Diário [VII]


Com a morte da Custódia perdi a única mulher sobre a qual sabia poder ter algum controlo emocional. Desde há muito que sabia que tinha uma espécie de influência oculta nos seus sentimentos. Não me conseguia esconder nada e tinha mesmo uma certa vertigem em contar-me o que se passava no seu interior, chamando-me com piada o seu grande decifrador. Fui-me até viciando nessa capacidade e já sinto falta dos seus dilemas, de ler aqueles sinais íntimos dela, de lhe descodificar os medos, as ilusões, as inúmeras paranóias e aquele manancial estrambólico que lhe saia da imaginação às golfadas. Nunca estive movido por nenhuma curiosidade, mas temo que eu próprio me tivesse tornado dependente da dependência dela. Ninguém sabia deste tipo de relacionamento que eu tinha com a Custódia e esse segredo fazia também parte dum compromisso implícito que tínhamos os dois, era mais uma alínea daquilo que ela chamava ' a impossibilidade de nos amarmos' da qual ela tinha um orgulho peculiar, era o seu voto de castidade, uma monja d'arinto, como dizia a brincar. Nunca percebi que ela ia morrer e isso hoje aborrece-me, naturalmente, tanto mais que me fica a impressão de que me escondia qualquer coisa. Ainda tenho coladas aos ouvidos as últimas palavras que ela me sussurrou: não tenho ciúmes de nenhuma mulher, sei que nenhuma ocupará o meu lugar na tua cabeça e o teu corpo é apenas um apêndice do que me interessa de ti. Nunca o artesão foi tão instrumento como eu fui na mão dela. Deixou-me esse fardo, uma humilhação muda, que vai trabalhar em surdina até ao fim dos meus dias.

Excerto do Diário de Salvador Alves Arinto, não datada, apresentado em pré-publicação em Maio de 2015 no Agregador Cultural Sigma

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