Existem os clássicos desinibidores de discurso, como sejam situações caricatas da realidade, entrevistas de políticos, descobertas da pólvora, gaffes diversas, cenas absurdas, pores-do-sol com lavagante, preocupações apocalípticas, revelações do Altíssimo, and so on, que vivemos, presenciámos ou ouvimos falar, mas, ao fim e ao cabo, tratam-se sempre de motivos banais para alimentar uma qualquer necessidade fútil de nos exprimirmos, exibirmos, desabafarmos, vendermos, o que seja. Mas muito mais interessante é todo o universo que se desenvolve em torno dos inibidores de discurso, tudo aquilo que gravita na zona das circunstâncias sobre as quais nós quereríamos mesmo falar, mas que, pelas mais diversas razões, não sabemos por que ponta lhes pegar, não só pela dificuldade e ambiguidade das mesmas, mas também pelo receio típico de 'o que irão pensar disto' a vasta multidão de marios castrins que nos rodeia. Enquanto as mulheres dominam relativamente bem (se pusermos de parte o mecanismo histérico, claro) esta dinâmica do subterfúgio, os homens revelam-se quase sempre uns verdadeiros trapalhões, e a única técnica que acabam por utilizar é o clássico, mas comovente, meter-os-pés-pelas-mãos, se bem que sempre de ar convencido, como que acabadinhos de sair duma sessão de bisca lambida no Pentágono. Ora como a escrita camuflada & reprimida é uma arte e uma técnica que deve respeitar certos princípios básicos, hoje o dicionário não ilustrado decidiu vertê-los sobre essas delicadas pérolas de bom gosto que são as privilegiadas córneas de vexas. (entradas 1352 a 1359)
O Palavrão - O palavrão transmite sempre aquela ideia de que quem o usa está à vontade no tema que aborda, e tem inclusivamente algum distanciamento; por exemplo, todos assumimos que quem utiliza a delicada expressão 'a cona da tua tia' jamais tenha tomado contacto, sequer visual, com o património ginecológico de tão estimada senhora.
A Personagem Fictícia - Este instrumento de gestão-da-camuflagem-de-escrita é sempre uma faca de dois gumes. Em primeiro lugar, quando se apresenta uma personagem temos de contar que ela vem imediatamente acompanhada de um néon a apontar-lhe com setinhas de bordel galego dizendo «Olá, este sou eu». Por outro lado, o personagem escolhido poderá entrar na cabeça do leitor identificando-o com outra pessoa qualquer da sua vida que, quem escreve, não fará a mais pequena ideia quem seja, abrindo uma típica batalha de espelhos, que dão azar ao quebrar como saberá qualquer supersticioso que se preze. Assim, a personagem escolhida deverá assumir-se com evidentes níveis de undergroundidade que permita logo uma primeira e imediata reacção de afastamento, se possível acompanhado de dois ou três «credo's» seguido dum também piedoso «ah, mas isto não tem nada a ver comigo/connosco».
O Com a Verdade me Enganas - Trata-se evidentemente de um terreno minado, avisa-se de antemão, pois não sabemos quando parar, ou seja: a verdade é uma babuschka de encaixe e é desconhecido qual o melhor estádio para que ela cumpra a sua função de cortina dela própria. Alguns especialistas apontam com insistência para a utilização do método 'que se foda', em que as verdades-que-pretendem-ser-mentiras devem ser apresentadas de chofre, mas já foram encontrados casos em que a tal verdade ainda não estava totalmente expressa e já o emissor tinha a cavidade oftalmológica preparada para um programa de casos bizarros no Canal Odisseia.
A Frase Críptica - É um dos casos em que a probabilidade de sucesso é grande e já foram observadas situações de enorme eficácia tanto com partes de receitas de molho bechamel como com versos do Philip Larkin. De todo o modo, o risco que está associado a este instrumento de 'escrita reprimida-camuflada' é o mesmo do de uma placagem incompleta no râguebi: podemos ficar bem agarrados ao lombo dum tipo e a bola já estar noutro.
