diana chaves, c'est moi

Gosto cada vez mais de telenovelas. Gosto do ar revisteiro das cenas, gosto da previsibilidade dos enredos, do arrastamento para fazer render o tempo, gosto daquele perfume barato do escândalo primário, dos volte-faces inverosímeis, gosto da repetição das cenas já vistas, gosto do ar postiço, gosto que me digam nem acredito que vejas isso, gosto de separar os bons dos maus, da sensação de história enlatada, gosto de reconciliações com música de fundo, gosto dos bairros a simularem que são do tamanho do mundo, gosto das tentativas falhadas de mostrar o espírito do tempo, dos exageros mal conseguidos, gosto que me digam já te vi a fazer aquela cara, gosto das teorias sobre personalidades fortes e fracas, gosto dos que fazem de paneleiros, gosto de ir beber água a correr para não perder uma cena, gosto do riso fácil, gosto de ficar a pensar que já me fizeram aquilo, gosto de ficar com pena que acabe, gosto de cenas de amor foleiras, de mulheres guerreiras, gosto de confirmar que todos os amores têm barreiras, gosto de me irritar com o mau gosto, gosto daquelas maldadezinhas gratuitas e estúpidas, da canastrice dos actores, das lições de moral, gosto de ir adivinhando as falas, as deixas, os cenários, gosto que me digam és tão parvo, gosto de informar como é que eu teria escrito e feito e dito. Gosto de comentar as falhas do enredo, gosto de me sentir sopeira, patroa, motorista e cornudo, gosto de avaliar os desempenhos, os choros, os trejeitos, as inflexões de voz, já fui até apanhado a comentar vestidos, maquilhagens e penteados, eu que sou especialista em festinhas no cabelo. Um dia ainda hei-de ser apanhado a chorar, prometo. A melhor vacina para nunca vendermos a alma ao diabo é levarmos com pequeninas doses dele embrulhadas em papel de fantasia.

e agora o dê

Acredito sem especiais restrições que a situação da Libia preocupe genericamente o mundo em geral e particularmente às almas mais dadas à preocupação em particular, incluindo a judite de sousa, e o helder postiga. Não queria deixar no entanto de frisar que muito mais preocupado me deixaria se existissem problemas na zona do Libido, e se isso viesse acompanhado com problemas na minha Lábia ainda mais preocupado me colocaria. Em regra eu dou muita importância à combinação de lábia e de libido, (em contra-corrente com as teorias que apostam mais na imaginação e/ou nos lubrificantes) mas a Líbia em si e isoladamente não me costuma criar reconhecíveis ansiedades, talvez porque, pelo menos conscientemente, também nunca fui confrontado com a necessidade de desentupir o canal de Suez para satisfazer quaisquer tipo de exigências, hormonais ou other else. Resumindo, mas não concluindo: ora se a África já tem um corno também tem direito a um libido. E há que dar essa possibilidade e oportunidade aos agora ainda apenas chamados de líbios. No fundo, a par dos safaris e da penitência doirada do Guterres, a África poderia tornar-se o verdadeiro paraíso das terapias sexuais: quando um cônjuge ia para a Líbida o outro ficava a remoer no Corno. E depois trocavam, podendo até passar uns dias juntos ali na zona do canal, uma espécie de virilha morfológico-geográfica, se repararem bem, e eventualmente recomendável para swing com camelos ou petroleiros. Entretanto, e agora sim concluindo, mas já sem resumir, o Khadafi da, ainda chamada Libia, ou seja a Libida ainda sem dê, - mas antes isso que uma libida sem tesão, convenhamos - convidou os tais deolinda (que são uns músicos que fazem uma música semi-merdosa, registe-se), não só por causa do fornecimento do respectivo dê, a troco dum cartão galp-frota, mas também para convencer o povo que afinal não vale a pena tanta emancipação pois irão ficar escravos outra vez, sem pinguinha de cheta nem sangue, lívidos, inclusive. Já podem aliviar meus lindos.

verso à terça

Mas se é razão ser eu a que pareça,
De mim mais vos direi quando emudeça
E a vós menos me mostro se atrevida

Natália Correia, in Sonetos Românticos

Man lebt nicht einmal einmal

Leio os evangelhos diariamente há carradas de anos e sempre que pego nessa leitura tenho a mistura de três sensações: a) sensação epifânica : porra nunca tinha lido isto; b) sensação indianajónica: é hoje que eu vou descobrir o que nunca foi descoberto; c) sensação bulímica : fosgasse, não retive nadinha. A Bíblia é, por um lado, um livro de boa (ilusória) economia, quero eu dizer: com poucos recursos de leitura consegue devolver um conjunto robusto e diversificado de retribuições, mas, por outro lado, de má economia: pode devolver mais incógnitas e mais complexas do que aquelas que investimos. Os católicos tentam resolver de várias formas este aparente desequilíbrio, mas a mais corrente e experimentada é com uma boa almoçarada seguida duma sesta (também surtia efeito com foda) bem dada.

