correr sem grande intervenção alguns dos episódios iniciais aproveitando para revirar os olhos enquanto lhe tricotavam um delicioso formigueiro no couro cabeludo, gerindo concomitante e controladamente o risco do ar apanascado que isso lhe poderia acarretar, e foi de forma muito dissimulada e progressiva – mas inexorável - que foi lançando o seu plano de farpas risíveis, que eram profissionalmente servidas por uma noção e um rigor ímpar do tempo e do ritmo humorístico. Começava a ser ele a tomar conta do programa e da sua risibilidade. E quando se julgava já impossível, as audiências iniciaram outro ciclo galopante, sem que, pasme-se, a estrela do programa se apercebesse que a razão deste novo abano de sucesso se devia exclusivamente ao “cliente-actor” arranjado à pressa, sem escrutínio, nem coro de avés nem de amens. Este aparentemente inofensivo e meio atarantado “cliente” de sotaque engraçadinho, e oriundo do programa “Prá caminha com os dentinhos a brilhar”, que tinha vencido a batalha da cárie juvenil enquanto punha a criançada a dormir mais cedo, permitindo ainda aos pais o inesperado bónus dum fornicanço entremeado de riso, preparava-se então para um takeover, o menos hostil possível, ao humor global. O mundo estava mesmo prestes a render-se à sua infinita capacidade de fazer rir qualquer pessoa e de qualquer maneira, à sua capacidade infinita de subjectivar o que parecia absoluto e inabalável, e de tornar absoluto o que não valia um punhado de esterco. Tomou conta da barbearia, era agora dono e senhor da haute - coiffure do riso universal.



Mas estranhamente começou a apoderar-se dele uma vontade quase ulisseiaca de regressar. Começou a pensar que afinal tudo aquilo apenas lhe tinha servido para ele ver que o seu destino era mesmo mexer no destino dos outros. Ele queria agora mais. Ele via que o poder – o real, o tentacular, o sôfrego e esmagador poder - estava ali a milímetros dele, e ele podia agarrá-lo se aproveitasse as deixas da realidade com o mesmo instinto e a mesma frieza com que as dominava no discurso humorístico. Um dos partidos da sua terra natal apresentava-se de sede vacante, e tudo até lhe parecia inesperadamente bem mais fácil que lavar os dentinhos a meninos antes de adormecer. Os comentadores já só se entretinham a dizer mal uns dos outros, a realidade parecia entregue aos bichos e sem franciscanos de boa regra para cuidar deles, o povo era um brinquedo barato que nem precisava de muitas pilhas, e nem exigia constantemente piadas novas como era costume acontecer nas audiências sofisticadas dos programas humorísticos. Iria fazer dos analistas gato-sapato, iria fazê-los suspirar por uma ditadura previsível e abjecta, iria fazer dos bastidores o palco, iria gozar com os espectadores, iria dirigir a nação com a força do humor invisível, escovaria a concorrência como quem limpa o calcário duma dentadura de gaiatos, e até talvez lhe bastassem apenas algumas piadas dos tempos em que o sotaque era a sua única mais-valia. Fácil demais, vendo bem.



Mas o sono do narrador, e o pacto que ele tem para com o discurso lírico acabam por arrastá-lo finalmente para o relato – tardio, reconhece-se – do verdadeiro desafio de Giuseppe: colocar todos os seus talentos na conquista duma mulher, duma mulher que soubesse deixar-se amar e que não se afastasse pelo cheiro perigoso do humor que nada perdoa, nada consola, nada aconchega, nem nada salva nem ressalva. Aquele vírus da relatividade que o humor carrega sempre tinha criado uma ourela de insegurança à sua volta, parecia trazer consigo um precipício ambulante, as mulheres riam-se mas não conseguiam amá-lo, riam-se, mas apenas pousavam a cabeça no seu ombro para descansar das risadas convulsivas e nunca para lhe confiarem nem a esperança nem o desejo mais puro e efervescente. Era um fornecedor de momentos bem passados, um homem interessantemente descartável, talvez o melhor acompanhante, o que fornecia fama, alguma fogosa e diferente cama, mas de quem no final se deslizava como da lama. Giuseppe sabia disto tudo desde os primeiros tempos. Nos anos do Quebec não tinha tido tempo para aferir da evolução do estigma que carregava, vivia da sua suprema superficialidade, nem se podia dar ao luxo de ser homem de bem, ouvia como na canção que «sua risada me assusta», mas não valorizava isso e distraia-se a secar o olhar esgazeado das mulheres com o humor cirurgicamente inteligente, ou com a inteligência cirurgicamente humorada.



Só que agora estava de volta à sua terra mãe e até tinha desprezado o encanto da política. Agora que até podia sobreviver apenas brincando numa espécie de monopólio de édipos tardios, apresentava-se quase disposto a vender a sua piada ao diabo, para sentir em troca o carinho despojado, bem físico e sem cálculo, duma mulher. Dono e senhor do humor global, não passava dum mero indigente no reino do amorzinho recatado e quase de feira a que qualquer dos parvos que fazia rir tinha acesso sem grande esforço. Punha os corpos a tremer de riso só com um trocadilho de ocasião, punha-os a contraírem-se orgásmicamente num gozo até intelectual com a exposição das ambiguidades que tocavam nos insondáveis lugares da psique, mas não lograva sequer grudar uma mulher com o suor resinado promovido pelo cansaço da hilariedade em trote. «Sou apenas baba com pernas», pensava Giuseppe nos momentos em que inventava histórias contra si próprio, para alimentar uns ciúmes que nem sequer tinham razão para existir, os mesmos ciúmes que tanta inspiração lhe tinham fornecido, e tantos aplausos e direitos de autor lhe tinham garantido. Mas essa mulher não existiria de facto. Giuseppe seria para sempre refém da sua própria opção de viver matando tudo o que estava à volta, numa eterna imolação do cordeiro da felicidade a troco da salvação de uma gargalhada.

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