Ali Bábá e os quatro-mil-milhões


Quando Gaspar descobriu que na caverna do estado social estavam escondidos quatemimnhões foi a correr contar a Passos.

 - E como é que lá entramos?

 - 'Abre-te selassié', acho que é a senha, e se lá conseguirmos entrar vai ser canja pormos as mãos nos quatemimnhões!

- Achas que não vai estar lá mais ninguém?

- Vamos num dia em que haja manifestações!

Gaspar e Passos esfregavam já as mãos com a imagem de um pote cheio de quatemimnhões quando lhes apareceu Portas a dizer que também queria ter uma palavra a dizer sobre os quatemimnhões.

- Mas tu não sabes qual é a senha! - rematou logo Gaspar.  

-  Sei sissinhora, é: 'Abre-te Lagarde'!

- Não é, Toma! E essa só manda no departamento de bijutaria e marroquinaria e os quatemimnhões são despesas sociais.

- Então vou perguntar ao Bagão Felix e ele diz-me a senha

- Ora, ora, espertinho, a senha já não é a mesma, ehehe, pensas o quê!?

Portas irritado manda chamar Mota Soares.

- Mota, então não eras tu o dono do estado social, porra!? Mandei-te para lá e agora deixaste mudar a senha e perdemos o controlo à coisa!

- Chefe, desde que descobriram que estavam lá os quatemimnhões andam todos fechados em copas e a fazer panelinha com o selassié

- Sabes o número desse gajo?

- Não, ele liga-me sempre dum anónimo

- Cabrão...e agora fazemos o quê?

- Sei lá, olha, para já pomos o puto-almeida a esbracejar e depois logo se vê

Entretanto Gaspar e Passos foram para a porta do estado social e começaram a dizer baixinho:

- Abre-te selassié, abre-te selassié...

E então, num movimento lento e majestoso, as portas blindadas do estado social abrem-se de par em par e eis que um tesoiro exuberante, doirado e resplandecente de subsídios de desemprego e pensões de reforma lhes aparece a tilintar e luzir.

- Meu Deus, tanta riqueza?! Já viste ali aquela pensão de viúva? Linda de morrer!? e aquele subsídio de funeral!? Que jóia...

- Sim, Gaspar, sim, deslumbrante, e olha ali para aquela bolsa de estudo! Parece um pergaminho raro!

- Estava aqui um pote de quatemimnhões e nós nem sabíamos!

- Olha, começa a meter no saco aqueles abonos de familia que estão todos espalhados e ainda podem voar com a corrente de ar

- E cheiram tão bem...são uma autêntica especiaria social

- Não sejas depravado, Gaspar, não é para brincares com isso!

- Ao menos deixa-me ficar só esta noite com uma taxa moderadora, para brincar com ela, vá lá, depois amanhã eu trago

- Sim, mas não digas nada ao Macedo, que o gajo é invejoso, e ainda vai querer meter a unha nos nossos quatemimnhões!

- Nada disso, os quateminhões são nossos! Fomos nós que os descobrimos!

- Sim! Credo, já viste, nem pensar, com os nossos quatemimnhões ninguém brinca...Eu sou o número dois, não sou?...

- Claro, Gaspar, meu rei mago, tu és o meu número dois, pronto.

- E mais ninguém vai saber do nosso segredo, pois não, número um?

- Não, ninguém!

- Nem o Marques Mendes?

- Não...

- Humm...quatemimnhões só para nós e para os nossos modelos escanzelométricos, nham, nham.

the dark side of the wool #n+k+l


Um dia o pastor enquanto tosquiva uma ovelha descobriu uma moeda dobrada no meio da lã. Olhou à volta e no cimo de um monte viu o lobo a rir-se atrapalhado e com um dente partido. Depois virou-se para o lado da planície e viu o fiel cão com o seu mealheiro ao pescoço. Fez-lhe uma festa rápida e tirou-lho. Já se preparava para o abrir e contar as moedas quando constatou que tinha lá inscrito em tempos: nem tudo o que é fofo é lã.

