Aureolado

Começou por insinuar-se-lhe algum desligamento erótico do sexo oposto (não sei se gostaram da expressão) durante a campanha eleitoral, depois inferiu-se um certo aligeiramento de métodos aquando da sua licenciatura na nobre e valorosa técnica da engenharia civil, pouco tempo depois constatou-se-lhe uma intempestiva, e arrojada, vocação para a assinatura de exuberantes obras arquitectónicas na beira interior, e inspira-se agora uma diáfana fumaça de proveitosos favorecimentos a certos e circunstanciados licenciamentos quase licenciosos. Pessoal, ao se safar destas todas, e se querem mesmo ver-se livres do homem, julgo que a única hipótese é tentarem apanhá-lo em flagrante delito a roubar as esmolas duma ceguinha no metro.

Cheever regal

Julgo que, para aconchego das almas em geral e alívio do corpo em particular, deveria chamar a especial atenção do amável ouvinte (se encostarem um bocadinho o ouvido ao ecrã prometo que ouvirão um sussurro praticamente indecente) para algo que se me foi dado à revelação há coisa de umas semanas - naquele suplemento de cariz e vocação mainstreamica denominado Ípsilon, se bem que, nalgumas edições larga um pouco de tinta em excesso – ou seja, para a notícia de que vão ser editados em português os contos de John Cheever lá para o solstício. Alerto desta forma singela e antecipada apenas porque se trata dum singular monumento da literatura móderrrna (por exemplo no site da revista ficções apanham uma tradução do conto, absolutamente sem adjectivos que o adjectivem de forma verdadeiramente adjectivada, ‘O Nadador’), e que, se me é permitido sugerir, não me fosse de esquecê-lo, todos deveis ler, nem que seja naquele bocadinho em que não estiverdes a embebedar-vos em notícias sobre outlet’s de subúrbios.

The dark side of the wool #16

A maldade massaja, o bem apenas relaxa.

The dark side of the wool #15

Rebanho alegre, ovelha suada, lã transpirada, tosquia molhada, fiação enferrujada, tecelagem fodida;

Rebanho ansioso, ovelha tensa, lã espessa, tosquia difícil, fiação exigente, tecelagem morosa;

Rebanho desorientado, ovelha alarmada, lã eriçada, tosquia fácil, fiação escorreita, tecelagem de primeira;

Rebanho em pânico, ovelha à nora, lã espetada, tosquia automática, fiação acelerada, tecelagem de luxo.

Sem esquecer as latas de abertura fácil

Depois de redescoberto o poder purificador da ganância, o mundo agarra-se a ela com unhas e dentes para não deixar fugir a sua nova estrela bode de expiação. Se os gananciosos apresentarem ainda, de bónus, uma prática regular de bons e recomendados costumes forma-se então o combinado de excelência expiatória que é a ganância com hipocrisia a cavalo. Se a este prato acrescentarmos o docinho que é a arrogância-sobranceira & sorrizinho, temos o perfeito demo-armani do século XXI. Este diabrete dos tempos modernos é um filho da puta perfumado, uma espécie de chanelbrão que nos enche a alma de um ódio praticamente cristão, e que nos resolve todos os justificados tormentos relacionados com a necessidade duma piedosa explicação para o ‘estado do mundo’. O poder terapêutico e ecológico da explícita malandrice gananciosa é um bem da humanidade, só equiparável aos raios laser, aos cacahuetes caramelizados e ao microondas.

Qui tolis peccata mundi

Dá-me uma certa raiva, mas infelizmente eu sempre tive um fraquinho por Bush. Tinha os seus pecados colados à flor da pele, como post-it’s fluorescentes. A arrogância de burgesso com alguns estudos, a religiosidade instrumental e desracionalizada, o populismo de bisonte semi-messiânico, o coração, os pulmões e o intestino ao pé da boca (onde quase que levou com o chinelo), contrição plastificada, maquiavelismo do texas, prenhe de ouvido, esponja de ódios fáceis. Vai-nos fazer alguma falta.

Tivemos Bush & a ganância wallstreetica como satanazes de turno, mas agora cada paróquia vai ter de começar a seleccionar novos demónios; a baba e o ranho poderão entrar em conflito de interesses, a malvadez pode pulverizar-se, mas até Jesus aviou com uma vara de porcos endemoninhados pela ribanceira abaixo, com grande aparato, antes de ir tratar dos exorcismos mais calmos.