Acabei de cumprir apenas a primeira metade da receita (e está tudo aos gritos cá em casa devido a um problema de logística doméstica do qual eu já devidamente e em muito boa hora me auto-absolvi) e lembrei-me disto por causa do excerto do evangelho de S. Mateus que é lido hoje nas missas. Contém uma das passagens (vem quase logo a seguir ao hiper - mas não sobre - valorizado sermão da montanha) mais chispêtê-ó de todo a mensajário cristão: como resposta ao 'olho por olho dente por dentre' judeu é apresentado o 'dar a outra face' que parece vir diafanamente de rigorosamente lado nenhum. Nunca ninguém viverá o suficiente para perceber esta merda, e por mais poesia que lhe jorrem por cima, carregaremos o fardo como mulas distraídas. Penetrando no mais intimo da alma humana mesmo sem recorrer (ainda) à iluminação trágica, Jesus acabava de arrasar - antes de terem nascido - com todas as estruturas do psicologismo moderno, pedindo-nos aquilo que nem sequer se podia saber que existia, e acenando com impossíveis ao mesmo ritmo dos sorrisos nos anúncios do pingo doce. A proximidade com a fé católica põe-nos constantemente as mãos à beira do fogo. Deus sempre teve imensa lata - pode chamar-se 'o absurdo da fé' - e todos estamos destinados a flausinar pela vida com as sensações mal disfarçadas de imperfeição (nos melhores dias) e de grandes merdosos (nos restantes) . Felizmente, como o título esclarece, nem sequer vivemos uma vez. É a chamada abébia da eternidade.

O titulo é um aforismo de Karl Kraus, (um tipo que irá estar muito na moda) em Sprüche und Widerspruche, pág 177, ed Suhrkamp

A imagem é de Jheronimus Bosch, (sempre na moda) De Kruisdraging, do msk de Gent

MnhEC

[desmaker corner]

Miguel Esteves Cardoso escreve há uns tempos no Público sobre as miudezas da sua vida, a chamada vidinha. Mas, infelizmente, - do que acompanho, há sempre esta ressalva técnica - não conseguiu descolar da figura que fazem aqueles jogadores de futebol que tiveram carreiras de sucesso baseadas na sua grande velocidade (geralmente pelos flancos) e que, depois, sem essa muleta da velocidade, tentam adaptar o seu jogo às novas circunstâncias, com novas fintas e outras posições no campo, uma espécie de futre a experimentar a posição de beckenbauer. Man, vai por mim, não deu, não dá.

Tens de perceber, pá, nós fizemos aquele esforço atento para ver o que ias conseguir, do género: «vá, pode ser que ele dê o tal golpe de asa, (como talvez Tolstoi também conseguisse fazer anedotas de alentejanos, ou Pavese conseguisse também largar uma ou outra piada sobre pívias de elefantes) ele talvez consiga descer ao sentimento-do-dia-a-dia e dar-lhe um pinote para cima, pô-lo no parnaso daquelas merdas que fazem comichão onde menos se espera e nos ficam a gargarejar da goela ao fígado». Mas fazer do prosaico o que mais ou menos facilmente se faz do caricato, do horrível, ou do estranho, é o 13ª trabalho de Hércules, e então fazer 'do nosso' o que se consegue fazer com brilhantismo com 'o dos outros', ou com 'o da malta toda' é algo que estará ao alcance de muito poucos.

O sentimento banal, o sentimento da maralha, o que fode sem foder, a solidão parva, a companhia estúpida, o cheiro que incomoda, um hemograma estragado, a traição desnecessária, a dor nas costas, a alegria que é apenas alegria, a vaidade inconsequente, o alívio da mijinha a sair, isso é o que mais foge a quem quer escrever em regime de auto-caravana-com-montra, e é isso que pode matar ou salvar quem ambiciona ser diarista sem rede. Não estás a conseguir. Não conseguiste sair daquela teia que monta a mera agudeza de espírito, e quando esfregaste outra vez na lamparina o génio pôs-te a língua de fora. A vidinha é muito traiçoeira quando queremos fazer dela a estrela da companhia.

Ontem, quando MEC escreveu, a tentar tocar-nos na glândula, «esperar não é necessariamente ficar à espera - é viver enquanto não acontece uma coisa que , afinal, queremos menos do que viver apenas» ficou precisamente a meio do caminho de exprimir (e comover-nos realmente) que o 'esperar-com' é o toque de Midas que Deus nos deu para transformar o tempo em ouro.

