We are the world

Jamais este blog poderia ficar indiferente aos avanços da Esmeraldísica, a ciência que estuda os ‘supremos interesses das crianças’.

O dicionário não ilustrado (1303 a 1311 ) faz então hoje a categorização essencial, numa espécie de aristotelismo da paternidade.

Reims, pormenor da Catedral de

Pais biológicos – somos óbvios elos duma cadeia de esperma, que delicadamente apelidamos de sangue, e, mesmo que nalguns casos se tenham intrometido o leiteiro ou o homem da tv cabo, afinal todos nos apresentamos banhados por um qualquer óleo de linhagem. O que pouparmos no adn acabamos por gastar na graxa.

Pais afectivos – a noção de sentimento é muito importante para a espécie, e sem ele poderíamos resumir-nos a um cocktail de azias e flatulências. Uns pais que se sentem são condição para que o imprescindível e estruturante remorso futuro esteja garantido.

Pais adoptivos – Sabermo-nos filhos também duma verdadeira vontade burocrática e não apenas duma mera tesão deveria engrandecer o nosso carácter. Todos deveríamos ser pelo menos uma vez adoptados na vida para experimentar o que era escolherem-nos apenas pelo que não somos e exclusivamente pelo que querem fazer de nós.

Pais ideológicos – sendo a ideologia uma das maiores conquistas da espécie depois do shampoo com amaciador, propiciando-lhe periódicas lavagens terapêuticas ao cérebro, seria arriscado deixá-lo nas mãos duma mulher-a-dias sem pedigree.

Pais espirituais – toda a crença acarinha uma genealogia sob pena de nos moldarmos em fés de barro. E como à saída duma básica espiritualidade paternalista, facilmente damos de caras com elaborados racionalismos de filhos da puta, um pai de fé é uma razoável oportunidade para uma civilização de lares e orfanatagens. Toda a autoridade legítima do pensamento é um subproduto da religiosidade.

Pais responsáveis – tipo de paisagem, perdão, paternidade, que serve para decorar, e assim dar aquela sensação de dever cumprido, realização pessoal e integração dentro do gang. Inclui idas a festas de escola ver números de ballet ou judo como se fossem paraolímpicos , levantamento de papagaios, fazer conversa com mães em estado camomilo-perturbado e, passados alguns anos, entrega da mioleira à ciência ou ao talho.

Pais de galinheiro – comummente encontrados em associação ao conceito de ‘mãe-galinha’, constituem um sub-grupo que se fundamenta nos mitos do poleiro, da choca, e da raposa. Numa alternativa bastante saudável ao Édipo, o Espírito de Galinheiro consolida-se em torno do apriorismo semi-kantiano: antes um pinto bem chocado que uma omeleta queimada.


Pais metafóricos – é o conceito mais rico, e está condensado na expressão «foi um pai para mim». Como qualquer figura de estilo vale essencialmente pelas emoções que proporciona e, mesmo retirados os constrangimentos freudianos, o vaivém entre uma paternidade lírica e uma paternidade simbólica garante uma rica e variada gama de frustrações e empolgamentos.


Temos então que a genética, o sentimento, a lei, a utopia, a crença, a moral e o símbolo convivem e competem entre si (harmoniosa ou desarmoniosamente, conforme a perspectiva) desde que o homem é homem, que é o mesmo que dizer, desde que o gato e o rato são gato e rato.

Algo, de facto, inesperadamente, pode aproximar o cristianismo de alguns cepticismos ateus: «nenhuma ‘corrente indissolúvel’ liga o conhecimento, a virtude e a felicidade» (*). Ou seja, está por provar que um euromilhões na mão não vale mais do que dois pais a voar. E vice-versa.


(*) frase de John Gray em ‘Al Qaeda e o significado de ser moderno’

Desmaker Consulting Group

O único cluster em que Portugal pode verdadeiramente apostar e desenvolver com fortes probabilidades de sucesso é o ‘cluster religioso’.