O segredo de Trouble Mountain VI - a fotonovela

Sardanapalus era um rico comerciante pelo qual 3 catequistas da paróquia de Alhandra tinham ficado pelo beicinho aquando duma feira de tapetes no Jumbo de Alverca. Largaram tudo, inclusivamente umas bases para copos em corticite oferecidos por um lar de Idosos de Sacavém onde elas iam recolher fraldas mijadas às quartas-feiras, e foram atrás do inebriante perfume a suor das arábias. Mas eis que inesperadamente se descobriu que o Sardanolas afinal apostara todas as suas catequistas e cavalos num fundo do Madoff, pelo que tinha ido tudo pelo cano abaixo. Assim, as moças e os puros sangues iriam agora ter de ser dados de fiança a um usurário arménio.



Sardanapalus – Pois filha, mas agora estou cansado e depauperado, julgo que me vou dedicar a recitar salmos, perfumar-me, assobiar a música da ponte do rio kway, e beber um ou outro copito.

Menina Cristina – mas eu entreguei-me a ti de corpo e alma; agora nada mais irá fazer sentido. Deixei a minha família, as minhas mini saias, o meu rímel, os meus peluches e inclusivamente um enxoval de bordados que a minha avó me tinha preparado…

Sardolas – Não me canses, Tininha. Sabes bem que ultimamente até a minha barba ficava muitas vezes arrepanhada nessa floresta negra que transportas abaixo desse teu umbigo de catequista.

Tininha – Bem que eu devia ter dado ouvidos ao sr prior; fui usada e abusada como uma cortesã, e agora entregas-me à luxúria dos teus criados famintos, sem escrúpulos e de pila fininha.

Sardolas – Olha, larga-me que tenho aqui dois furúnculos a infectar e que me apoquentam na
dobra do joelho.

Tininha - Desinfectarei a tua borbulhagem com as minhas lágrimas de pecadora.
... ... ...

Menina Fatinha – Afasta-te de mim, o meu corpo é sagrado! Serei sempre fiel ao meu querido Sardolas, nem que ele me traísse com um eunuco da Babilónia, ou uma beata de Moscavide.

Guarda Abel – Querida, ou vens comigo, ou como alternativa transformo-te em franja para tapetes de Buchara.

Menina Fatinha – Serei então imolada na minha dor, mas pelo menos deixai-me tapar as partes baixas.

Guarda Abel – Ó Fatinha, estás tão bem assim; eu serei o tigre do t’eufrates!

Menina Fatinha – O m’eufrates não é para os teus diques! Larga-me o braço, não me pises a chanata e vai concubinar camelos para o casaquistão.
... ... ...

Sardolas – Cilinha, querida, noto-te abatida; já não é preciso dizeres que estás com enxaqueca porque eu hoje já não tenho mais forças para louvar os deuses com a minha masculinidade

Menina Cilinha – Uma infelicidade de morte percorre as minhas veias. Mais valia ter ficado a bordar paramentos na minha terra.

Sardolas – Que o infortúnio não te turve a mente, minha Cilinha, seremos como irmãos no paraíso!

Menina Cilinha – Se fosse para ter um irmão novo teria escolhido antes o padre Borga, eu contigo sonhei com a libertação da carne!

Sardolas – A minha carne já foi prometida aos vermes, o mais parecido que te posso arranjar é ires trabalhar para o restaurante dum tio meu que vende kebab em Istambul.

Menina Cilinha – E eu que cheguei a sonhar com a redenção dum amor eterno, numa felicidade das mil e uma noites…

Sardolas – Cilinha, isso foi do haxixe, volta outra vez para os dolviran’s que não te fazem tanto mal.
... ... ...

Sardolas – Tininha, ainda aí estás, ou já adormeceste!?

Tininha – Sufoco com a tua indiferença, o teu alheamento…

Sardolas – Tu sufocas é porque estás aí com a cara enfiada no edredon e tens as costas destapadas; ainda apanhas alguma pontada com a corrente de ar!

Tininha – Mas não me resignarei…

Sardolas – Eu se fosse a ti não punha era o pescoço tão a jeito porque o pessoal que anda por aí é danado para fatiar carne tenrinha.

Tininha - Podem levar a minha carne mas não me podem trincar a alma.

Sardolas - Podes estar descansada, filha, nós também achamos que a carne é fraca, por isso é que apostamos bastante no picante.
... ... ...