Dead Can Dance II


Uma das principais conquistas do novo Purgatório-social é que Deus Nosso Senhor doravante apenas terá acesso ao visionamento das nossas vidas depois de criteriosamente editadas. Enquanto antes nos apresentávamos ao Criador e seus acólitos de forma bruta, desde a refundação do Purgatório que temos direito a pequenos ajustes efectuados por anjos especializados em limar as arestas do pecado. Muito boa gente hoje ainda amocha anos e anos à espera duma vaga no Céu porque pura e simplesmente ninguém teve o cuidado de cortar pedacinhos sem importância da sua passagem por este degredo de Eva, muitos deles até certamente apenas pequenas distracções ou mesmo meras manifestação de respeito perante tentações que se apresentavam generosas e determinadas. Todos sabemos perfeitamente que mudar um enquadramento ou desfocar um ou outro plano são suficientes para transformar momentos de natureza mais duvidosa da nossa vida em meras circunstancias de confraternização e formas alternativas de viver alguns dos mandamentos, certamente apreciadas pela corte de Anjos, sempre ciosa de confirmar as nossas performances proselitistas; ora não há conversão sem contacto, como é sobejamente reconhecido. A edição de vidas para efeitos de visionamento e apuramento de responsabilidades morais é assim uma das principais conquistas do pecador moderno e deverá ser salvaguardada, sem quaisquer compromissos com arrivismos de escrupulosos ou puritanos de ocasião.

Dead Can Dance


Deus, como seria de esperar, olha para nós com curiosidade divina. A curiosidade divina consiste numa espécie de auto-redenção do criador que recebe o homem-feito-deus e lhe administra a eternidade chave-na-mão com uma paciência infinita. Mas o homem há muito que pôs Deus na borda do prato (há quem diga que é o local onde guardamos o que gostamos mais para depois degustar com cuidado) e Ele teve de reestruturar o Purgatório face à nova realidade religiosa. Podemos chamar a este novo local, para utilizar uma terminologia d'época: o Purgatório-social. A meio caminho entre a eternidade-ameaça e a eternidade-protecção este novo purgatório tem apenas para fornecer aos penitentes os serviços mínimos de penitência e adoração. A comissão instaladora definiu assim as suas funções: garantir apenas que perceberam a merda que fizeram e a merda que deixaram por fazer. Ou seja, deixamos de ter a possibilidade de vislumbrar antecipadamente a experiência de O ver face a face, mas por outro lado também não nos consumimos demasiado com a pecadilhada que distribuímos enquanto por aqui andámos. O novo Purgatório-social permitirá que nos habituemos mais gradualmente à nossa nova condição de mortos-pendentes do Juízo Final e que mantenhamos as virtudes teologais a um nível que nem envergonhe os santos nem desespere mais os que ficaram entalados noutros braseiros. Revistos os serviços mínimos deste Purgatório livre de expectativas que a fé de um penitente moderno já não consegue acompanhar, restam-nos agora uns quantos séculos de misericordiodependência e , quanto muito, um ou outro período de graças gordas.

A sexta avaliação


Carlos Fontes estava ansioso naquela terça-feira que arrancou com uma desconsoladora neblina. Iria estar com Luísa pela sexta vez e dos outros encontros não conseguira retirar um percurso, uma casualidade de emoções, reacções, suspiros ou sequer sorrisos, um love path. Cada encontro era um universo novo a descobrir, nem sequer percebia se se daria uma translação ou uma mera rotação, nos momentos que estiveram juntos o tempo parecera-lhe saído da cauda dum cometa desgovernado. Umas vezes faladora e expansiva, noutras circunspecta, em momentos lúcida e racional, noutros lúdica e enigmática. E como seria que ela o veria? Nunca conseguira perceber. Cada abraço era um exame, o simples olhar dela era uma cirurgia, cada carícia uma ecografia, cada beijo fugaz era saboreado como se duma ressonância magnética se tratasse. Desta vez encontraram-se num pastelaria de bairro junto a uma praça quase vazia duma zona antiga da cidade. Luísa apresentou-se calada e na expectativa. Parecia querer fazer do seu silêncio uma bancada de laboratório onde ele se teria de deitar para observação. Será que o verdadeiro teste a um homem é quando uma mulher se deixa ficar calada? Foi este o pensamento que o arrebatou imediatamente. Mas Carlos sentia-se um grande polidor do silêncio feminino e encarou aquela sexta avaliação como uma oportunidade de a conquistar irreversivelmente, de a cobrir com uma patine de sensualidade que a deixaria brilhante, como uma santa queirosiana de colo ebúrneo e trança de oiro. Quando ela esboçou a primeira intenção de falar ele chamou o indicador à frente de batalha e traçou-lhe os lábios, ainda ressequidos mas já carnudos e puníceos, como numa benção pagã, preparando um ritual de palavras ternas, doces. O silêncio de Luisa seria coberto por uma manta de sussurros, qual paramentária de pentecostes, rubra e festiva, eloquente, como só eloquente consegue ser um homem que ama sem razões. Deixou-a sem fala, presa num torpor de encantamentos inesperados e pronta para lhe fornecer o seu amor em tranches voluptuosas e ardentes, que ele trincaria reverberando uma constelação de estrelas. Serás o cobridor do meu silêncio, Amor, foi este o seu relatório, austero, mas digno duma rainha das palavras difíceis, dos sentimentos escondidos e das carências amarguradas.

