Diário [VI]

Acabei de chegar do enterro da Custódia. Foi um misto de acontecimento social e de exaltação do movimento espírita. Por um lado todos falavam como se ela estivesse ali presente e por outro cada um tratava da sua imagem, das suas relações, da sua vidinha. Inesperadamente, num dos momentos mais delicados da cerimónia, a Viviane deu-me a mão, deixando-me sem respiração, e que quase passou a asfixia quando me beijou num local onde geralmente começam as grande paixões, aquela zona que não é lábio, não é bochecha, não é queixo... se calhar é apenas um beijo de velório e eu é que sou um ingénuo e vejo paixão onde apenas há cerimónia ou até coloquialidade. Curiosamente ninguém se referia às circunstâncias da morte da Custódia, quase como se todos fossem dalguma forma cúmplices, ou como se já soubessem que iria acabar assim: estranha, súbita mas planeada, dolorosa mas aliviante, não sei, quase uma morte programática. Lembro-me agora do que ela me escreveu na dedicatória do seu último livro: «Tara ti, amor, que serás sempre o meu primeiro e o meu último salvador». Uma dedicatória que daria algum brado se não fosse da Custódia, a quem todos já tinham ouvido dizer que eu era o grande amor da vida dela mas que estava escrito na estrelas que nunca o saberíamos reconhecer. Mas ela dizia tantas coisas. Se calhar até foi por isso que a Viviane me beijou, o ciúme é o maior troféu do amor, diga-se o que se disser, a prova perfeita, a exaltação máxima, mas também «a dor cruel duma paixão» como eu ouvia há pouco no rádio do carro o João Gilberto a cantar. Apesar de todas as atenções estarem viradas para o Raimundo e o Ernesto estes comportaram-se com uma dignidade quase protocolar, sob os olhares da Simone, que parecia uma mestre de cerimónias, e que a certa altura me disse ao ouvido: «sabes que eu tenho uma carta dela para ti». Pode ser apenas um daqueles truques de suspense tão próprios da Simone, mas não sei, alguma curiosidade não me abandona desde esse momento. Deixei a Viviane em casa e ela pediu-me para subir e ficar com ela um bocado, mas estupidamente disse que tinha uma reunião qualquer. Eu às vezes sou estúpido. Muito estúpido.

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, entrada de Janeiro de 2013, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

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