História Breve do Egoísmo. Hipótese #3

De tous les moyens de faire sa fortune, le plus court et le meilleur est de mettre les gens à voir clairement leurs intérêts à vous faire du bien.

La Bruyère, Les Caractères, pág 276, ed Le Livre de Poche

História Breve do Egoísmo. Hipótese #2

Quelles que soient nos prétentions, nous ne pouvons, au fond, rien demander de plus à la vie que la permission d'être seul. Nous lui offrons ainsi l'occasion de se montrer génereuse, et même prodigue...

Cioran (sempre na moda nas colecções Outono/Inverno), Le Crépuscule des Pensées, pág 375, Oeuvres, ed Gallimard

música à 6ª

História Breve do Egoísmo. Hipótese #1

On commence par n'aimer personne. Puis on aime tous les hommes en général. On n'en aime plus ensuite que quelquns-uns, puis une seul et puis le seul.

Albert Camus, (agora na moda outra vez)  Carnets II, pág 255, ed gallimard.

The dark side of the wool # n+3

Na equação da tosquia presta-se vassalagem a duas incógnitas: o alívio da ovelha e o lucro do fiadeiro.

verso à terça

Importa a liberdade
De não ceder à vida,
Um segundo sequer.

Ser de pedra por fora
E só por dentro ser.

- Falavas? Não ouvi.
- Beijavas? Não senti.

Natércia Freire , in Liberta em Pedra

manual de camuflagem de escrita

Existem os clássicos desinibidores de discurso, como sejam situações caricatas da realidade, entrevistas de políticos, descobertas da pólvora, gaffes diversas, cenas absurdas, pores-do-sol com lavagante, preocupações apocalípticas, revelações do Altíssimo, and so on, que vivemos, presenciámos ou ouvimos falar, mas, ao fim e ao cabo, tratam-se sempre de motivos banais para alimentar uma qualquer necessidade fútil de nos exprimirmos, exibirmos, desabafarmos, vendermos, o que seja. Mas muito mais interessante é todo o universo que se desenvolve em torno dos inibidores de discurso, tudo aquilo que gravita na zona das circunstâncias sobre as quais nós quereríamos mesmo falar, mas que, pelas mais diversas razões, não sabemos por que ponta lhes pegar, não só pela dificuldade e ambiguidade das mesmas, mas também pelo receio típico de 'o que irão pensar disto' a vasta multidão de marios castrins que nos rodeia. Enquanto as mulheres dominam relativamente bem (se pusermos de parte o mecanismo histérico, claro) esta dinâmica do subterfúgio, os homens revelam-se quase sempre uns verdadeiros trapalhões, e a única técnica que acabam por utilizar é o clássico, mas comovente, meter-os-pés-pelas-mãos, se bem que sempre de ar convencido, como que acabadinhos de sair duma sessão de bisca lambida no Pentágono. Ora como a escrita camuflada & reprimida é uma arte e uma técnica que deve respeitar certos princípios básicos, hoje o dicionário não ilustrado decidiu vertê-los sobre essas delicadas pérolas de bom gosto que são as privilegiadas córneas de vexas. (entradas 1352 a 1359)


O Palavrão - O palavrão transmite sempre aquela ideia de que quem o usa está à vontade no tema que aborda, e tem inclusivamente algum distanciamento; por exemplo, todos assumimos que quem utiliza a delicada expressão 'a cona da tua tia' jamais tenha tomado contacto, sequer visual, com o património ginecológico de tão estimada senhora.

A Personagem Fictícia - Este instrumento de gestão-da-camuflagem-de-escrita é sempre uma faca de dois gumes. Em primeiro lugar, quando se apresenta uma personagem temos de contar que ela vem imediatamente acompanhada de um néon a apontar-lhe com setinhas de bordel galego dizendo «Olá, este sou eu». Por outro lado, o personagem escolhido poderá entrar na cabeça do leitor identificando-o com outra pessoa qualquer da sua vida que, quem escreve, não fará a mais pequena ideia quem seja, abrindo uma típica batalha de espelhos, que dão azar ao quebrar como saberá qualquer supersticioso que se preze. Assim, a personagem escolhida deverá assumir-se com evidentes níveis de undergroundidade que permita logo uma primeira e imediata reacção de afastamento, se possível acompanhado de dois ou três «credo's» seguido dum também piedoso «ah, mas isto não tem nada a ver comigo/connosco».

O Com a Verdade me Enganas - Trata-se evidentemente de um terreno minado, avisa-se de antemão, pois não sabemos quando parar, ou seja: a verdade é uma babuschka de encaixe e é desconhecido qual o melhor estádio para que ela cumpra a sua função de cortina dela própria. Alguns especialistas apontam com insistência para a utilização do método 'que se foda', em que as verdades-que-pretendem-ser-mentiras devem ser apresentadas de chofre, mas já foram encontrados casos em que a tal verdade ainda não estava totalmente expressa e já o emissor tinha a cavidade oftalmológica preparada para um programa de casos bizarros no Canal Odisseia.