perto - longe


À espera de Murphy


Não há muito tempo o blog 'dias felizes' (hoje com outro nome não menos beckettiano) numa série de 'aforismos naturais' (melhor que o natural só mesmo aquele com pedaços de frutas silvestres) escreveu: «Não se deve esperar muito de um feitio que balança entre o ensimesmado e o trocista». Dos vários garruços que pulularam de imediato à minha volta quando li aquilo, praticamente todos me assentaram que nem uma luva feita à medida, no entanto não comentei a descoberta com ninguém, não fosse deixar a descoberto a minha careca de gajo-do-qual-não-se-pode-esperar-grande coisa. Retive no meu ensimesmamento (que tem tanto de estéril quando de oportuno) a consciência de grande inútil e trocei (na medida do possível) comigo próprio naquela base de que antes estar quieto que estragar, pois antes um murphy na mão que dois godots a voar.

valha-nos nossa senhora da emasculada conceptualização


Senhores de uma pívia intelectual de bom porte os novos-sábios vieram tomar o lugar dos novos-ricos. Aparentemente tudo apontaria para que ficassemos mal servidos. Mas até não. A energia que antes fazia desabrochar fábriquetas de peúgas e tshirts, se bem que algumas de duvidoso porte vindas do grande maná da esperteza saloia, hoje dá à luz dondocas de salão de chá não dançante com o pomposo nome de comentadores. Gente incapaz de produzir um mínimo de riqueza que se possa apalpar com dedos de gente, (aquilo que agora a gíria chama de bens transaccionáveis) encaixou-se na fresta dos grandes bordéis do pensamento e fez nascer o novo cluster dos entertaineres de opinião, opinioristas praticamente de cédula garantida e com rodado preparado para qualquer tipo de piso. Mas o facto é que dalguma forma houve bom time to market nesta decisão dos mediamakers. Os canais generalistas têm novelas, reality shows e um ou outro concurso, e os canais de notícias fazem a festa com estes banality shows, permitindo até a alguns dos artistas-da-opinião saltarem de canal em canal para que ninguém se fique a rir. A chamada opinião livre está para a sociedade livre como o tremoço está para as terras cansadas. Ou seja, para o povo relaxar da ficção redundante ou da notícia anestesiante, os media fornecem um entretenimento que propicia algum fôlego benigno, algo que também dá muito boa serventia enquanto se passa a ropinha da máquina da lavar para a de secar, e que se pode ir desbastando sem comprometer nenhuma colheita essencial; não chega a dar sombrinha mas também não dá guarida a nenhum pássaro que acabe por nos cagar em cima. Ou seja, os opinioristas revelam-se não tanto os exemplares menores da caderneta da liberdade de expressão, mas antes os grandes guardiões do pensamento inerte, verdadeiras pílulas do nem-aquece-nem-arrefece, ventiladores de baixo custo e brisa morna garantida. Estes retalhistas do pensamento livram-nos da conceptualização cartelizada dos grossistas das academias e da erudição, e permitem-nos aceder à eterna graça que é esterilidade do raciocínio humano, consolidando-se como uma das bem-aventuranças dos tempos modernos em que o melhor que se pode fazer com uma notícia é tricot e, vá, um ou outro crochet decorativo para consciências em estado cívico.