Menina Fatinha – Olha lá, vais ficar assim a noite inteira?... Ainda fico toda empenada.

Guarda Abel – O Chefe Sardolas disse-me que tu eras das que precisavas de muito preliminar para começares a gemer…

Menina Fatinha – Olha filho, não tarda quem geme é tu! Julgas que eu sou daquelas da burka, ou quê? Eu fui catequista na Bobadela! Fazes-me uma cócega que seja no lombo e enfio-te com uma flor de lis pelo cu acima.

Guarda Abel – Vocês as católicas lubrificam muito mas combustam pouco.



O Segredo de Trouble Mountain V


«Adieu, Assyria!
I loved thee well, my own, my fathers' land,
And better as my country than my kingdom.
I sated thee with peace and joys; and this
Is my reward! and now I owe thee nothing,
Not even a grave.»
de Lord Byron, na sua peça alusiva à morte do sarilhoso Sardanapalus, e recolhido aqui num comentário, recheado de pertinência & erudição, - as usual - de mme C.

O Segredo de Trouble Mountain (IV)

Nunca o amor foi algo tão incontroverso: hoje sabe-se que não presta aparentemente nenhum serviço relevante à espécie. É apenas um misto de solidão, desejo e hábitos.

A miscigenação amorosa revelar-se-ia assim uma saída. Uma quase réplica erótica do missionarismo evangélico. Uma mulher amada também é uma estrada de Damasco. Uns ombros coríntios, uma pose tessalonicense, um perfil efésio, eventualmente uns gálatas momentos de prazer. Um Deus sempre diferente garante uma revelação permanente.

Mas pelos vistos deve haver algum apócrifo iluminado e secreto onde Jesus tenha dito aos discípulos «Filhinhos, ficai sempre por aqui sossegados, jogai juntos um bocadinho de gin rummmy, fazei a sesta depois do almoço e benzei-vos sempre que falardes com comedores de bifanas; desconfiai de olhos muito rasgados, narizes pequenos e preces violentas; eu vou ali ao calvário e já volto, mas não deixem que nenhum pagão se lambuze da nossa canjinha ou debique dos nossos croissants»

Ter-se-á escrito quase à tripa forra que o Sr Cardeal apenas disse o que a maioria dos católicos pensam e diriam, do alto do seu bom senso, aos seus filhos. Ora fodasse; católico que assim pense genuinamente nem merece ser mormón; em cada cristão deve haver uma alma missionária. Chega de apostolados de bancada: «meninas não casem fora da paróquia, meninos não ponham borracha à volta da pilinha». Foi um deslize, vamos pensar que foi um deslize, Sr. Cardeal; um deslize calculista e pouco católico. Mas até os banqueiros têm deslizes, siga.

Se o Cristianismo se despojar do seu lado épico e romântico fica a parecer uma religião de ervanária.

O Segredo de Trouble Mountain (III)

Cumpre no entanto deixar claro que o gosto masculino também se pode situar neste extremo do paradigma:


(imaginem a força dum piscar d'olho)

Ou neste:

(imaginem uma pista de obstáculos em conjunto)


Tudo uma bela fonte de sarilhos, ressaliente-se.

.

O Segredo de Troubleback Mountain (II)


A actualização da fotografia da Julinha, agora já com o seu vestido cintura de morcela - para além da trancinha in conrona, claro – e ombreira veneziana.
Uma cara bem eslavadinha; digo eu. Que o veneno nunca lhe chegue, são os meus votos.





Trouble Mountain

É com alguma pena que constato ter chegado atrasado a toda a dinâmica alegórica provocada pelas declarações do Cardeal Patriarca no casino da figueira.

[No entanto, registe-se, já em 18 de Fevereiro de 2006, numa série de posts dedicados ao sumptuoso livro ‘Os direitos das mulheres no Islão’ de Murtadã Mutahhari , ed Islâmica ALQALAM, 1988, este vosso criado teve ocasião de alertar para o facto do ‘homem ser escravo da sua paixão enquanto a mulher é cativa do seu afecto’. Mas todo esse mês foi muito jeitoso em posts, - eu andava instável de tripa - podem visitar, e deixar uma moedinha]

Ainda no que concerne a sarilhos tenho forçosamente de salientar que o que me deixa sempre em completo desequilíbrio moral e hormonal é o contacto - platónico - com mulheres em trancinha. Desta vez a desequilibradora veio da Ucrânia e andou a negociar o funcionamento da canalização com o Putin; do gás, assinale-se.