Fazer negócio estruturado à conta do ‘sentimento religioso’ é, antes de tudo, algo até bastante louvável, preserva-o inclusive das nefastas manifestações de espiritualidade desenfreada, mas deve ser feito com profissionalismo e rigor, respeito pelo cliente e pelo produto. O sentimento, a persuasão, ou a convicção religiosa existem, estão aí, são tão humanas como a fome ou o cheiro e merecem a mesma devida atenção do mundo dos negócios e das artes e ofícios em geral.

Sucinta e graciosamente para quem quiser aproveitar, há que tomar em atenção os seguintes aspectos:

Grupo (mercado alvo) de significativa dimensão e homogéneo - Ao contrário de outros, como por exemplo os automobilistas ou os lampiões, que são claramente grupos heterogéneos, ou doutros, tipo os monhés ou os paneleiros, que se apresentam com muito mais tiques segregacionistas e minoritários, o vasto sortido de crentes representa uma fatia significativa da população, com costumes, ou meras práticas mais ou menos esporádicas, consolidadamente estáveis e comuns. Para além disso, entre o cristão doméstico e o cristão de exportação existem mais pontos de confluência do que, por exemplo, entre o português com caspa e o alemão com caspa, e esta maior uniformidade de interesses ou necessidades tem um valor comercial inestimável.

Mercado com hábitos de consumo rotinados e diversificados – Produtos simples como missais, terços, bíblias, imagens, velas, entre muitos outros intimamente relacionados com o exercício passivo ou activo da piedade, são exemplos maduros de utilização corrente mas, para além disso, este mercado demonstra disponibilidade e mobilização para novos produtos (músicas do padre borga, tshirts do César das Neves, e até, apesar de situadas na franja da ‘porcalhice’, uma ou outra lingerie púrpura ou azul celeste). Poucas áreas da vida humana poderão apresentar um espectro tão largo em torno dum foco simultaneamente tão forte.

Uma marca com notoriedade mundial – ‘Fátima’ é incontestavelmente a maior, mais global e perene marca do País, e funciona tanto de forma explícita, (motivando a presença, a visita) como implícita (motivando a curiosidade periférica sobre o fenómeno). A franchização da marca está toda por fazer, e repare-se: uma terraplanagem e uma azinheira não me parecem custos exagerados de instalação.

A posse exclusiva dm recurso absolutamente escasso - O aparecimento de N. Srª em território nacional, para além de ser algo que quase mais ninguém possui, tem a característica curiosa de nunca se esgotar, nem precisar de se investir mais na sua exploração, ou seja, apareceu: está aparecida! Não é preciso furar mais nada, nem picar rocha, nem peneirar, nem inventar algoritmos novos, nem enfiar pastores em aceleradores de partículas.

Boa adaptabilidade da língua no consumo do produto - Vejamos, a título exemplificativo, um sueco pode perfeitamente ouvir uma ladainha recitada no português de Vital Moreira e acompanhá-la com um sorriso próximo daquele que teria se Nossa Senhora in persona lhe estivesse a cantar uma música dos Abba aos ouvidos. O bichanar em português tem a força clássica duma língua morta e a frescura moderna dum rapper do Bronx. Por exemplo, um terço rezado por aquela moça Inês Meneses da Radar venderia, sem espinhas, bastante mais do que o último disco dos Animal Collective ou dos Vetiver.

A religião é a dimensão humana que melhor se adapta às novas tecnologias – Desde o homem biónico até à beata que apenas lava o cabelo na Páscoa, todos olham para Deus como algo que ora está entranhado no corpo, ora vagueia mais ou menos diafanamente entre as catacumbas da imaginação e estratosfera da virtualidade. A transcendência é o sujeito cibernético por excelência.

