Com a morte da Custódia perdi a
única mulher sobre a qual sabia poder ter algum controlo emocional. Desde há
muito que sabia que tinha uma espécie de influência oculta nos seus
sentimentos. Não me conseguia esconder nada e tinha mesmo uma certa vertigem em
contar-me o que se passava no seu interior, chamando-me com piada o seu grande
decifrador. Fui-me até viciando nessa capacidade e já sinto falta dos seus
dilemas, de ler aqueles sinais íntimos dela, de lhe descodificar os medos, as
ilusões, as inúmeras paranóias e aquele manancial estrambólico que lhe saia da
imaginação às golfadas. Nunca estive movido por nenhuma curiosidade, mas temo
que eu próprio me tivesse tornado dependente da dependência dela. Ninguém sabia
deste tipo de relacionamento que eu tinha com a Custódia e esse segredo fazia
também parte dum compromisso implícito que tínhamos os dois, era mais uma
alínea daquilo que ela chamava ' a impossibilidade de nos amarmos' da qual ela
tinha um orgulho peculiar, era o seu voto de castidade, uma monja d'arinto,
como dizia a brincar. Nunca percebi que ela ia morrer
e isso hoje aborrece-me, naturalmente, tanto mais que me fica a impressão de
que me escondia qualquer coisa. Ainda tenho coladas aos ouvidos as últimas
palavras que ela me sussurrou: não tenho ciúmes de nenhuma mulher, sei que nenhuma
ocupará o meu lugar na tua cabeça e o teu corpo é apenas um apêndice do que me
interessa de ti. Nunca o artesão foi tão instrumento como eu fui na mão dela. Deixou-me
esse fardo, uma humilhação muda, que vai trabalhar em surdina até ao fim dos
meus dias.
Excerto do Diário
de Salvador Alves Arinto, não datada, apresentado em pré-publicação em Maio de
2015 no Agregador Cultural Sigma
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