Iulia Timochenko, 1ª ministra da Ucrânia

[continuo sem encontrar uma fotografia da moça com aquele outro voluptuoso vestido negro, e com a cinturinha a fazer lembrar uma morcela de Arganil]

Entre um harém com águas quentes e frias ou uma ucraniana de torcidinhos em translação craniana o meu coração balança. Que Deus me perdoe, só que as pituitárias ficam um autêntico casino. Mas falando em trancinhas e ondulações, e se me permitem, o próprio Botticcelli já tinha traçado definitivamente o cânone da beleza, do sarilho e da perdição há mais de 500 anos.

Botticelli, Modelo de miúda gira com cabelo entrançado, Staedel Museum, Frankfurt


Mas sabendo todos que, essa é que é essa, na relação amorosa o homem é a parte mais fraca e mais dada a sucumbir aos sortilégios do flirt, - só à mulher foi concedida a faculdade da autodisciplina, como lembrou o bom do Murtadã – mal ficaria com a minha, já se si frágil, consciência, se não recordasse a todos que ao homem o importante é andar sempre de cabelo curtinho e não dar troco a miúdas que não tenham lido A Morgadinha dos Canaviais.


Max Liebermann, Samson und Dalilah, Staedel Museum, Frankfurt


Se bem que, antes um monte de sarilhos que uma planície de merda. Ou não fosse este o ano Paulino.

Desejo sem avatar

«eu queria mesmo ganhar isto» é a frase de Ronaldo que mais me fica. A brutalidade duma ambição ainda jovem, ainda sem necessidade de muita camuflagem; absoluta. A maior saudade que tenho dos tempos de juventude é precisamente daqueles momentos em que se via que queria ganhar; apenas ganhar, sem mais merdas, sem as conices (agora chamam-lhes calculismos) da maturidade e da experiência. Era o desejo de vencer ainda no seu estado mais cristalino. A estética beckettiana e existencialista do falhanço é uma decadência. A estética shakespeareana do falhanço é uma fraude. A estética clássica do falhanço é uma mera bizantinice. O melhor falhanço é o que apresenta o pecado original: uma rebelião, uma ilusão, uma condenação, um abandono. A melhor vitória é, obviamente, a da Cruz: uma filha da puta duma certeza de que existe uma vida depois da morte.

O Cristianismo, os bons e os maus.

[1] O cristianismo, apesar dalguma má fama paramentária e dogmática, é grande responsável pelos maiores tesouros do bom relativismo da humanidade. O património que transportamos está irreversivelmente marcado pelos valores do perdão, da misericórdia, da graça, da magnanimidade, da glória e do desprezo dos deuses, tornando assim possível a surpreendente coabitação do bem e do mal que acaba por definir e sintetizar toda a história da presença humanóide neste calhau redondo e azul à beira Sol plantado.

Apesar deste toque de midas do cristianismo, que – e independentemente dos agustinianismos mais ou menos mitigados – transforma toda a realidade numa oportunidade de salvação, de desfrute, e de glorificação de Deus, mesclando justos e pecadores que nem broa com bacalhau, Jesus deixou um rasto de deliciosas, deslumbrantes, e muitas vezes inesperadas, separações absolutas de águas.

[2] O novo Testamento está pois recheado de relatos onde, num Magistério impregnado de escândalo e oscilante senso, Jesus se chega à frente para escolher uma via, definir um caminho certo, chamar os bois pelos nomes sem pedir licença às vacas sagradas. E a chave não poucas vezes foi uma novidade absoluta para a humanidade.

(a) Para começar um dos exemplos mais marcantes, e ‘evangelicamente mediáticos’: a cena da mulher adúltera (Jo VIII); uma das verdadeiramente exaltantes sublimações da justiça pelo perdão, com a introdução dum clássico dos clássicos da alma humana: «quem de vós esteja sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra!», e o consequente encostar às boxes da dupla, não menos mediática, de ‘escribas & fariseus’, guardiães da lei e dos bons costumes.