Poucas deseconomias sociais – Tirando um ou outro clérigo deslumbrado com os prazeres da alcatra macia, o exercício do negócio do religioso não apresenta significativos desequilíbrios na historicamente delicada relação de trabalho. A hora extra pode ser entendida como penitência, a precaridade pode ser assimilada como entrega nas mãos de Deus, e o trabalho infantil (sem prejuízo da ressalva inicial) pode ser encarado, com ternura, como catequese. Inclusivamente, por exemplo, as contas dum terço, enfiadas uma a uma, depois do jantar, por uma criança que já fez os trabalhos de casa, serão com toda a certeza valorizados suplementarmente. O processo de aquisição do pechisbeque religioso é gerido tanto pelo hipófise como pelo cagaço do inferno.

Julgo que é suficiente. Está todo o trabalho por fazer. O produto religioso está pulverizado por agentes pouco especializados, com horizontes fechados, gerido entre a carolice e o mero aproveitamento de oportunidades confinadas e limitadas. Há claramente espaço para o aparecimento, com sucesso, duma Leya das via-sacras, do missal e do escapulário. Há que dar uma nova e mais estruturada oportunidade às parábolas do reino.

But the Regabofe d’Or goes to

«Há pessoas complicadas que não sabem o que querem, eu sei o que quero (…) quero pessoas complicadas que não sabem o que querem»

The winner of the best engate phrase of the decade. Podendo haver também aqui explicitada alguma problemática do ego, há em simultâneo a sua sublimação. Resultando na – rara, diga-se – superação da problemática do ego, ou seja: ‘tudo bem desde que eu queira’, uma espécie de Nietzsche da 3ª geração. Então libertados da genealogia da moral, logo libertados da genealogia do gosto, doravante libertados da tirania da correspondência.
O mundo não será nem dos insatisfeitos nem dos resignados: o gozo da incerteza is the last frontier.

Luna Park

«Há aqui uma problemática do ego»

Oliveira e Costa, comissão de inquérito parlamentar, Assembleia da República, Maio 2009

Ainda não é bem um post sobre sexo

O meu sonho era viver um tudo de nada dilacerado. Mas não consigo. Quando parece que estou quase lá aparece logo qualquer coisa prosaica, desde queijinhos frescos à ‘world of interiors’, que me afasta sem glória e me reduz à condição de normalopata. E qualquer coisa me serviria. Tentei dilacerar com a miséria em geral, com as mães solteiras, animais feridos, famílias desagregadas, conflitos norte-sul, ondas migratórias, inclusivamente cheguei a estar lá perto pensando fixamente em potenciais desgraças relacionadas com decadências morais, mas, é oficial: não dilacero assim.
Dizem que a alma devidamente cristianizada está mais apta a desconfiar de si própria e das outras e sou levado a acreditar no sofisticado fenómeno. Desprovido de ilusões sobre a natureza que a acolheu [uma espécie de contentor kleiniano], a alma cristianizada vive, contudo, de e numa convicção de possibilidade de melhoria constante ou intermitente, antecipando umas soit disant normas ISO (instability soul organization) adaptadas à sua condição de ‘meio degredo/meio éden’, e sempre olhadas pelo Grande Auditor com um misto de glória e compaixão. A ‘melhoria’ cristã foi o primeiro paso doble da humanidade.
O cristianismo inventou assim o progressismo, mas julgando estar simplesmente a enviar pescadores para o coliseu, e tratando de elevar a resignação activa ao estatuto de política ecológica da alma.
Além disso, as sensações de pecado e redenção estão para a alma cristianizada como dentro duma – também prosaica – relação amorosa estão as sensações de ‘fiz merda’ e ‘desta safei-me’. Ou seja, a alma cristianizada combina com alguma eficácia – e surpreendente equilíbrio – vertigens contrárias (o abismo da existência e do amor não correspondido a par do empolgamento da salvação e do amor correspondido) sem necessitar nem de especiais aditivos éticos, nem de nenhum banho de conservantes filosóficos (independentemente de um ou outro shot de bourbon ou de valeriana): basta-lhe aquela cristã e cristalina noção de que a condição humana dentro de todas as misérias é a mais asseada.
É evidente que o cristianismo carrega uma sobranceria ontológica, transporta orgulhosamente a verdade revelada, ora num altar, ora numa padiola, mas, convenhamos, aquela coisa do ‘amai-vos uns aos outros’ dá pica, não dá?

