O Clipping


As editoras Mosca Morta e Choco com Tinta, numa iniciativa inédita,  inauguraram hoje um vasto e rico serviço de clipping para os escritores da sua chancela. Este serviço inovador visa antes de tudo permitir aos escritores a escolha de enredos mais consistentes e não se deixarem ultrapassar pela realidade que, como sabemos, anda mais à frente da ficção, que muitas vezes o melhor que consegue é pôr-se às cavalitas. Numa primeira fase, este serviço será totalmente gratuito, mas prevê-se que progressivamente se venham a autonomizar os módulos 'crime' e 'sexo' com a cobrança duma taxa específica para os escritores de outras editoras. De qualquer modo a adesão a este clipping seleccionado está sujeita a um rigorosos crivo pois, citando, há «banalidades que nas mãos erradas se podem transformar em calamidades e há calamidades que por desleixo se podem banalizar». Respondendo à pergunta sobre uma eventual proletarização da famosa 'angústia da influência' o gabinete de relações públicas da Mosca Morta acrescentou que os escritores são livres de se deixar ou não influenciar e estão desde logo protegidos de qualquer acusação de plágio por força dum 'acordo de adesão' especialmente concebido para este efeito, em que os escritores apenas se têm de comprometer a não invocar o clipping em vão, ou seja, a jamais o utilizarem como álibi para qualquer crítica mais azeda que recebam. Foi adiantado que está igualmente em estudo um clipping para críticos literários, composto essencialmente por notícias sobre a vida privada de escritores, que se pode revelar bastante útil para a melhor compreensão da sua obra, metáforas e restantes pecados & bastardos. Com enorme expectativa é também esperado o clipping para poetas, onde irão pontificar notícias sobre as marés, fases da lua e diversos fenómenos atmosféricos incluindo 'eclipses, auroras boreais, cometas & outras tretas que tais' conforme se pode ler no flyer de apresentação, expectativa esta ainda aumentada pela promessa de um 'sistema de alertas para novas possibilidades poéticas dum par de pernas abertas'. O título da campanha promocional escrita por Ernesto Mourão e que arrancará amanhã na Revista O Badanal é deveras eloquente: «Nós damos-lhe o mote para transformar o seu enredo num grandessíssimo plot».

Excerto de notícia publicada na Revista Mel & Fel de Abril de 2013

Diário [VII]


Com a morte da Custódia perdi a única mulher sobre a qual sabia poder ter algum controlo emocional. Desde há muito que sabia que tinha uma espécie de influência oculta nos seus sentimentos. Não me conseguia esconder nada e tinha mesmo uma certa vertigem em contar-me o que se passava no seu interior, chamando-me com piada o seu grande decifrador. Fui-me até viciando nessa capacidade e já sinto falta dos seus dilemas, de ler aqueles sinais íntimos dela, de lhe descodificar os medos, as ilusões, as inúmeras paranóias e aquele manancial estrambólico que lhe saia da imaginação às golfadas. Nunca estive movido por nenhuma curiosidade, mas temo que eu próprio me tivesse tornado dependente da dependência dela. Ninguém sabia deste tipo de relacionamento que eu tinha com a Custódia e esse segredo fazia também parte dum compromisso implícito que tínhamos os dois, era mais uma alínea daquilo que ela chamava ' a impossibilidade de nos amarmos' da qual ela tinha um orgulho peculiar, era o seu voto de castidade, uma monja d'arinto, como dizia a brincar. Nunca percebi que ela ia morrer e isso hoje aborrece-me, naturalmente, tanto mais que me fica a impressão de que me escondia qualquer coisa. Ainda tenho coladas aos ouvidos as últimas palavras que ela me sussurrou: não tenho ciúmes de nenhuma mulher, sei que nenhuma ocupará o meu lugar na tua cabeça e o teu corpo é apenas um apêndice do que me interessa de ti. Nunca o artesão foi tão instrumento como eu fui na mão dela. Deixou-me esse fardo, uma humilhação muda, que vai trabalhar em surdina até ao fim dos meus dias.