blocogamia


De todos os grandes temas do momento, designadamente, o video-do-marcelo, as declarações-da-jonet, a visita-da-angela-doroteia, e o novo casal-do-bloco, apenas este último me parece de real importância. Não se trata, como aparentemente se poderia supor, de uma liderança bicéfala, (aliás, é até aos homens, isoladamente considerados, a quem geralmente é atribuída essa qualidade de pensar com duas cabeças) trata-se antes, e  numa primeira análise, de uma tentativa de re-hormonização do poder. Face à carga erótica que geralmente está acometida a qualquer liderança, o bloco de esquerda enveredou por dessexualizar o exercício do poder e fê-lo precisamente: sexualizando-o. Face à herança hermafrodita de Louçã não seria fácil encontrar uma solução que não esta de amancebar heterosexualmente dois espíritos de esquerda num único casulo trotskista. E é assim que se traz para o maravilhoso mundo da termodinâmica homem-mulher uma nova e empolgante categoria. Face a relações menos ortodoxas entre um homem e uma mulher, que geralmente dão origem às explicações tipo: a) ah, são apenas amigos; b) ah, são apenas sócios num negócio; d) ah, têm apenas os filhos no mesmo colégio; e) ah, foram apenas colegas desde o infantário; f) ah, apenas tiram fotografias juntos; g) ah, são apenas vizinhos, junta-se agora o h) ah, são apenas co-líderes. A co-liderança é, assim, uma relação meta-sexual em que tudo funciona em vasos comunicantes, sendo que a troca de fluidos é substituída por uma comunhão de ideais de esquerda partisanica, também conhecidos como trostkosterona. Esta hormona revolucionária, produzida pelas glândulas quando funcionam em bloco, é a responsável pela orientação do organismo para todas as causas desfavorecidas, permitindo-lhe a adesão à polémica incontinente e à abolição de todas as indulgências aos consagrados. Assim, o bloco-casal (que enche um chouriço diferente da sicasal) tem ao seu alcance proporcionar todo um tipo de sensações de libertação e empatia com o mundo em geral até hoje apenas verificáveis em ambientes de espiritismo ou amor livre, mas agora numa confluência de energias propiciadora de revolução, serenidade e compreensão mútua.

Deixo então aqui, aquele que será o novo hino do bloco, numa adaptação do êxito de Lara Li ('Telepatia')

Blocogamia, revolução e calma,
Feitiçaria na nossa alma
Passo a passo, sem ter medo
Abrímos, soltámos o nosso segredo

E a sorrir, devorámos o mundo
Num abraço tão profundo.

a (refundação da) mulher de confiança #2 - a bota chelsea


Neste processo de minúcia que é a reforma profunda da mulher portuguesa não devemos encolher-nos perante estigmas ou preconceitos de qualquer espécie. Assim, ao 'diz-nos com quem andas dir-te-ei quem és» há que juntar o, até mais óbvio e consensual, julgo,  'diz-me o que tens nos pés dir-te-ei como andas'. Se no primeiro capítulo deste breve ensaio comecei pela cabeça, será agora de elementar justiça dar cobertura à outra extremidade. O pé-de-mulher (conceito que se situa nos antípodas do também familiar pé-de-atleta ) constitui-se não só como um dos grandes mistérios do erotismo feminino mas principalmente na consagração da mulher como o real sustentáculo duma sociedade em permanente volatilidade e ciclomaníaca. Deixo desde já claro que não pretendo elaborar aqui nenhum libelo contra modas como o salto ou o cano alto, mas antes reforçar aquilo que constitui o núcleo de confiança que se pretende encontrar numa mulher: firmeza e flexibilidade. A bota chelsea consegue concentrar estes dois atributos numa economia de meios notável e, ainda para mais, deixando em aberto uma ampla gama de soluções de nível estético que mantêm a mulher no pináculo da atracção sem lhe atraiçoar o pudor, nem a respeitabilidade. Num notável equilibrismo de forma, proporção e funcionalidade, a bota chelsea envolve o pé feminino sem que este se perca num deslumbramento de subtileza ou numa ilusão de força, que deitariam tudo a perder nessa missão essencial de transmitir confiança ao homem que cada mulher leva pela mão, ou por qualquer outra ponta por onde se lhe pegue. Com a imaginação e a insegurança masculina nas doses e temperos certos, o homem sabe que tem na mulher-com-bota-chelsea, não uma vulgar bota de elástico, mas antes uma companheira serena, segura, sóbria e sinuosa quanto baste, pois, como está demonstrado, a curva feminina é tanto um lugar de derrapagem como de contorno táctico.