Desmaker está com Marinho Pinto. Por amor ao espectáculo.

Um homem semi-coxo e solitário. Escolheu, há uns anos, ganhando notoriedade, um discurso de arremesso aos chamados interesses instalados, dando a imagem de que dizia o que todos os outros, por conveniência, comodidade, ou bom feitio, calavam – designadamente pondo o dedo no estatuto fascisoide da figura do juiz. Como a fauna e flora dos advogados também alargou o seu espectro (proletarizou-se) acabou por ser eleito para a tal de Ordem, como um forcado a ser escolhido para o seu grupo. Foi entretanto pisando riscos, perdendo o controle do boneco, continuando a chamar a atenção nos limites do único estilo para o qual parece treinado, misturando o certo e o errado, a provocação e o arrojo, de tal maneira que fez, no recente folclore de climax mediático, com que MMG parecesse uma carmelita saída duma missa de apoio ao banco alimentar.
Apesar do aparente fretismo (a Sócrates) de Marinho, a onda de ‘apoio’ a Manela é um autêntico borregamento mental; Marinho, no pleno uso dos seus direitos de bobo com estudos, quis criar o seu momento, fazer notícia com as próprias mãos, quis estar na arena e ir experimentando todos os lados do espectáculo. A justiça (romano-germânica), como sabemos – e agora é sabedoria generalizada – está pendurada num conceito por ela cirurgicamente criado e decorado que é ‘a prova’. É esta instituição caprichosa que a alimenta; por isso é ela a grande responsável pela sua saúde e pela sua doença, baptizados e funerais incluídos. Marinho (e no fundo as MMG de turno também) é o seu trombone. De maestros já sabíamos que estávamos mal servidos e cansados; por isso, de vez em quando distraímo-nos com os trombones. Mas, no fundo, à tardinha, todos queremos regressar aos violinos.

[rescaldo do fantástico vídeo MMG vs MP]

sergio & odair



para a m.eia dúzia.

Conhecimento do Mundo

54,3% dos homens preferem gambas fritas a conquilhas de S. Jacques, no entanto, 38,4% das mulheres pensam que Freud foi abusado em criança por uma tia avó, o que não invalida que apenas 8,7% dos homens façam schllap depois de terminarem um sonho erótico com a Sónia Braga, nem que 34,6% pensem que a guerra fria foi uma invenção da Whirpool. Deve ser destacado que 70%, certinhos, dos homens gostariam de jantar um dia com Kafka desde que fosse ele a pagar a conta e esta estivesse aldrabada. Por outro lado 86,7% das mulheres gostam de homens que não as enjoem com o seus problemas, o que faz concluir que apenas 13,3 % dos homens têm realmente problemas de virilha assada, mas inesperadamente 56,2% dos homens adoptariam o sistema de castas desde que pudessem escolher a sua. Chico Buarque é considerado um homem perfeito por 85,8 % das mulheres frígidas, contudo, 34,7% dos homens pensa que foi mme Curie que inventou as águas termais e 38,7% das mulheres pensa que câncio é uma marca de anticonceptivos. Não podemos passar indiferentes a que 79,1% dos homens preferiria uma foda rápida a um LP da Marianne Faithfull, se bem que uns significativos 43,7% dos homens gostariam que as suas filhas fossem freiras, desde que não na Irlanda. Se considerarmos que 46,6% das mulheres acham que a música de Haydn é boa para o engate, não deixa de ser intrigante que apenas 6,7% dos homens confirmem que quiseram ser carpinteiros depois de ler a Bíblia. Um em cada três existencialistas encartados reconhece já ter tido sexo consigo próprio, se bem que 40,1% das mulheres já teve como objectivo na vida ser apreciada pela sua tarte de amêndoas. E se não estranha que apenas 7,9% dos homens que leram Kierkegaard já tenham pintado rodapés, podemos considerar inesperado que apenas 2,6% das mulheres apreciem homens que declamem Pushkine ao som dos Cocteau twins. Não fora 77,5% dos homens considerarem Rafael superior a Rembrant e ficaríamos estupefactos ao saber que apenas 31,2% das mulheres considera o encarnado uma cor decente para as unhas dos pés, se bem que 46,6% dos homens prefere SG ventil a Partagas, para já não referir que 39,8% dos homens afirma que um jantar à luz das velas é pernicioso para a vesícula. Constata-se também que 37,6% dos homens considera a luta de classes resultado dos problemas de furúnculos de Marx, enquanto 29,9% das mulheres julga que Aleph era o nome dum cão de Borges, sendo que, surpresa das surpresas, 64,1% das mulheres preferiria o conselho dum padre ao de um estilista especializado em cai-cai’s. O mundo é, para 54,3% dos homens, a congeminação duma mente feminina, enquanto que a mente feminina é, para 29,7% deles, uma caixa registadora. Se apenas 14,1% das mulheres consideraria a hipótese de beijar apaixonadamente um homem que não amasse, não deixa de ser menos verdade que 27,3% dos homens considera Newton o responsável pela queda das torres gémeas, já para não falar de que 56,9% dos homens considera que Deus pode perfeitamente ter-se precipitado ao afastar as águas para Moisés passar. Se esquecermos que apenas 18,7% das mulheres trocaria o seu mais-que-tudo por um herói grego que tenha entrado na guerra de Tróia a suplente, convém não olvidarmos que 27,8% dos potenciais eleitores ainda não conseguiram ver o pescoço de Paulo Rangel. O big-bang foi inventado pela Blécandéquer para 27,8% dos homens, mas 73% pensa que a sua costela teria sido preferível à de Adão. 97% das pessoas que vieram a este blog nunca mais voltaram, e 79% trocaram mesmo de servidor de internet.