A Frase Críptica - É um dos casos em que a probabilidade de sucesso é grande e já foram observadas situações de enorme eficácia tanto com partes de receitas de molho bechamel como com versos do Philip Larkin. De todo o modo, o risco que está associado a este instrumento de 'escrita reprimida-camuflada' é o mesmo do de uma placagem incompleta no râguebi: podemos ficar bem agarrados ao lombo dum tipo e a bola já estar noutro.

A Alegoria - Um verdadeiro clássico, usado desde tempos imemoriais, e que já deu desde para adormecer meninos até desflorar sherazades. No entanto, este método encerra nele próprio a chave escorpiónica do seu sucesso ou insucesso, pois nesta técnica é sabido logo à partida que há sempre um outro algo-significante por detrás daquilo que sapo está a dizer ao ouvido da princesa. É também importante registar que, por outro lado, fica normalmente uma aureola de bondade a circunvalar quem alegora e que não deve ser desperdiçada, pois é aquele tipo raro de bondade sofisticada de quem nos diz para irmos para o senhor Caralho, sem sequer ter referido indelicadamente a presença dos meninos Tomates por perto.

A Ilustração - A utilização das propriedades tão epifânicas como camufladoras duma imagem é antiga. Um 'rabo' desenhado é simultâneamente mais eloquente e mais ambíguo que um 'rabo' dito, e inclusive potencialmente mais rico que um 'rabo' conceptualizado (e ainda mais o será se não tiver sido visto um exemplar em decentes condições anatómicas nas semanas anteriores). Contudo, a utilização da ilustração como técnica de camuflagem-repressão de discurso abre sempre um leque de incógnitas que muitas vezes o emissor não pode controlar derivado ao pixel, dando origem aos famosos pixeldramas, já se registaram vários casos em que ramos de rosas foram confundidos com fígados de vitela, tendo homens verdadeiramente apaixonados ficado a comer iscas para sempre em todos os dias dos namorados.

O Brincalhão, ter fama de - Inevitavelmente existe uma técnica relacionada com a gestão das expectativas. Quem conseguir criar em torno de si o estigma/carapaça de que 'nunca consegue falar a sério', paga um preço óbvio de irrelevância intelectual e mesmo moral, mas por outro lado está imune à ditadura da interpretação e pode ir enviando luxuriosamente farpas recebendo apenas risinhos parvos em troca, (já foram encontrados casos isolados em que os mais engraçadinhos chegaram a receber uma roçadela de coxa por debaixo da mesa - mas ali um pouquinho mais a cima, nada), pois não têm qualquer credibilidade as histórias em que afinal é o bobo que anda a comer a rainha.

A Citação-com-assobiadela-lateral - Usar a boca de terceiros sempre foi um ícone cultural desde a antiguidade, passando por provar comida para testar venenos até uma outra prática de implicações climaxéricas que o elevado nível de pudor desta vossa casa me impede de referenciar. Nesta categoria, a utilização de algo que outros já disseram permite quase sempre tirar da cartola dois coelhos de uma só ilusionada: o coelho da simulação de possuirmos uma larga albarda cultural e o coelho da simulação da capacidade de ironizar. Quase sempre as citações escolhidas para camuflagem de algum sentimento em particular (e de todas as verrugas de espírito em geral) vêm com esse condimento, diz-se mesmo que melhor que a ironia para simular inteligência só mesmo fazermo-nos acompanhar por uma gaja boa, sim, porque todos temos um bocadinho de salman rusdie dentro de nós, e alguns inclusive por fora, como aquele cabrão do monhé que uma vez me vendeu na almirante reis uma mesa de cabeceira pelo preço dum contador indo-português.

Mário e o seu Calendário

Hesitava todas as quintas, dissimulava, feito um pintas, sempre na primeira sexta do mês, e na última escrevia meia dúzia de glosas, sentia-se incompreendido às segundas-feiras chuvosas e, horror: dizia sempre uma mentira no dia do senhor; mas era um bocado banana, pensava na morte e em todos os males secundários a meio da semana, jejuava fora dos dias de preceito, mas nunca teve tendência para bater no peito, sentia-se só todos os dias seis, fornicava quando calhava, calhava-lhe always, iam-lhe comer à mãozinha nos dias trinta e um, chamavam-lhe senhor doutor nos sábados de muito calor, e chefe nas quartas de frio, «às terças nunca me rio», desenhava nos fins de semana prolongados, só no natal escutava piedosos recados, nunca desconfiava de ninguém nos dias pares e, dizia-se, guardava a quaresma para os azares, mesmo para os que aparecem de repente; guardava para o carnaval o acinte, numa ou outra sexta achava-se atraente, logo ridículo no sábado seguinte, apreciava conversa mole e revelava-se sempre fluente ao pôr do sol. Aos dias treze dizia: não tenho nada que não mereça. Acordava todas as noites de terça e resumia para si o sonho interrompido, se bem que tenha sonhado sempre sem ajuda de freud nem cupido. Tirando às quartas, em que se apaixonava sempre por duas mulheres bem fartas que encontrava a caminho da missa, vivia desencantado, seduzido apenas pela sua governanta suíça, mulher de boa rês, e que lhe fazia ovos cozidos todos os dias primos do mês. Nunca ames quem não gostes, dizia sempre no dia de Pentecostes.

