Memórias do dr Betonilha. As fórmulas.

Todos os fins de tarde o prof Betonilha lanchava com o chefe dos padres confessores da igreja de São Sebastião da Pedreira. Apesar de estarem bastante limitados pelas respectivas obrigações de sigilo, a vasta experiência de ambos no uso de simbologia variada tornava a interdisciplinaridade um exercício banal e corrente, mas, em todo o caso, animado e curioso. O padre, nos primeiros tempos, acudiu à ideia do prof Betonilha com bastante relutância, levado, justificadamente, pelo receio da confusão entre a terapia e o perdão, entre o estado de consciência e o estado de graça. «Patamares diferentes», resmoneava de si para si. Receios legítimos, diga-se, pois o negócio da salvação não deve ser confundido com o negócio da relaxação; contudo, o prof Betonilha, movido por uma arrojada boa fé, era bastante eloquente na sua máxima: ‘antes de alma lavadinha e pacificada que pura e atormentada’, e tinham, inclusive, ambos bem claro que não se tratava, de todo, dum clássico de homogeneização da psicanálise com confissão – corruptela essa já há muito desmontada por ambos os lados das barricadas dos exércitos que montam guarda às psiques. E assim deram as mãos num grande projecto sanitário-religioso que epigrafaram para si mesmos com um: ‘se a misericórdia te bafeja usa-a no bolo como uma cereja’.
E então, desse modo, numa esplanada junto à praça de Espanha, iam desfilando e sendo formuladas as estratégias de transformação para almas em processo de limpeza, que progressivamente se poderiam tornar autênticos cruzados de bem-estar privado e publico, consciente e cristalino. Já se falava, entre brigadeiros e palmieres, do ‘poder terapêutico da graça’, fazendo praticamente o pleno herético em todas as freguesias oficiais do Saber e da Doutrina.

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