Escala de Farmer

O dicionário não ilustrado ( 1289 a 1306) apresenta hoje em primeira mão e exclusivo a definitiva Escala de Farmer. A Escala de Farmer é uma espécie de meta-escala de mohs, e quantifica o nível de desgaste que se pode infringir a almas duras mas no fundo muito sensíveis. Foi criada em 1858 por uma hipnotizadora alemã de seu nome Johanna Farmer, quando esta por acaso se enganou e deixou a avó hipnotizada enquanto fervia o leite. Foi condenada a trabalhos forçados durante 35 anos, cumpridos a dactilografar receitas de caranguejo na grelha.

Nível (1) ‘Insinuar’ – Trata-se dum desgaste muito simples que pode ser perfeitamente antidotado com um vulgar ‘vai ver se chove’.

Nível (2) ‘Maçar’ – Este segundo nível apresenta já alguma consistência, mas é ainda facilmente rechaçado com uma série de humm’s, ou mesmo aplicando um ar de enjoo, com ou sem franzidela de nariz

Nível (3) ‘Confundir’ – É um nível intermédio, geralmente o desgaste dá-se pela via d’«o que é que este gajo quer dizer com isto», e frequentemente é resolvido com um clássico «não tens mais nada com que te ocupar?», mas já foram registados casos em que foi preciso aplicar um seco «não tenho tempo para disparates sem sentido».

Nível (4) ‘Picar’ – É um dos valores da escala mais críticos. Mesmo sem uma carga afectiva ou ética explícita, os níveis de ironia podem apresentar-se elevados e provocam imprevisíveis danos na alma dura mas sensível. O trabalho de protecção mais bem sucedido desenvolve-se com indicações de que ‘o risco está a ser pisado’ e de que para lá do risco pode ser o deserto em patins.

Nível (5) ‘Criticar’ – Entramos nos níveis mais agressivos da escala. Neste, o ataque começa a fazer uso de pressupostos peri-moralizantes e, muitas vezes, de enquadramentos culturais ou astrológicos. A resistência a este tipo de desgaste já tem de se socorrer de baterias de técnicas de amuo ou birra, mesmo que ainda camufladas de hermetismo ou mistério.