Lossana nas Alturas

Hoje, Grande Loição, quando anunciou a sua moção, afirmou solenemente que «Portugal estava num beco».

[ a grande fissura ideológica no bloco é entre a corrente 'portugal está um trapo' liderada por L. Fazenda e 'portugal está uma nojeira' onde pontifica JM Pureza. Louçã assume-se equidistante a todas as correntes e por isso, à primeira vista, terá optado pela solução de teor mais reformista 'beco']

Mas se ouvirem bem a declaração repararão certamente numa nuance pronunciográfica: ele fonetou béco, em vez do mais tradicional e corrente - a sul de Pontevedra e a oeste de cáceres - bêco. Julgo estarmos perante uma significativa e ponderada alteração. Não se trata de uma, agora se diria, reforma fonográfica em preparação (depois de esgotado tema ortográfico) mas sim duma verdadeira inovação no que diz respeito aos locais mitológicos onde portugal se pode situar, e inclusivamente à abrangência e amplitude do conceito de beco. Como sabemos portugal está recheado de boas metáforas para a sua categoria 'local & situação de merda', tendo-se destacado os já clássicos «pântano» e «tanga», para já não falar da nossa metonímia de recurso, o sempre presente «buraco», uma espécie de mário wilson das metáforas-de-local-situação, mas desta vez Louçã coloca esta estrutural questão num patamar de sofisticação raramente visto. Há que fazer notar que beco, na sua versão bêco, seria registado como uma mera rua sem saída, e nesse caso correr-se-ia o risco de até considerar portugal como um local calmo para as crianças brincarem sem o perigo dos carros, ou dos tgv's a passar em grande velocidade, por isso Louçã introduz a variante de beco que é béco, ou seja, para além de uma via sem saída há o perigo de choques graves (daí o acento) e inclusive de precipitações várias ( a presença, nem que imaginária, do chapelinho circunflexo poderia dar a ideia de protecção). O beco, na sua versão béco, mostra-nos assim definitivamente o local, não do homem no seu labirinto ( o labirinto é uma metáfora de direita, como se sabe) mas do homem encurralado entre a espada do capital e a parede da escravidão alienante, o homem no seu béco, que quanto muito pode aspirar chegar a praceta e pouco mais.
Se Zeus usava a ninfa Eco para distrair a mulher, Louçã usa o béco para instruir o povo.

The dark side of the wool # n+2

A explicação do Mundo

Aparentemente uma auditoria ao FMI (não confundir com o Facundo Macário Induvial de quem aqui deixei extractos do diário há uns meses) relatou que este organismo não teria sido capaz de detectar a aparecimento de uma crise financeira em larga escala porque (em expressões sacadas de um artigo do Público) padeceu de «elevado grau de pensamento de grupo», foi afectado de «captura intelectual» e deixou-se levar por um «quadro mental generalizado». Bonito: o estado do mundo todo escarrapachado em três larocas expressões dum soturno relatório de auditoria. Quem melhor conhece o rebanho é o talhante e não o pastor.

A Alegoria de Leonardo

Leonardo Bluff era encadernador de revistas nos arredores de Bruxelas quando um dia, depois de ter assistido ao atropelamento de um bezerro por uma charrete (uma versão aparolada do que a cena do cavalo chicoteado significou para Nietzsche, poderemos todos perfeitamente deduzir) decidiu que tinha de introduzir algum sentido na sua vida, e diferente daquele ao que lhe estavam a levar a cola, o fio e a cartolina que preenchiam os seus dias correntes, ou mesmo o curtume, nos dias melhores. Olhando para o bezerrinho (se estiverem a ficar já muito comovidos podem mudar para a tvi) Leonardo viu que o destino é um negócio com Deus. Fechou-se na casa que uma tia avó da parte da mãe tinha em Lille, e que ele herdaria quando a velha batesse a bota (leio-lhe apenas os pensamentos, registe-se) e esperou a revelação entre duas (dúzias) de kronenbourges. Enquanto jogava um crapôzinho percebeu com mais detalhe o significado desta nova forma de lidar, definir e encarar Deus. Pegou num papel e escreveu numa letra que não deixaria dúvidas ao rei do míopes : «Tudo é expectativa e preço - esboço para uma Teologia da Licitação, ass: Leonardo Bluff». E não parou.