(b) Outra das cenas curiosas é aquela em que Jesus, na casa de Marta e Maria, (Lc. X) duas manas, verdadeiras guest stars evangélicas, (cortei-me a chamar-lhes Ungido girls ) perante o encabristamento da primeira ( uma genuína capricórnia, certamente) ao ver-se a fazer todo o trabalhito de casa enquanto a maninha estava no paleio com o Redentor, este responde, sem espinhas: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte». Ao arrepio de todo o bom senso, (‘Ó Maria, filha, vai lá agora dar uma mãozinha à tua irmã, enquanto eu acabo o Martini’) Jesus exprime a ideia totalitária de que a adoração a Deus é um valor em si mesmo que coloca tudo o resto num papel secundário. De facto, uma ideia difícil de incorporar, e ainda mais hoje, em dias de racionalismo e aproveitamento doentio do tempo, da vida, do megapixel e do megabit.

(c) A parábola do filho pródigo (Lc XV) tinha de ser aqui de paragem obrigatória. Apesar de totalmente incorporada no nosso imaginário, e inúmeras vezes até vivida por muitos, ela não deixa de introduzir de forma paradigmática e revolucionária o fenómeno libertador do arrependimento, algo que ficou demasiado colado ao modus operandi religioso mas que é constituinte fundamental da construção da personalidade. No entanto, arrependimento sem perdão, é como pãozinho quente da Ereira sem manteiga, só serve para cheirar, fazer hummm, e aquecer as mãos. Daí que o Cristianismo ao valorizar esta espécie de submundo da alma – que foi feita para andar fresca e viçosa a praticar desportivamente o bem e a democracia, já se sabe – veio colocar a fasquia da felicidade tão no rés-do-chão que tornou-se preciso rastejar, e se calhar arranharmo-nos um bocadinho para lá chegar.

(e) O caso de Zaqueu é que é verdadeiramente djimaiss! (Lc XIX). Trata-se dum chefe dos publicanos de Jericó, pessoal muitíssimo bem visto e acarinhado pela judiaria por cobrar impostos para o império, e que por ser de pequena estatura se teve de esfalfar para que dessem conta dele quando passavam. Jesus, quando por fim o viu, disse: «desce depressa, pois tenho de ficar em tua casa», o que deixou perplexo e indignado o pessoal que não percebia o súbito e particular interesse naquele malandro espoliador. E é e então aqui que é decifrado o segredo para que o camelo passe pelo buraco da agulha: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, devolver-lhe-ei quatro vezes» (alô, Rendeiros de Portugal, são chamados à cabine de som); estamos perante uma lição suprema de relativismo, de empenho e de absoluta conversão, - tudo bem misturado naquele empadão que, no fundo, é cada cristão – que continua com a parábola das minas (também contada na casa de Zaqueu) e onde é enunciado o terrível: «a todo aquele que tem, dar-se-lhe-á, mas àquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado», Já a figueira amaldiçoada ia levar o mesmo tratamento de choque; chama-se a isto não brincar em serviço. Fodasse, quem me dera ser budista.

(f) Mas a cena da pecadora em casa do frio e formal Simão (Lc. VII) já alivia um bocado mais o stress. Uma gajita que devia aparecer em todas as boas revistas da especialidade lembra-se de mudar de vida e não é de modas, arranca um autêntico arrependimento de 1ª divisão, regando com o seu pranto os pés de Jesus, secando-os com os seus cabelos, - sem o patrocínio de nenhuma marca de champôs, registe-se – e sacando do Redentor uma das suas mais gloriosas mensagens: «aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama», deixando o resto dos convivas com os croquetes entalados na traqueia. Todo o Dostoievski e todo o Shakespeare estão nestas oito palavritas (tirando o nariz empinado da mme MacBeth, claro)

(g) Já quando Jesus se vê obrigado a voltar atrás perante a insistência duma gentia Cananeia, (Mt XV) (anunciando para além disso aquela verdade universal de que quando uma gaja dá para chata, é chata mesmo e o melhor é satisfazê-la rapidamente) que tem a supina lata de lhe arremessar com a teatral chantagem emocional - secção auto-humilhação: «mas os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos», estamos perante a valorização dum arrependimento com fogo de artifício, uma espécie de ‘Maria do Céu Guerra dos arrependimentos’, demonstrando isso mesmo: na fórmula do bem e do mal só uma variável tem lugar cativo: o perdão.