Neste momento histórico de redefinição do papel da mulher-junto-do-homem, quer ela se assuma mais mulher-previdência ou mais mulher-desfrute, a discreta e eficiente bota chelsea é essencial não só para que não se tenha de preocupar com as falhas na calçada portuguesa nem com os calos, mas para que igualmente possa traçar a perna sem que o homem desvie a atenção para o que é realmente providencial. 

frente - trás


Lafayette & Talleyrand


A revolução em Portugal acabou por não conseguir gerar uma mitologia decente e consistente. Se, por um lado, Soares ainda se aproximou do brilho da liturgia aristocratico-revolucionária, dando cores persistentes à primavera politica e construindo em seu torno uma película  lafayettiana de esplendor e espontaneidade, nada de jeito se produziu no outro extremo. Chegados à troikicidade do momento olhamos à nossa volta e não encontramos nenhum grande calculista, nenhum grande e perene manipulador de bastidores. Vários candidatos foram ficando pelo caminho (marcelos, almeidas santos, jaimes gamas, angelos correias, etc) sem deixarem nenhuma marca que não o episódio ou flirt irónico e conspirista. Chegados aqui vemos que a revolução em Portugal não produziu nenhum Grande Cínico, alguém que trouxesse no sangue a dissimulação em estado puro, um reflexivo obsessivo. E que falta nos faz a existência desse pólo agregador de todas as forças da especulação e do genuíno amor aos bastidores e aos cordelinhos. Fosse por incompetência, por excesso de vaidade mediática ou por mera mesquinhez genética, estamos órfãos desse talleyranico poder,  e o país rumina pelos cantos sem descobrir nem redenções nem conspirações que o salvem. Em nos ter falhado o poder mítico dum cavaleiro andante e duma eminência parda estamos confiados a pardos andarilhos de poder. Sempre com o picotado ao pescoço.

aguentómetro


nível 1 -  lembram-se daquele tempo maravilhoso em que se discutia se o couvert devia ser pago em separado?
nível 2 - lembram-se daquele tempo fantástico em que o grande problema do mundo era o racismo na África do sul?
nível 3 - lembram-se daquele tempo em que a salazarenta ponte 25 de abril ficou bloqueada porque os camionistas não queriam pagar o aumento das portagens?
nível 4 - lembram-se daquele tempo maravilhoso em que se era a favor ou contra a invasão do Iraque?
nível 5 - lembram-se daqueles tempos em que evitávamos comer carne de vaca por causa da espongifórmica?
nível 6 - lembram-se daquele tempo em que a principal questão nacional era um problema técnico sobre o novo aeroporto: ou em cima das estacas da Ota ou entre os sobreiros de Alcochete?
nível 7 - lembram-se daquele tempo maravilhoso em que o engenheiro guterres não sabia calcular percentagens do pib?
nível 8 - lembram-se daquele tempo em que o sporting tinha equipa de futebol?
nível 9 - lembram-se daqueles anos luminosos em que cavaco comia bolo rei?
nível 10 - lembram-se quando estávamos de tanga?

salafixologia


Ao contrário do que somos levados a pensar, o epíteto «salazarento» , que alegadamente terá ofendido Gaspar, victor e ministro,  não se deve tanto ao mobilizador ideológico-idiomático 'salazar', mas antes ao sufixo 'ento' que, com o aditivo do 'z' já possuído pelo referido salazar nos conduz directamente a 'cinzento', cor interessante para combinações mais clássicas no vestuário, mas que nos remete para um universo de retrogradismo e bafio. Vejo assim que está ao nosso alcance definir uma nova classificação semântica dos vários salazarixos. Observemos. Se utilizarmos o  'salazarosa' podemos lograr injuriar a preceito alguém que esteja próximo do lobi gay; se quisermos dizer que um politico está com um discurso mortiço e cambaleante poderemos chamar-lhe um 'salazarombi'; se por acaso alguém entrar por um discurso decadente de vaidade e bazófia poderemos utilizar o novel adjectivo 'salazarófia'; se pretendermos desconsiderar alguém e as suas ideias julgo que a utilização de 'salazareco' será de muito bom efeito. Por outro lado, ao nos depararmos com alguém que esteja a misturar tudo, naquela onda de que está tudo ligado e que tudo é igual a tudo, dará muito boa serventia a expressão achocolatada de 'salazarame', e se nos aparecer algum artolas com um estilo de romancista chato e arrastado não ficará mal de todo chamá-lo de 'salazarola', com emílio ou sem emílio. E então, por último, e para ir jantar, se quisermos arranjar uma designação acutilante para o que acabei de escrever, muito bem ficará chamar-lhe um post da salazareta.