Com a ajuda de Natalie Fenêtre, (uma catequista de Estrasburgo que ficara conhecida por fazer demonstrações de fé caminhando sobre as águas em Colmar, mas que acabou desmascarada quando o seu namorado, mergulhador e escafandrista, a trocou por uma suíça polidora de caixas de charutos) organizou uma série de conferências em que expunha com mais detalhe a sua nova 'Teologia da Licitação', na qual a primazia era dada a uma relação individual, mas tensa, trilleriana poderá mesmo dizer-se, com Deus, com Ele a testar-nos constantemente na base dum trapézio dúvida-risco-culpa-salvação, mas que à última hora faz uma piscadela de olho, indicando a jogada certa aqueles que nunca tinham desistido de ir a jogo, mesmo depois de terem empenhado a última virtudezinha que lhes restasse. «Deus, o último Licitador», dizia invariavelmente Leonardo Bluff no final das suas palestras. Natalie acabou por ter de deixar Leonardo por causa dum bailarino loiro (artificial) de Brugges, mas a sua carreira teológica estava lançada, e não havia conferência episcopal que não tivesse de reforçar o stock de café e shampoo para a caspa a fim de descortinar se estavam na presença dum charlatão, dum herege, ou dum mero encadernador com uma lombada a mais.

O apogeu da carreira de Leonardo dá-se com a publicação dos seus textos escolhidos, uma selecção que ficou conhecida nos meandros por 'Deus pode ter a cartinha que te falta'. Tornou-se - estando incluída nestes textos - especialmente famosa a sua 'Alegoria do Mundo em Naipes' em que este é representado como uma mistura de mesa de jogos com sala de leilões. A nossa vida jogar-se-ia sempre na carta que precisávamos para seguir jogo: ora arriscamos em aceitar uma carta desconhecida do baralho, ora vamos para a sessão de licitação correndo o risco de não conseguir comprar a carta. Deus assume vários papéis na alegoria, tal como na nossa vida, ora licita em paralelo connosco obrigando-nos a subir as paradas, ora faz de croupier com sinalefas várias para nos indicar se devemos aceitar a carta ou não. Todos os elementos necessários para ganharmos estão lá, mas a nossa ansiedade em tentar emitir sinais contraditórios para o resto da mesa, a desconfiança e o medo de entregar demasiado de nós e ficar sem o suficiente para uma nova jogada impedem-nos de ver.

Quando Leonardo Bluff apresentava a sua Teologia da Licitação através desta alegoria parecia um royal straight flush com pernas, gesticulava, abria as mãos e quase dançava no palco como que querendo entrar dentro de quem o ouvia, sendo ainda hoje recordada a cena em que simulando o Deus-croupier entrou pela plateia adentro e beijou Celine Straussman duma forma que a deixou inconsciente por segundos. Quando esta recuperou le sens informou que tinha visto Nossa Senhora envergando um manto bordado com o símbolo de copas. Esta cena acabou por ser a gota de água (não benta, claro) para as congregações de controlo e foi exigida uma explicação decente a Leonardo. Mas Leonardo era apenas um encadernador, juntara folhas toda a sua vida até aquele fim de semana em Lille. Tinha gostado do sabor do beijo de Celine e pensou que podia ter alguns sonhos com ela mesmo que Nossa Senhora só lhes voltasse a aparecer de camisolinha de gola alta, e disse-lhe determinado: «Vá, Celine!». Depositou a sua teologia num Fundo de Heresias (mas sem jogadores de futebol) e vive agora dos rendimentos da alegoria. Uma coisa ficou provada, quando Deus pisca o olho é de ir a jogo. We have no more baralhos, como diria o outro.

do félix vallotton


para a mm

verso à terça

Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens.

Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração

Diremos terra mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.

Eugénio de Andrade, em Mar de Setembro

'o que parecia irrepetível repete-se sem se repetir'

(frase duma carta de Julio Cortazar a Juan Carlos Onetti (a propósito da obra deste) e que aparece citada na badana interior do 'O Estaleiro', editado por cá no final do ano passado)


Munique, Setembro de 2013


Malvina Merckel, James Camarão, Pívio Berlaitoni e Nicolas Bruni reuniram-se em Munique (75 anos depois de uma outra 'famosa' reunião) para analisar de que forma se podem compatibilizar os desejos alemães de criar uma zona exclusiva para o seu novo europanzer (um novo lebesraum financeiro) e o equilíbrio no artesanato europeu, designadamente a protecção ao queijo feta, ao bloomsday, às castanholas,e à loiça das caldas. Sócrates, que tinha fornecido os computadores para o playcenter onde estavam os filhos dos diplomatas, teve também direito a comparecer, mas atrás do cortinado a controlar as fichas triplas.