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, não datada, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

O Manifesto


Caros Concidadãos, a minha mensagem é clara: não me interessa o futuro. Esse já nem a Deus pertence. Deus começou a desinteressar-se do futuro quando viu que já há entidades reguladoras para as aberturas de águas, pragas & exorcismos, o que lhe retiraria toda a margem de manobra. Assim, meus amigos, eu estou aqui para vos apresentar a minha nova devoção: o curto prazo. O momento fugaz, o passageiro, o entra e sai, a experiência volátil, o efémero, a nuvem. Todos somos orvalho. Quero o berloque, não me interessa a colcha. O que vale um credo arrastado quando podemos ter uma jaculatória feliz. Comigo serão abolidas todas as medidas estruturais, toda e qualquer politica que arraste os seus efeitos para mais de quinze dias será imediatamente cancelada. Temos sido reféns desse nefasto paraíso que é a visão do futuro, irei libertar o país desse espartilho e servi-lo com a túnica larga daquilo que verão acontecer de seguida, inaugurarei a República do Imediato. Todo o cidadão terá direito a uma frase célebre para afastar qualquer diabo momentâneo, todo o contribuinte terá uma citação aliviadora quando entregar a declaração de impostos e ao passar duma portagem em vez do preço acenderá a luz com uma epígrafe que lhe conceda logo um resto de viagem feliz.

Nesta nova República do Imediato serão agravadas as penas para quaisquer intenções de preparação de futuro e a expressão 'gerações vindouras' apenas será permitida à entrada dos cemitérios. Quero os efeitos bem coladinhos às causas, estão proibidos cenários, pressupostos, deduções, expectativas, e a minha primeira medida será o 'Acto Rápido': o contribuinte quer, o ministro sonha, o dinheiro nasce. Acabam os Planos de Enquadramento, acabam as Perspectivas e os Acordos de Sustentabilidade, a Contingência tomará o merecido assento no Poder. Amanhã será sempre outro dia e jamais a continuação do anterior. Onde estiver um braço estará um martelo, onde estiver um martelo estará um prego, onde estiver um prego estará um alicate. Seremos apenas sequência e desprezaremos a finalidade, o destino será acaso e nunca fatalidade. Enfrentaremos a história com uma tatuagem nova no peito: 'o último não precisa sequer de apagar a luz'.

Excerto do manifesto eleitoral de Flaubert Queirós, candidato eleitoral indicado pela Ordem dos Epigrafistas às legislativas de 2014, e publicado no nº especial eleições do Correio de Bucelas

Fado [VII]










Quando juntei os ramos
daquele amor que me prometeste
e os encostei ao meu peito,
eles disseram-me:
porque sofreste
desse jeito?

Mas o meu sofrimento
é justo,
põe-me o coração apertado,
é bem feito,
devia-te ter agarrado,
preso,
cercado de espigas,
feito figas,
para só a mim me veres,
e a todos os outros esqueceres.

Minha papoila fugaz,
memória de sangue,
pode ser que me engane,
mas se não é este fado que te traz,
vou morrer a olhar para a lua,
incapaz de a abraçar,
hóstia seca, como aquela mão que já foi tua
e nem sequer te pode tocar

Refrão do 'fado da espiga' da autoria de Custódia Passos e imortalizado na voz de Tito Caneças

O Depoimento [VI]


Inspector Álvaro Simões - Constou-me que a D. Viviane tem um envolvimento emocional com o escritor Salvador Alves Arinto que também era amigo íntimo da defunta D. Custódia...

Viviane Lopes - Bem...o Salvador é aquele tipo de homem de quem todas as mulheres gostam de ser emocionalmente íntimas...

A. S. - Uma espécie de confessor laico...

V. L. - É um homem perfeito de mais para ser desejado...é tão perfeito que temos medo de o estragar (ahahah)

A. S. - Não poderia haver alguma frustração nele pelo facto da Custódia não o...o..desejar?

V. L. - Ah, nada disso, ele ama-me é a mim! (ahaha) E eu também gosto dele, mas ele é incapaz de perceber isso... A Custódia tinha por ele uma amizade gira, e por ele correspondida, era uma relação curiosa, com muita brincadeira, com aquela coisa da inteligência emocional...aí não encontra nada, Inspector.

A. S. - Sinto que está a tentar protegê-lo... Porque é que ele não consegue perceber que a Viviane gosta dele!? Isso não é nada compatível com a tal perfeição!?