a (refundação da) mulher de confiança #1 - a bandelette


Qualquer homem num determinado momento da sua vida precisa de ter uma mulher de confiança. Seja qual for a posição formal que ocupe na sua vida (cuidado que as mães nunca são de confiança) trata-se de alguém em que ele possa encontrar aquilo que não tem, nem nunca terá, por força duma fatalidade que se dá pelo nome de natureza. A mulher, sem deixar de ser também uma construção social e cultural, (como o homem, de resto, mas este menos) encerra em si um pouco daquilo que apenas a religião consegue fornecer com estilo, ou seja: o mistério. Apesar de Pessoa ter alertado para que «o único mistério é haver quem pense no mistério», é impossível fugir à inegável capacidade que a mulher tem em se constituir numa espécie de metafísica com pernas ( e mais qualquer coisa de bónus). A mulher, ciente dessa sua característica desde muito tenra idade, (mantendo-se, muitas delas, inclusive tenras por muito tempo) tem uma forte tendência para lhe ir acrescentando muitos outros atributos que acabam por diluir o papel peri-religioso que recebeu das entranhas da criação. É assim para o homem uma tarefa de primordial importância saber discernir de todas as mulheres que as circunstâncias lhe colocaram no caminho, qual ou quais as que podem ser realmente a sua ponte, a sua ligação ideal, a sua chave, a sua ignição. Como a mulher é extremamente permeável às iconografias de camuflagem, isso acaba por permitir ao homem construir uma espécie roteiro de decifra que funcione como descodificador de bolso. É desses sinais (mutáveis e vulneráveis à dissimulação feminina, claro) que aqui falarei, nestes momentos históricos em que se irá definir qual o tipo de mulher a que temos direito.

O primeiro que me parece consensual é o uso de bandelette. A gestão (da forma) do cabelo é uma das principais rotas de definição do humano ( o animal, por exemplo, pode arranjar as unhas ou garras mas não se auto-penteia) e a mulher forçosamente não consegue fugir a esse processo. Com maior ou menor consciência o seu penteado vai transmitir aquilo que ela é, e, mais precisamente, é para o homem. Ora a bandelette é um instrumento de eleição para a mulher emitir um sinal inequívoco de que: tem a consciência de que é um ser-da-selva mas que se sabe controlar. A mulher bandeletizada prova com esse adereço que saberá constitui-se num acondicionador para o lado desregrado do homem e que saberá estar ao lado dele quando for preciso atravessarem o rio, esteja ele cheio de predadores ou apenas com uma corrente mais forte. O homem poderá confiar nela pois nunca deixará que o vento lhe leve o cabelo a tapar a vista, a mulher com bandelette nunca perderá a perspectiva, nunca se deixará ficar presa em nenhum ângulo morto ou arame farpado. Por outro lado, a mulher-de-bandelette não vai perder tempo a cortar franjas, a endireitar linhas de penteado nem a empinar caracóis (tendo até mais disponibilidade para empinar outras curvas), será sempre uma mulher prática que não deixará o homem perder-se em divagações, em pensamentos inúteis ou de uma futilidade castradora. A mulher de bandelette não terá a tentação de soprar a cortina de franjas, será muito menos atreita a usar rabo de cavalo (o enfeite mais enganador para o homem), e nunca deixará avolumar em excesso o seu cabelo, ou seja, manterá a sua nobreza sempre conservada num banho de sobriedade. Sendo a mulher bastante atreita às limitações impostas pelas convenções sociais (muito mais que o homem) o uso da bandelette evidenciará que ela é das que, compenetrada nessa sua histórica fragilidade, saberá pôr o homem que confia nela acima de todas as luxúrias de condição ou liturgias de ilusória libertação.
Podemos, pois, afirmar com alguma segurança, e sem recorrer a discurso fácil ou de cassete, que uma mulher em estado-de-confiança provavelmente usará uma bandelette.