James Camarão - Querida Malvina, não achas um bocadinho de mais essa tua coisa de quereres criar uma nova moeda só para comprar os produtos alemães...

Malvina Merckel - James, filho, credo, pareces um berbigão aflito, eu só quero que as pessoas não gastem dinheiro desnecessário e que possam poupar para ter Audis sem ficar depenados e depois nem lhes sobrar para comprar roupa interior.

Pívio Berlaitoni - Mas, Signora Merckel, uma ou outra miúda sem roupa interior até...

Malvina Merckel - Pivio, se vocês se portarem bem e começarem a dar nomes alemães às marcas de sapatos eu prometo que te deixo pagar ainda no euro-trapalhão um ou outro jantar às tuas berlusnettes.

Nicolas Bruni - Mme Merckel, em primeiro lugar deixe-me dar-lhe os meus cumprimentos por parte da minha Carla, aliás ela disse-me que se for necessário podemos passar já a chamar-nos Brunns ou Brunners, escolha a sra dra kaiserina, que tem tão bom gosto e até parece altíssimo a falar. Em segundo lugar queria perguntar-lhe se não seria possível pelo menos os patês também serem pagos na nova moeda, só para manter a dignidade, está a ver...

Malvina Merckel - O que me preocupa antes de tudo é que vocês não andem a gastar o dinheiro em hamburguers americanos ou em trapos chineses e prometo que depois desta medida de Gerechtigkeit und Trieden financeira vos deixo em sossego, com as vossas glórias, penachos e fardamentos do passado...

James Camarão - Saiba, Frau Merckel, que eu pessoalmente sempre defendi que devíamos ser compreensivos consigo, que a Frau apenas estava a zelar pelo equilíbrio financeiro da Europa, quanto muito quereria aumentar as exportações de apfeltrudel e pouco mais... Fico assim muito descansado em perceber que nada mais a move que um saudável gosto em defender as nossas finanças públicas contra os ataques dos mercados, os vícios da despesa e as manias dos franceses.

Malvina Merckel - Sim, aliás, só quero que se estabeleça esta zona demarcada do europanzer para que os produtos alemães não se estraguem, ou então para que depois vocês tenham sempre algum dinheirinho de parte para as pilhas...

Nicolas Bruni - Mas diga-me, Miss Merckel, pensa que posso dizer à minha Carla que ela pode ficar descansada e que vai poder continuar a comprar os seus vestidos e a tocar as suas musiquitas?...

Malvina Merckel - Querido Nicolas, mein Schatzi, tu és, como é que vocês dizem, um bijou, sempre tão sensível e tão cuidadoso, quando vocês também andarem com a calças na mão vou dizer que o teu rabinho é o mais lindo de todos, está descansado.

Pivio Berlaitoni - Signora, e não seria possível cunhar umas quantas moedas com a minha esfinge?, pelo menos para usar naquelas máquinas que dão preservativos...

Malvina Merckel - Pode já ficar em acta: a nova moeda de 50 cents do europanzer vai-se chamar 'Der Pivio', e será possível trocar cada 'Der Pivio' por uma nota dos actuais 5 eurotrapalhões, recebendo ainda de bónus um título do tesouro grego ou então um cartão do cidadão português.

James Camarão - Miss Malvina, e mesmo assim acha que ainda é necessário que os portugueses, os gregos, os espanhóis e os irlandeses para receber uns europanzers tenham de aprender a fazer os rechenvorteile?

Malvina Merckel - Ó meu lavagantezinho, claro que não, vamos por partes, a nova Escala de Merckel com as condições para ter acesso ao europanzer é esta:

nivel 1. saber distinguir somar de subtrair
nivel 2. dar ligeiras arregaladas (com kit de pestanejo) de olhos a nomes com dois dablius
nivel 3. saber o nome completo da mulher de Guilherme II (Augusta Vitória de Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glücksburg-Augustenburg, para proveito dos leitores), também conhecida como Dona.
nivel 4. saber os vários onze titulares do Bayern de Munique que foram campeões da europa na década de 70
nivel 5. ter em frasquinhos um bocado de água de cada um dos afluentes do Reno organizados por ordem alfabética
nivel 6. possuir fotografia autografada de Bismark com dedicatória datada do dia do Crisma (se for da 1ª comunhão também serve em fases de excedente de liquidez)

Nicolas Bruni - Ai, Mme, ainda bem, que susto, cheguei a pensar que tinha de vender as jóias de ma Carlinhe.