V. L. - Ele é arinto mas eu sou arisca, sabe, ou seja, a minha defesa é o ataque, eu não posso dar o flanco, tenho de o manter na dúvida, este tipo homens sem dúvidas tornam-se insuportáveis, galvanizam, exploram-nos emocionalmente, não me posso dar a esse luxo.

A.S. - Mas assim corre riscos de que ele desapareça...

V.L- - Eh lá...isto é um inquérito com consultório sentimental de bónus..Inspector, você é um caso sério (ahahah)

A. S. - Estou apenas a tentar perceber que tipo de relações andaram à volta da Custódia...vejo que era uma ambiente muito...muito rico neste aspecto.

V.L. - Sim, era, e é, tudo gente com os sentimentos muito à flor da pele, uns mais cínicos, outros mais generosos, uns mais histriónicos, outros mais discretos, mas, sabe, o coração dum único homem reflecte o mundo inteiro.

A. S. - Acredito, mas não consigo acompanhar o raciocínio. Continuemos com o Sr Salvador, ele tem-se mostrado relativamente distante durante os dias que se sucederam à morte de Custódia, tem alguma explicação para isto?

V. L. - Deve ser a reacção dele ao facto...não sei...nunca o tinha observado em circunstâncias semelhantes. Olhe, no dia do enterro convidei-o a ir a minha casa e ele não quis...Fui rejeitada Inspector, vê! Isto podia dar cabo duma mulher, devastá-la mesmo (ahaha)

A.S. - Sim, poderia, mas não devastou, como se vê... parece que até fortaleceu...

V.L. - Claro, sabe porquê? Porque eu gosto do Salvador e dalguma maneira estou dependente dele. O grande problema da Custódia é que viveu para ser independente, para se bastar a si própria e isso...olhe, isso acaba por matar.

A.S. - Parece lógico e leva-nos ao suicídio, mas eu não acredito nessa tese, sabe?

V. L. - Porquê?

A.S. - Pela razão mais simples: Custódia era medrosa e  além disso estava grávida.

V.L. - Aibéguiópardon! Grávida? Está a testar-me! Não brinque com isso...E quem era o pai?

A.S. - Já faltou mais para ter os resultados dos testes...tem algum palpite?

V.L. - Ainda estou zonza... só me disse isso agora? Quem é que sabe?

A.S. - Foi o Salvador que nos disse que suspeitava disso e foi confirmado na autópsia.

V.L. - E o Salvador é que lhe disse?! E anda tudo fechado em copas?

A.S. - Há sempre que aproveitar as capacidades dos homens perfeitos, sabem coisas que mais ninguém sabe.

Transcrição do depoimento de Viviane Lopes, recolhido pelo inspector Álvaro Simões, um mês depois da morte de Custódia Passos, e publicado no Boletim Mensal do Investigador

O Retrato Robot



Retrato Robot da pilinha de Flávio Cossaco conforme a última vez que foi vista por Viviane Lopes no dia de Reis de 2013, publicada no Boletim do Investigador

A campanha

À semelhança dos funerais à Benfica, que têm recolhido imenso sucesso, a conhecida cadeia alemã de supermercados Lidl instituiu os Casamentos à Laridlas. Assim, por cada noivo que leve para a noite de núpcias um preservativo lidl será atribuído um mini-cabaz com 1 kg de arroz basmati, 250 gr de pistachio, 500 gr de margarina e uma caixa de filipinos ou donuts (consoante o calibre dos noivos). Se o pacote escolhido for o de nível II (preservativo e cueca com símbolo) o cabaz incluirá também 500 gr de medalhões de corvina, uma embalagem de fiambre da perna fino, dois queijos fourme d'ambert e três courgettes para as emergências. Ao ter escolhido o pacote Casamento óLaridlolela ( preservativo, cueca e algema Lidl) os noivos terão direito a um super-cabaz que conterá adicionalmente 5 embalagens de twix, uma esfregona, duas almofadas anatómicas para joelhos e 250 gr de coentros. O pacote super-luxo (para os casos em que as cavalheiros de honor levam um placar dizendo 'quem não casa nem é laridlas nem nada' ) inclui ainda uma réplica da pilinha de Flávio Cossaco em ónix polido, apresentada em caixa de raiz de nogueira forrada a veludo carmim.