A Alegoria - Um verdadeiro clássico, usado desde tempos imemoriais, e que já deu desde para adormecer meninos até desflorar sherazades. No entanto, este método encerra nele próprio a chave escorpiónica do seu sucesso ou insucesso, pois nesta técnica é sabido logo à partida que há sempre um outro algo-significante por detrás daquilo que sapo está a dizer ao ouvido da princesa. É também importante registar que, por outro lado, fica normalmente uma aureola de bondade a circunvalar quem alegora e que não deve ser desperdiçada, pois é aquele tipo raro de bondade sofisticada de quem nos diz para irmos para o senhor Caralho, sem sequer ter referido indelicadamente a presença dos meninos Tomates por perto.
A Ilustração - A utilização das propriedades tão epifânicas como camufladoras duma imagem é antiga. Um 'rabo' desenhado é simultâneamente mais eloquente e mais ambíguo que um 'rabo' dito, e inclusive potencialmente mais rico que um 'rabo' conceptualizado (e ainda mais o será se não tiver sido visto um exemplar em decentes condições anatómicas nas semanas anteriores). Contudo, a utilização da ilustração como técnica de camuflagem-repressão de discurso abre sempre um leque de incógnitas que muitas vezes o emissor não pode controlar derivado ao pixel, dando origem aos famosos pixeldramas, já se registaram vários casos em que ramos de rosas foram confundidos com fígados de vitela, tendo homens verdadeiramente apaixonados ficado a comer iscas para sempre em todos os dias dos namorados.
O Brincalhão, ter fama de - Inevitavelmente existe uma técnica relacionada com a gestão das expectativas. Quem conseguir criar em torno de si o estigma/carapaça de que 'nunca consegue falar a sério', paga um preço óbvio de irrelevância intelectual e mesmo moral, mas por outro lado está imune à ditadura da interpretação e pode ir enviando luxuriosamente farpas recebendo apenas risinhos parvos em troca, (já foram encontrados casos isolados em que os mais engraçadinhos chegaram a receber uma roçadela de coxa por debaixo da mesa - mas ali um pouquinho mais a cima, nada), pois não têm qualquer credibilidade as histórias em que afinal é o bobo que anda a comer a rainha.
A Citação-com-assobiadela-lateral - Usar a boca de terceiros sempre foi um ícone cultural desde a antiguidade, passando por provar comida para testar venenos até uma outra prática de implicações climaxéricas que o elevado nível de pudor desta vossa casa me impede de referenciar. Nesta categoria, a utilização de algo que outros já disseram permite quase sempre tirar da cartola dois coelhos de uma só ilusionada: o coelho da simulação de possuirmos uma larga albarda cultural e o coelho da simulação da capacidade de ironizar. Quase sempre as citações escolhidas para camuflagem de algum sentimento em particular (e de todas as verrugas de espírito em geral) vêm com esse condimento, diz-se mesmo que melhor que a ironia para simular inteligência só mesmo fazermo-nos acompanhar por uma gaja boa, sim, porque todos temos um bocadinho de salman rusdie dentro de nós, e alguns inclusive por fora, como aquele cabrão do monhé que uma vez me vendeu na almirante reis uma mesa de cabeceira pelo preço dum contador indo-português.
4 comentários:
Aucune amertume n'est plus grande que celle d'un homme qui découvre qu'il a cru à un fantôme!
(Les Versets sataniques)
ass: o salmão
Nenhuma amargura é tão grande como aquela de um homem que descobre nem sequer num fantasma ter acreditado.
ass: a faneca
Gostei mt Meu Senhor.
Vou colocá-lo (o seu post, entenda-se) na minha lista privada de leituras.
Espero que não seja expulsa do seu scrílego Império Blogal por já ter cometido (e ai! que bem que sabe Meu senhor) a tal de 'roçadela de coxa por debaixo da mesa' ...
Bjs
Ass- A MARIA
abençoados comensais :)
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