de girino a sapo parteiro

Saraiva Gusmão era um sapo toleirão e Isabelinha Rebordosa uma libelinha caprichosa. Esta é a história dos dois, vinda do tempo em que os animais sabiam coisas.

Saraiva, quando parecia ainda estar fresquinha a sua saída da girinidade, andava pelo charco distribuindo lampeduzadas. Isabelinha achou-lhe piada e deixou-se namorar num nenúfar recatado, defendido por uma cortina de juncos que lhe abafavam as gargalhadas. Riam juntos e em separado, mas namoravam mais de sonhos que de beiços.

Cada dia que passava Saraiva parecia aos olhos de Isabelinha um sapo raro, tocado pelos espíritos do charco, e deixava de ser apenas o sapo brincalhão, mais se parecendo quase um sapo-da-guarda, um elfo da coaxada.

Com o tempo Saraiva foi fazendo com que o charco parecesse a Isabelinha um mare nostrum, e ela deslizava por entre as nuvens, que se tornavam caravelas tais as preciosidades que ia descobrindo no seu saraivinha cor de oiro velho,  uns verdadeiros tesouros babushcamente dentro doutros tesoiros.

Saraiva sabia que não havia nenhuma razão para que Isabelinha gostasse dele, nenhuma libelinha esperta fica muito tempo com um sapo apenas por causa dum jeito especial de pestanejar e enrolar ideias ao entardecer. Isabelinha começou a sentir que os nenúfares estavam a ficar muito pegajentos e foi criando uma redoma onde Saraiva só podia tentar entrar à base do seu insinuante, sedutor e sinuoso coaxar, mas com poucas hipóteses para a sua perninha alçar.

Saraiva Gusmão ora investia ora recuava e Isabelinha Rebordosa divertia-se a fazer voos rasantes, voos sem tocar, ou raspando mas sem aterrar. Sabia-se no comando das hormonas do charco e sabia que o seu Saraivinha estaria sempre num nenúfar à sua espera, contando palpitações pelos dedos, ora vestindo uma casquinha de ovo, ora fazendo uns olhinhos que mais pareciam pérolas baças pela ansiedade e a incompreensão, acompanhados de porquês lançados fugazmente pela neblina.

Um dia Isabelinha bateu as asas com brusquidão, cansou-se, foi à vida dela, deixou o rasto do adeus nos céus,  e deixou de aparecer. Quem precisa dum sapo espirituoso e chato quando se pode ter um frigorífico cheio em casa. Um manto negro baixou sobre o charco e este transformou-se num pântano à espera de dreno. Drenou, secou, e Saraivinha adaptou-se à sua nova condição de guarda de deserto artificial mas sem direito a fardamentos novos.

Veraneantes de fim de semana iam visitar o que no passado tinha sido uma luminosa lagoa. Gafanhotos, centopeias, flamingos, garças, tartarugas e pelicanos. Não se sabe se percebiam o que lá se tinha passado, nem o sapo Saraiva dava fé de nada. Limitava-se a receber com cordialidade as visitas, mordiscando as bordinhas do cromossoma de girino parvo que ainda lhe restava. Não podia ficar a olhar para o céu senão mesmo sem pescoço ainda arranjava um torcicolo, e ninguém acreditaria num sapo com torcicolo.

Por razões que os deuses do pântano desconhecem, a libelinha caprichosa resolveu certo dia fazer um voo de nostalgia pelo pântano e encontrou um Saraiva mais frio e distante do que lhe sopraram os seus radares. Era um sapo dorido. Habituado à secura e indiferente aos ventos que silvavam por entre os canaviais. Isabelinha inesperadamente sentiu um aperto no seu outrora bem camuflado coração e com os sentidos ainda perturbados pelos novos odores da seco charco começou a ter visões de saraivinha rodeado por grilas, borboletas, besourinhas e até escaravelhas, a todas dando troco com o seu encanto de coxeador. Ora quem dá o coxear um dia vai cobrar na coxinha - pensou Isabelinha - e trocou-me pela primeira beija-flor que lhe apareceu.

Afinal Saraivinha Gusmão era um galã dos pântanos. Isabelinha pensara nele mais para irmãozinho mais novo, um anfíbio-de-companhia, um parceiro de nenúfar, um galhofeiro alternativo, alguém para ir discutindo as nuances de colorido do charco, mas no fim de contas tinha ali um garanhão dos juncos. Como era possível a libelinha Rebordosa e tão segura, não ter percebido que no meio de tamanho espírito, preciosidade e tesoiro estava um salteador de arcas perdidas, um fornecedor de lemes para libelinhas, um debochado que não descansava enquanto não fizesse cavalinhos com elas.

Esta é a história sem moral de como um sapo pode passar de porreiraço brincalhão a destrauss-kahnas dos pântanos. Mas o que aconteceu foi apenas os nenúfares terem secado com falta de oxigénio e, quando o sol voltou,  a sua pele limitou-se a reflectir a luz, que antes estava filtrada e esmorecida pela sombra frígida dos bambus.

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