Nível (6) ‘Massacrar’ – Trata-se dum nível de desgaste muito acentuado. Todas as medidas de protecção têm de começar a ser activadas, e a ameaça de evacuação deve ser inequivocamente explicitada. Devem ser evitadas as metáforas e o uso da frase seca e curta é essencial. O monossílabo é mesmo aconselhado.

Nível (7) ‘Recriminar’ – Último grau da escala de desgaste. É quase como que fazer um churrasquinho do cordeiro pascal utilizando as tábuas da lei. Pressupõe uma agressividade que faz apelo aos constituintes mais básicos da alma, numa operação de cirúrgico escarafunchanço. O antídoto mais aconselhado, mas sem garantia integral de sucesso, é a combinação sistemática das medidas de evacuação, monossílabo e, helás, o enunciado da diversidade humana como primado da espécie. O sussurro dum «como é possível eu aturar este gajo, tendo tanta gente interessante com quem conviver» costuma ser uma estocada praticamente infalível.

Memórias do dr Betonilha. A técnica.

Apesar do forte valor conceptual dos, já citados, casos de políticos atormentados pelas grandes decisões, as almas que forneciam maior riqueza e diversidade terapêutico/penitencial eram os políticos em busca de remorso. O remorso politico é da mesma natureza que o remorso do carteirista: é tão genuíno quanto genuíno é o saldo bancário. Ou seja, raramente se observa melhor remorso do que no politico que sente que governou reflexivamente. Nestes registos, o perdão é recebido com um alívio que em geral proporciona terapias de tranquilidade muito gratificantes. O dr. Betonilha denominou-os então de ‘psicoratas’, verdadeiros roedores da psique que, após tomarem consciência dos buracos que fizeram no queijo comum, se prestam a doar tostas largas até morrer. São as clássicas terapias de compensação que, na sua combinação em regime de argamassa, resultam em verdadeiras indulgências da psique.
A comunidade eclesiástica de s. Sebastião da Pedreira (liderada pelo padre Farinha) acompanhava então a evolução do penitente rebanho com alegria e esperança, o dr Betonilha facturava 200 euros por cada sessão de laqueamento de culpas, e Miriam, de busto empolgado, espojava-se nas revistas de sociedade. Agostinho e Sigmund, respectivamente, santo africano e judeu amante de charutos, ufanavam-se do dever cumprido junto de outros vultos esquecidos da humanidade. Por cada alma limpinha, mas ainda em riscos de sofrimento, apresentada pela equipa confessional de D. Farinha, o consultório do dr Betonilha transformava-se numa verdadeira ETAR para inconscientes ainda com rotinas chantagistas: depois de filtrado o remorso nas areias (passo o trocadilho) da sublimação, era devidamente atacado pelos agentes biológicos da neurose de transferência e finalmente as lamas do sintoma de culpa eram despejadas na caixa de esmolas, ou num livro de memórias apresentado e aspergido por qualquer Rebelo de Sousa de turno. Num caso ou outro mais renitente Miriam poderia fazer de bacia de retenção. De desabafos apócrifos, entenda-se.

[nota técnica: espero bem que não haja nenhum padre Farinha na igreja de s. sebastião da pedreira]

Memórias do dr Betonilha. As fórmulas.