Resumo de campanha publicitária, da autoria de Flaubert Queirós , por encomenda de uma conhecida cadeia de supermercados, e publicada pelo Anuário do Epigrafista.

Fado [VI]


voltaste com o sol
minha luminária de maio
que prendes sem anzol
com a força d'um raio

louca de luz
é a minha esperança
que só a ti conduz
como uma estrela que dança

como um pavio que incendeia
uma fogueira vaidosa
com o amor que a rodeia
num abraço, num poema, numa prosa


Refrão do Fado 'Candeia' da autoria de Custódia Passos e imortalizado na voz de Lucrécia do Sado

Crítica gastronómica

Onde estaríamos à espera de encontrar uma vivenda construída de aproveitamentos e resultante de sucessivas adaptações, enfiada num aglomerado de desconexos edifícios, viemos encontrar uma verdadeira preciosidade saloia, em que a dimensão apreciável das salas (três) não lhes retira o conforto e o acolhimento mais típico dum restaurante que estivesse incrustado numa colina de charme alpino. No entanto, a Churrascaria Meireles não renuncia ao seu estatuto de casa popular: está ali para servir todos, desde que venham por bem, comer. O aspecto cuidado das mesas postas anuncia-nos imediatamente que popular não é sinónimo de desleixado, e muito menos de miserável, e que ali podemos contar com aquele respeito e consideração que faz cada cliente sentir-se um monarca antes da Bastilha ter sido tomada.
As entradas fogem imediatamente dos estereótipos e fomos brindados com uns pasteis de bacalhau que, não fora terem-nos deslizado imediatamente pela boca adentro, ainda agora estaríamos deslumbrados a apreciar-lhes a forma que seria digna de figurar em qualquer calendário pirelli. O 'pastéis maminha', como são chamados, consta terem sido inspirados nos atributos voluptuosos da escritora Simone Bolina, assídua frequentadora da Churrascaria antes da morte trágica de Custódia Passos. As inesperadas vieiras em molho de escabeche que nos foram servidas de seguida - numa faiança azul marinho especialmente desenhada para a churrascaria e que nos traz o mar à mesa sem sequer sentirmos falta do barulho das ondas - revelaram um cuidado e sofisticação que, por momentos, conseguiram fazer de Loures uma espécie de san sebastian dos pequeninos, uma luxúria saloia, em que até uma mera alface picada com cebola pareceu ter descido num vasinho acompanhado por dois anjos vestidos de couve-flor.
Seguiu-se um frango frito, certamente engordado num aviário da zona, mas que teria andado a comer especiarias trazidas por ninfas de capoeira, tal o sabor requintado e aveludado que desembocou nas nossas papilas, fazendo dos garfos autênticos descendentes de caravelas.
De sobremesa foi inevitável termos passado os beiços pelo Pudim Mourão, uma mistura de bavaroise com flan, que se chama assim por ter resultado dum capricho do escritor Ernesto Mourão, que um dia terá reclamado do pudim do dia, chamando-lhe uma «bavardice inflanada mas que até nem sabe nada mal». Terminámos contudo com o mil folhas da casa, um clássico, e a verdadeira razão secreta da nossa ida ao Meireles, tirando, claro está, a romaria ao local de culto em que se tornou a mesa em que Custódia Passos bebeu a sua última cerveja com sprite.

Excerto da coluna de gastronomia 'Os Mil e um Folhados', assinada por Bijagó Almaço (que se julga ser um pseudónimo de Raimundo Múrcia) na revista O Badanal, e dedicada à Churrascaria Meireles em Loures.