[3] O perdão. O tal elixir que não existe dessa forma no gélido budismo, nem no rígido judaísmo (onde instituía que se devia perdoar 3 vezes), nem nos classissismos, ora no mais épico (Homero exalta o prazer de se rir dos inimigos), ora no mais filosófico ( Sócrates fala da cobardia de escravo quando não nos vingamos das injúrias), e que é revolucionário na mensagem Cristã, desde a ovelha tresmalhada que vale mais que um rebanho inteiro, até ao bom ladrão que é salvo ao tocar o gong. Lá está: arrependimento, misericórdia, graça, magnanimidade; o que transforma uma quimera numa história com sentido é essa grande falsa alienadora: a religião com um Deus sempre presente; e que deve ser procurada como quem procura o tal tesouro que nos trouxe o Único que pode dizer: «sei donde venho e para onde vou’.

[4] A grande indiferença religiosa do tempos modernos baseia-se essencialmente em algo muito simples: a ignorância. Quem sabe o toque de taninos do Esporão Reserva de 2003 mas nunca leu a cena das bodas de Caná, só merecia levar com o termómetro do enólogo pelo olho do cu acima. Quem escolhe, parte e reparte, os bons e os maus mas nunca leu e pensou na história da viúva que em vez de ‘dar o que lhe sobejava, privou-se do necessário, e deu tudo o que tinha’, mais valia dedicar-se a fazer branqueamento de dentes para ter um bom sorriso no dia do juízo final.

[5] & closing. Para concluir este tornedó direi apenas que a chamada mensagem cristã desfaz radicalmente alguns dos nós górdios da criação. Infelizmente sem fé tudo é analisado à luz da experiência limitada do dia a dia, das mal digeridas memórias recentes, das demasiado mastigadas memórias arcaicas, do soundbyte e da moda. A fé manipula-nos, claro, há sempre uma entrega na fé, há sempre a esperança de estarmos a elevar a nossa condição a um estado de privilegiada protecção. Contudo, a eliminação do elemento religioso na compreeensão do mundo só nos pode levar a fenómenos passageiros de consolo de consciência ou acomodamento lombar. Deus, ao homem traz horizonte, mas não traz tranquilidade.

J’Hamas

Hezbola-me um pouco a carola que o mundo se sintonize numa merda duma faixa. O melhor enclave que eu conheço é a quinta da marinha, não desfazendo de Cabinda e de São Marino, claro. Mas, querendo ser profundamente sincero, o Alasca dá-me mais pica. Reformulo: o mais arabicamente longe que conseguem ir as minhas preocupações é ali a Alicante, e por causa do torrão, fora isso, a minha alma não se conturba com fatahs, khalids e restantes mahmoudes; no deserto, sabemos hoje, devem construir-se aeroportos, ponto final. Sigo, contudo, todos os dramas da humanidade de forma criteriosa, mas procurando nunca pensar pela minha cabeça pois, como acima se comprova, esta nada me traria de bom. Procuro assim cabeças bem pensantes, que tenham de preferência feito o período de debutação em jacobinismo científico, mas que já tenham distribuído caldo verde na sopa dos pobres. Não valorizo sorrisos amarelos porque não me vão com o template novo. Nevârdelece, d’ont cry for me palestina.

João Honório Fragonardes

Não é que o ano vá muito avançado, mas

O melhor post do ano so far é este:

«Só quero que saibas que não te censuro pelo frio que faz». ‘Dia 8’, no Insónia. Ainda vão ter de esgalhar muito para superar isto.

Mas só a verdade é revolucionária, já se sabe.

Antoni Tapiés

Os únicos homens verdadeiramente invejados pelos seus pares – leia-se, os outros homens - são os que têm sucesso com as mulheres. Aquele je ne sait quoi que transforma um simples macho num – inexplicável - objecto de desejo da fêmea será sempre o maior murro no estômago do orgulho dos outros machos que não estimulam tal gulosa reacção. Regra geral o macho comum resigna-se, («não sei o que é que aquele gajo tem que as gajas ficam todas pelo beicinho») pois este superlativo e genuíno tipo de inveja masculina – o mais entranhado e corrosivo - só é passível de ser gerido na discrição semi-complexada do silêncio e na mais falsa indiferença. Nenhum homem de bolbo raquidiano saudável e anatomicamente equilibrado é capaz de assumir à boca cheia esse atroz sentimento de inferioridade: «o que é que aquele cabrão tem que eu não tenha», é uma expressão que, neste caso, não pode passar sequer da zona da baixa laringe. Dinheiro, poder, talento, nada disso produz mais cobiça que a capacidade de seduzir e atrair as mulheres. Mesmo que depois não se soubesse o que fazer com elas.