Pivio Berlaitoni - Eu sempre achei que as alemãs eram as mais giras e as melhores, quero esclarecer, e se por acaso tive de experimentar doutras qualidades foi porque me disseram que aquele sujeito marialva, o Schengen, andava a tentar arrebanhar de tudo logo nas fronteiras.

James Camarão - Que mulher sensível, que sentido de Estado, que noção do essencial, [que pena o Henrique VIII já por cá não andar senão ainda marchavas], que alívio por estas tão serenas e esclarecidas palavras, já me estou a ver a aterrar em Itrao com os lencinhos brancos a abanar de tão boas notícias.

Malvina Merckel - Vá, meus Queridos, e agora andor, que eu tenho de ir rapidamente aos saldos comprar a Republica Checa porque senão chego lá tarde e já não há para o meu número, e ainda tenho de ficar com uma Eslováquia ou uma Hungria. Zé Zocrates, filho, o meu telemóvel já está carregado?

acordar com o pê de fora

Os portugueses têm uma relação umbilical com o problema recente no Egito que me parece óbvia e que ninguém (mon dieu) dá a devida nem a indevida saliência: com a reforma ornitografica o dito perdeu o 'p'. Fosgasse e ninguém vê isto? É evidente que sem o pê, o Egipto não é a mesma coisa. Ao menos que o pê tivesse ficado guardado nas Pirâmides que já têm um e que de certeza não se incomodariam de ter outro, ou então ao colinho da Esfinge a fazer de enfeite, mas não, deram-lhe o corte de fininho e ficaram a assobiar para o lado, a falar do carlos castro e do jorge lacão. Pensam o quê, que o pessoal lá do crescente fértil não se ia revoltar com isso? Quer dizer, pensavam que os egípcios iam continuar assim na vidinha deles, mubaraque para aqui, mubaraque para ali, assistindo impávidos e serenos aos tugas a aliviarem-se do seu, deles, pê!? Uma civilização que deu amenófis e ramsés, domesticaram os gatos e sabe-se lá se até os douradinhos da iglo não foram os gajos que inventaram? Os egípcios sabem muito bem que agora passariam a ser o alvo predilecto dos trocadilhos, egitar antes de usar, egito ergo sum, ou mesmo, já nos limites, deixa-me dar-te um egito nessas bochechas. Qualquer dia admirem-se de ainda haver problemas na Ictália.

música à sexta

The But Biography

Desde que foi dispensado de ter pensamentos profundos que se dedicou à vã diletância, mas como não tinha efectivos dotes de diletante esta transformou-se em verborreia, mas como a escrita não lhe estava gravada no cabrão do genoma, deslocou-se para o paleio, mas como lhe faltavam sempre as palavras importantes assentou na tirada rápida, mas ao não ser iluminado pelos raios do sincretismo pôs-se a estudar os russos, mas como não fora talhado para a tristeza aplicou-se na piada lateral, mas como deixaram de o olhar de frente refugiou-se no desconstrutivismo, mas como ficou com as ideias presas por arames tentou confortar-se na aguarela abstracta, mas como lhe doíam sempre as costas inclinou-se um pouco para a literatura da decadência, mas como nem sequer estava a decair em condições entusiasmou-se com o memorialismo, mas como não tinha recordações decentes experimentou a fantasia, mas como fantasiava em excesso ponderou a playstation, mas como emperrou num irritante 2º lugar dum sinuoso circuito em Tóquio tentou recuperar a sua eventual faceta sarcástica, mas como afinal nem era uma boa faceta deu humildemente a outra faceta e envolveu-se a escrever críticas de pintura de quadros nunca pintados, mas como ninguém pintava os quadros que não estavam pintados voltou-se para o folk alternativo, mas como o folk já não atava nem alternava debicou um pouco na análise política, mas como barrosão virou cherne e tanga virou bailout ensaiou o amor, mas como o amor é fogo que arde sem se ver e ele era da linhagem do são tomé arrastou-se para o realismo mágico, mas como a magia tinha abandonado a realidade foi espiolhar a história contrafactual, mas como contra factos fodem-se os argumentos decidiu entregar-se à bebida, mas como o álcool se evapora mais rapidamente que a neura rezou dois terços, deu um beijo na testa que tinha mais à boca, soprou a franja mais linda que conhecia e adormeceu olhando sem lágrimas para o redentor mais crucificado que a noite lhe concedeu.

verso à terça

Nada do que é visível e,
à primeira vista, situado e transformável,
aqui surge com outro valor;
o vazio,
designando assim aquela porção de «ausência»
destacada da Ausência mais geral,
o substitui melhor,
ou antes,
o troca por um sentimento puramente humano,
acessível e,
em certos instantes de uma vida,
absoluto e necessário.


Nuno Júdice , em 'O mecanismo romântico da fragmentação'