Leonardo Bluff era encadernador de revistas nos arredores de Bruxelas quando um dia, depois de ter assistido ao atropelamento de um bezerro por uma charrete (uma versão aparolada do que a cena do cavalo chicoteado significou para Nietzsche, poderemos todos perfeitamente deduzir) decidiu que tinha de introduzir algum sentido na sua vida, e diferente daquele ao que lhe estavam a levar a cola, o fio e a cartolina que preenchiam os seus dias correntes, ou mesmo o curtume, nos dias melhores. Olhando para o bezerrinho (se estiverem a ficar já muito comovidos podem mudar para a tvi) Leonardo viu que o destino é um negócio com Deus. Fechou-se na casa que uma tia avó da parte da mãe tinha em Lille, e que ele herdaria quando a velha batesse a bota (leio-lhe apenas os pensamentos, registe-se) e esperou a revelação entre duas (dúzias) de kronenbourges. Enquanto jogava um crapôzinho percebeu com mais detalhe o significado desta nova forma de lidar, definir e encarar Deus. Pegou num papel e escreveu numa letra que não deixaria dúvidas ao rei do míopes : «Tudo é expectativa e preço - esboço para uma Teologia da Licitação, ass: Leonardo Bluff». E não parou.
Com a ajuda de Natalie Fenêtre, (uma catequista de Estrasburgo que ficara conhecida por fazer demonstrações de fé caminhando sobre as águas em Colmar, mas que acabou desmascarada quando o seu namorado, mergulhador e escafandrista, a trocou por uma suíça polidora de caixas de charutos) organizou uma série de conferências em que expunha com mais detalhe a sua nova 'Teologia da Licitação', na qual a primazia era dada a uma relação individual, mas tensa, trilleriana poderá mesmo dizer-se, com Deus, com Ele a testar-nos constantemente na base dum trapézio dúvida-risco-culpa-salvação, mas que à última hora faz uma piscadela de olho, indicando a jogada certa aqueles que nunca tinham desistido de ir a jogo, mesmo depois de terem empenhado a última virtudezinha que lhes restasse. «Deus, o último Licitador», dizia invariavelmente Leonardo Bluff no final das suas palestras. Natalie acabou por ter de deixar Leonardo por causa dum bailarino loiro (artificial) de Brugges, mas a sua carreira teológica estava lançada, e não havia conferência episcopal que não tivesse de reforçar o stock de café e shampoo para a caspa a fim de descortinar se estavam na presença dum charlatão, dum herege, ou dum mero encadernador com uma lombada a mais.
O apogeu da carreira de Leonardo dá-se com a publicação dos seus textos escolhidos, uma selecção que ficou conhecida nos meandros por 'Deus pode ter a cartinha que te falta'. Tornou-se - estando incluída nestes textos - especialmente famosa a sua 'Alegoria do Mundo em Naipes' em que este é representado como uma mistura de mesa de jogos com sala de leilões. A nossa vida jogar-se-ia sempre na carta que precisávamos para seguir jogo: ora arriscamos em aceitar uma carta desconhecida do baralho, ora vamos para a sessão de licitação correndo o risco de não conseguir comprar a carta. Deus assume vários papéis na alegoria, tal como na nossa vida, ora licita em paralelo connosco obrigando-nos a subir as paradas, ora faz de croupier com sinalefas várias para nos indicar se devemos aceitar a carta ou não. Todos os elementos necessários para ganharmos estão lá, mas a nossa ansiedade em tentar emitir sinais contraditórios para o resto da mesa, a desconfiança e o medo de entregar demasiado de nós e ficar sem o suficiente para uma nova jogada impedem-nos de ver.
Quando Leonardo Bluff apresentava a sua Teologia da Licitação através desta alegoria parecia um royal straight flush com pernas, gesticulava, abria as mãos e quase dançava no palco como que querendo entrar dentro de quem o ouvia, sendo ainda hoje recordada a cena em que simulando o Deus-croupier entrou pela plateia adentro e beijou Celine Straussman duma forma que a deixou inconsciente por segundos. Quando esta recuperou le sens informou que tinha visto Nossa Senhora envergando um manto bordado com o símbolo de copas. Esta cena acabou por ser a gota de água (não benta, claro) para as congregações de controlo e foi exigida uma explicação decente a Leonardo. Mas Leonardo era apenas um encadernador, juntara folhas toda a sua vida até aquele fim de semana em Lille. Tinha gostado do sabor do beijo de Celine e pensou que podia ter alguns sonhos com ela mesmo que Nossa Senhora só lhes voltasse a aparecer de camisolinha de gola alta, e disse-lhe determinado: «Vá, Celine!». Depositou a sua teologia num Fundo de Heresias (mas sem jogadores de futebol) e vive agora dos rendimentos da alegoria. Uma coisa ficou provada, quando Deus pisca o olho é de ir a jogo. We have no more baralhos, como diria o outro.
4 comentários:
:)
mas que grande alegoria! Sublinhe-se:"quando Deus pisca o olho é de ir ao jogo"!
Continue a rezar os terços...
bjs
Lá terá de ser :)
Bjs
Gostei! Teria até umas biscas mt simpáticas pra trocar com o Sr Leonardo. Mas vamos lá ver se a gente nos entendemos ...
Quem é essa maria com quem o senhor anda metido!???
Olhe que maria só há Uma! EU A MARIA! Será que terei de gamar ou pedir emprestado um desfibrilador cardiaco? Olhe, meu senhor, não me orienta um aí no seu lar? É que a gente, não só morremos de AMOR, como de CIÚME? Quem é essa catraia?
Ass. A MARIA! Que espera que me dê Música a mim e só a mim A MARIA!
Calma...«EU A MARIA» é só uma, a sodona e mai-ninhuma.
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