A Unidose


Na semana passada as sapatarias Laurentino fizeram uma promoção singular: por cada sapato esquerdo ofereciam o direito. Desde que o comércio nacional foi compelido à oferta generalizada dos seus produtos em regime de unidose, que as mangas das camisas são facturadas à parte e as sapatarias ficaram obrigadas a vender em separado cada unidade de sapatos. O que parecia ser uma operação de marketing bizarro acabou por se saldar numa jogada de sucesso para as sapatarias Laurentino, e julgo até que para a semana a Super Bock vai lançar a primeira imperial apenas com espuma com a marca 'Mustacha' e a metade do preço. Esta crise tem agilizado a imaginação nacional e inclusivamente a televisão pública já franchizou as orelhas de Rodrigues dos Santos - as rodriguelhas - que agora podem ser utilizadas pelos mais diversos pivots pelo mundo inteiro para proveito e gáudio dos espectadores. Somos hoje uma economia de vanguarda, onde o preço de quem vende deixou de ser um custo para quem compra, o que interessa é o espírito da coisa, a nossa reinvenção do zeitgeist, a que o escritor Ernesto Mourão já chamou de oazeitégás, querendo demonstrar que para um português nos dias que correm nada se deve desperdiçar e se já sabíamos que se quem mais chora menos mija, agora também se aplicará o: quem mais tempera menos bufa. Não é por isso de estranhar que, no último mês, o produto fabricado em Portugal que mais contribuiu para as nossas exportações, depois do WV Sharan, tenha sido a caneca das caldas com a pilinha do nosso Cossaco (os tin-tins são vendidos como equipamento extra), desaparecida em circunstâncias ainda por apurar aquando do falecimento da escritora Custódia Passos, provando-se assim que somos um povo que se habituou a foder com aquilo que tem mais à mão. Um país do caneco.

Excerto da Crónica Mensal de Julio Paisana (sob o pseudónimo de Bernardo Marujo Cidreira), Essa é que é essa, publicada no número especial dos santos populares de 2014, de  O Badanal

Diário [VI]

Acabei de chegar do enterro da Custódia. Foi um misto de acontecimento social e de exaltação do movimento espírita. Por um lado todos falavam como se ela estivesse ali presente e por outro cada um tratava da sua imagem, das suas relações, da sua vidinha. Inesperadamente, num dos momentos mais delicados da cerimónia, a Viviane deu-me a mão, deixando-me sem respiração, e que quase passou a asfixia quando me beijou num local onde geralmente começam as grande paixões, aquela zona que não é lábio, não é bochecha, não é queixo... se calhar é apenas um beijo de velório e eu é que sou um ingénuo e vejo paixão onde apenas há cerimónia ou até coloquialidade. Curiosamente ninguém se referia às circunstâncias da morte da Custódia, quase como se todos fossem dalguma forma cúmplices, ou como se já soubessem que iria acabar assim: estranha, súbita mas planeada, dolorosa mas aliviante, não sei, quase uma morte programática. Lembro-me agora do que ela me escreveu na dedicatória do seu último livro: «Tara ti, amor, que serás sempre o meu primeiro e o meu último salvador». Uma dedicatória que daria algum brado se não fosse da Custódia, a quem todos já tinham ouvido dizer que eu era o grande amor da vida dela mas que estava escrito na estrelas que nunca o saberíamos reconhecer. Mas ela dizia tantas coisas. Se calhar até foi por isso que a Viviane me beijou, o ciúme é o maior troféu do amor, diga-se o que se disser, a prova perfeita, a exaltação máxima, mas também «a dor cruel duma paixão» como eu ouvia há pouco no rádio do carro o João Gilberto a cantar. Apesar de todas as atenções estarem viradas para o Raimundo e o Ernesto estes comportaram-se com uma dignidade quase protocolar, sob os olhares da Simone, que parecia uma mestre de cerimónias, e que a certa altura me disse ao ouvido: «sabes que eu tenho uma carta dela para ti». Pode ser apenas um daqueles truques de suspense tão próprios da Simone, mas não sei, alguma curiosidade não me abandona desde esse momento. Deixei a Viviane em casa e ela pediu-me para subir e ficar com ela um bocado, mas estupidamente disse que tinha uma reunião qualquer. Eu às vezes sou estúpido. Muito estúpido.

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Janeiro de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

Fado [V]


O meu trabalho é amar-te
escondido na minha oficina
fria, sombria,

cheia de ferramentas inúteis,
incapazes de te trazer até mim.
Trabalho tão ruim
que me levas os dedos e os anéis,

deixando-me insolvente e derrotado,
a constatar ser apenas passado,
medalha, palha.

Refrão do Fado do Explorado de Amor da autoria de Custódia Passos e imortalizado na voz de Lúcia Camomila.