Os primeiros anos



Renata só tinha recordações felizes. Parecia coisa de vírus, mas só se lembrava do bem que lhe tinham feito, dos momentos bens passados, o seu arquivo mental era composto apenas de dossiers coloridos, cenas bem agrafadas, nenhumas pontas soltas, só paixões concluídas ora com amizades à prova de sexo, ora com acoplagens fecundas, ora esquecimentos olímpicos, tudo selado a sangue doce.
Houve sempre alguém que lhe puxasse pelas arrelias da vida, homens de flirt fluido ou de cérebro difícil, mas ela sabia encontrar o encanto de cada um, tinha um radar de virtudes, um detector de metais preciosos mesmo para as personalidades mais subterrâneas ou até cruéis.
Não conseguiu evitar alguns dilemas vertiginosos de deixo-não-deixo, não evitou alguns precipícios, mas conseguiu sempre encontrar uma corrente quente que a fez ascender aquele lugar plano, sereno e bucólico onde as mulheres gostam de pousar o coração por mais amazonas ou felinas que se sintam ou sejam.
Renata sabia-se uma privilegiada na lotaria dos sentimentos, jamais guardara rancores, jamais se revoltara com os caminhos por onde tinha deslizado, vivia a combinar a experiência de viver com a inocência de nascer, como um caldo de legumes frescos sempre a apurar e sempre a exalar o perfume dum prado sem maçãs nem serpentes.
Uma vez, lá num tempo semi-longe, esteve quase a deixar-se ir, agarrada por um peito incapaz de esconder funções irregulares, onde o coração já filtrava o ar e o pulmão bombava o sangue. E Renata, presa a uma rede de inexplicáveis, deixou-se arrastar, embalada por uma vaga longa, por vezes brusca, ou acelerada ou suave, ou redentora , fatal.
Era um homem inesperado, verdadeiro no olhar, safado, mas que amava também deixando-se amar, com uma intrigante ferrugem a luzir dourado, que não deixava perceber como é que o tempo passava por ele. Veio do nada. Mas ela para o nada o soube reencaminhar.

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