Todos os fins de tarde o prof Betonilha lanchava com o chefe dos padres confessores da igreja de São Sebastião da Pedreira. Apesar de estarem bastante limitados pelas respectivas obrigações de sigilo, a vasta experiência de ambos no uso de simbologia variada tornava a interdisciplinaridade um exercício banal e corrente, mas, em todo o caso, animado e curioso. O padre, nos primeiros tempos, acudiu à ideia do prof Betonilha com bastante relutância, levado, justificadamente, pelo receio da confusão entre a terapia e o perdão, entre o estado de consciência e o estado de graça. «Patamares diferentes», resmoneava de si para si. Receios legítimos, diga-se, pois o negócio da salvação não deve ser confundido com o negócio da relaxação; contudo, o prof Betonilha, movido por uma arrojada boa fé, era bastante eloquente na sua máxima: ‘antes de alma lavadinha e pacificada que pura e atormentada’, e tinham, inclusive, ambos bem claro que não se tratava, de todo, dum clássico de homogeneização da psicanálise com confissão – corruptela essa já há muito desmontada por ambos os lados das barricadas dos exércitos que montam guarda às psiques. E assim deram as mãos num grande projecto sanitário-religioso que epigrafaram para si mesmos com um: ‘se a misericórdia te bafeja usa-a no bolo como uma cereja’.
E então, desse modo, numa esplanada junto à praça de Espanha, iam desfilando e sendo formuladas as estratégias de transformação para almas em processo de limpeza, que progressivamente se poderiam tornar autênticos cruzados de bem-estar privado e publico, consciente e cristalino. Já se falava, entre brigadeiros e palmieres, do ‘poder terapêutico da graça’, fazendo praticamente o pleno herético em todas as freguesias oficiais do Saber e da Doutrina.

Memórias do dr. Betonilha. A definição.

Luis Areia cedo descobriu que as melhores – do ponto de vista teórico - consciências em período de convalescença penitencial eram as dos políticos traumatizados com grandes decisões. O fenómeno da ‘grande decisão’ é, a par da pedra na vesícula e das pernas da Cláudia Vieira, a maior fonte de recalcamentos Édipo-free de vastas franjas da humanidade. Depois de algumas sessões com casos de consciência-pesada-associada-a-mão-leve, e consciência-dorida-associada-a-conversa-mole, Luis Areia desenvolveu um modelo terapêutico de base factorial dinâmica, em que a consistência da tranquilização funcionava em directa e inversa dependência com a rigidez do arrependimento. Royaltizou a tese com a denominação de ‘Terapia da Argamassa’ (pois tratava-se duma técnica que envolvia séries de 4 sessões de laquemento de culpas com 1 sessão de alongamento de reminiscências, sempre devidamente acompanhadas da dose certa de uns pozinhos de talking cure) e quase que obteve para o texto teórico o nihil obstat do imprimatur por um bispo do Ceará (negado à ultima hora por causa duma infeliz – e desnecessária, diga-se – alusão no texto ao ‘felacio de consciências’ pelos media mainstream).
Já com o seu prestígio bem cimentado, o prof Betonilha (como ficou – previsivelmente - conhecido na comunidade científica) especializou-se em projectos de pesquisa junto de políticos dados a lapsus de índole metafórica com marcas de alimentação pré-edipiana, e a comentadores-jornalistas com os nervos à flor da púbis.
Com o patrão a rebentar de fama e proveito, Miriam, a sua secretária de olhar cândido, promoveu um robustecimento polimérico de peitos que a deixou praticamente iconografável, e o seu número de telemóvel passou a ser o maior segredo nacional depois do boletim de vacinas do neto da Ferreira Leite.

Memórias do dr. Betonilha. A génese.

Luis Areia tinha-se especializado nas psicoterapias rápidas. Adolescências anémicas, menopausas regressivas, ingenuidades não correspondidas, ressacas de alta competição e meias idades blorgásmicas. Aplicava um método simples, em conta, e poucos clientes não ficavam satisfeitos: a psique humana, posta a jeito, lubrifica melhor que uma cremalheira a descer rampas. No entanto, sentia-se esgotado, ou melhor, sentia que lhe faltava dar um salto na cadeia de valor do psiquismo. O contacto com as miudezas do cristianismo abriu-lhe uma porta: o perdão, nos tempos que correm, só fará o serviço completo se a consciência ficar tranquilazinha; ora essa tranquilidade é um fenómeno complexo e ultrapassa o mecanismo religioso, ou seja, a mera relação com um Deus misericordioso e até compassivo não tranquiliza automaticamente, a purificação é, como se sabe, transitória, e a tranquilidade é algo que se quer mais permanente, mais defendida dos fluidos internos e externos. Dedicou-se assim, em regime de joint venture, a clientes em fase pós penitencial que, para além das benfeitorias do perdão sacramental e do enquadramento doutrinal, queriam ascender suplementar e consistentemente a uma tranquilidade peri-karmica aos vários níveis do ‘eu’, incluindo o módulo dos inconscientes e dos super-egos, que, um dia, bem poderão também vir a fazer parte das listas oficiais de órgãos protegidos pela OMS e pelas mais sagradas congregações. Montou novo consultório para os lados da avenida de Berna, contratou uma secretária de olhar cândido, pernas arredondadas e colo sóbrio – mas não retraído, comprou sofás de tons tímidos - mas não ambíguos, e investiu em música ambiente suave - mas não inócua. Preços variáveis– mas não instáveis. Líbidos em ambiente de reserva ecológica. (cont…) (ou não)

Orazio Gentileschi (c. 1623). L'Annunciazione. © Galleria Sabauda, Torino

From Van Dyck to Bellotto

Picasso - Madoura

era uma vez um vocábulo

Efectivamente ‘garrafão’ e ‘bilha’ apresentam uma dinâmica metafísica bastante distinta. Olhemo-la à luz dos transcendentais da nobre ciência:

Antes de tudo, enquanto o ‘garrafão’ praticamente esgota a sua ‘natureza’ nas funções instrumentais de vasilhamento e subsequente facilitação do transporte, a ‘bilha’ apresenta uma dimensão muito mais complexa, relacionada com o moldagem do barro, a forma ondulante, – quando não lubricamente bojuda – a poética do seu manuseamento instável no topo da formosa moleirinha, o cheiro da terra cozida, a fusão dos elementos, etc.

Quanto à ‘forma’ e à ‘substância’ também podemos constatar que se o ‘garrafão’ não apresenta novidades especiais na interdependência entre aqueles dois elementos da famosa dupla metafísica, por exemplo, nada muda no saciar da sede entre o uso dum ‘filha, traz-me dois garrafões de Fastio quando fores ao Modelo’, ou dum ‘a água do garrafão que me trarás do Pingo Doce fará com que todo meu ser balouce’; enquanto que se alguém disser um simples e aparentemente inócuo ‘filha, vamos ao Buçaco encher a bilha’ a sede passa a ser um fenómeno secundário e apenas nos focaremos na citada ‘bilha’. Já no que concerne à ‘forma’, penso que também é evidente: à água nada é acrescentado se for envasilhada num garrafão, continua a ser mera água, enquanto que a água na bilha, passará a ser muito mais ‘aquilo que está dentro da bilha’, ou seja, neste caso, a 'forma' que assume a água – 'água da bilha' - passa a conferir-lhe como que uma nova substância, enquanto que a força metafísica da própria bilha pouco se altera por ter lá dentro água ou não. [reparemos o quão isto é diferente no caso da ‘saca de batatas’, por exemplo. A saca sem batatas não passa dum trapo nojento, mas as batatas sem saca não passam dum monte de tubérculos. Dependem assim completamente uma da outra]

Finalmente no que concerne à dialéctica destes conceitos também encontramos profundas diferenças. Já vimos atrás que enquanto ‘acto’ eles divergem em várias dimensões (e nem sequer me debrucei sobre a problemática do gargalo), mas então enquanto ‘potência’ estamos perante duas realidades metafísicas completamente distintas. Se repararmos, a um garrafão o que se segue? Na melhor das hipóteses é lavado, triturado, transformado em cápsulas de PET e novamente extrudido em garrafão, ou, se tiver muitas impurezas pode vir a fazer de balde do lixo, ou alguidar, ou mesmo fibra de poliester. No entanto, a bilha é, em 'potência', ao se partir, por exemplo, um caco, e todos sabemos o poder metonímico do caco, todos sabemos até o poder da nobre arte do restauro, todos sabemos o encanto duma bilha restaurada com as nervuras das colagens a darem-lhe a força dum delta do Nilo. E convenhamos que dizer que temos a ‘vida feita em cacos’ não é o mesmo que dizer que temos a ‘vida feita em cápsulas de PET’.