Still Life

Giorgio Morandi, Natura morta, 1956, Oil on canvas. Mart, Giovanardi Collection

[Gostava de ter sido pintor. Não são precisas palavras, não são precisas imagens, não é preciso traço, não é preciso memória, não são precisos sentidos, nem é preciso consciência; basta um estado de espírito. ]


no pistachios available


Sean Scully, 1992, Heart of Darkness, Aquatint on paper, Tate

Estar verdadeiramente in

Desde que a adolescência foi descoberta por algum lobotomizador de mioleiras precoces do sec. XIX que o homem moderno tudo tem feito para tentar prolongá-la o mais possível. Fazer prevalecer os valores fundadores da idade de todas as perversões & inocências deverá ser contudo declarado como uma das condições prioritárias de sobrevivência, se não enriquecimento, da espécie, que só ganhará em saltar, abolindo mesmo, essa invenção de psicologistas pirosos chamada de idade madura - essa sim causadora dos maiores recalcamentos do homo hemorroidaliens que são os drops de ilusão revestidos a responsabilidade.

Hoje, o dicionário não ilustrado, nas suas primeiras entradas de 2009, (num estilo mais clássico, entradas 1272 a 1280) resolve dar lustro aos grandes princípios da libertação da espécie.

Insegurança – É a madrinha de todas as personalidades de excepção. Seja no estilo de Jesus na Cruz, no de Hamlet em Elsinore, ou mesmo no de Harry Potter em Hogwarts, apenas a insegurança provou, surpreendentemente, assegurar o carinho dos deuses e as melhores ressurreições. Um ser seguro dos sentimentos dos outros acaba a fazer sermões da montanha em penedos da saudade; e sem pistachios.

Insatisfação – É a mais importante variável científica da História depois do fogo no cu. Assistiu a inventores e a especuladores, ladrões, amantes e pintores. Ser consolado é ser comida posta de lado. E a paciência não há-de prestar nem para morrer.

Indiferença – O verdadeiro trago da vida, aquele que passa do esófago ao cólon deixando o estômago a desejar ser rim. Apenas quem saboreou o fel de ser indiferente a quem ama sabe o que é o amor. Apenas quem lutou contra a indiferença sabe o que é uma adversidade. Apenas sabe o que é a tesão quem já pôs os tomates numa balança e não viu o ponteiro a mexer-se.

Inconstância – Quem não quer apresentar um electroencefalograma de garoupa deve ir sabendo pôr o coração ao pé da boca de vez em quando. O homem estável só serve para passadiço. Mas assim tem forte concorrência das tábuas de madeira e dos certificados de aforro.

Incompreensão – Perceberem-nos é uma maçada. Estarmos rodeados de gente que sabe bem o que sentimos e queremos dizer é como ser esparguete numa bolonhesa: seremos chupadinhos antes do café. A incompreensão é a garantia de que estaremos mais fresquinhos no juízo final do que o céu-da-boca de S. João Baptista na travessa de Salomé.

Injustiça – É a 5ª essência da incompreensão, uma espécie de pleno canónico de incompreensão com martírio. A injustiça é o toque de midas da existência, transforma qualquer vidinha sossegada num permanente cálice sagrado para indiana jones. Sem Herodes não havia presépios.

Insolvência – A eterna dívida é praticamente condição sine qua non para que exista vida inteligente e que coçar não faça crosta. Tirando as anémonas, e os lagartos, só os pés virados para a cova indicam que não se deve nada a ninguém. Quando se saldam as contas, ou, pior, quando se passa à situação de credor, é sinal de que os vermes podem avançar pois a gordura está no ponto certo.

Intranquilidade – Quem opta por viver no rés-do-chão da alma porque tem medo das vertigens vai acabar por achar que o cheiro do esgoto afinal nem é mau de todo. O preço da acalmia de coração é poder apenas navegar perto da costa e, mais dia menos dia, depender dos reboques. A consciência tranquila é coisa de reformados, cujo maior pesadelo é deixarem dissolver a toma diária na sopa de feijão.

Inconveniência – Levar a vida como decoradores de interiores é o vertiginoso drama da maturidade. Fazer o que deve ser feito, sentir o que deve ser sentido, pensar o que deve ser pensado, foder o que deve ser fodido, é esta a cremalheira do bem-estar-bem decadente. Ora Deus não escolheu uma redenção de playstation, escolheu uma cruz de madeira e vinagre nas feridas. Se queremos caber numa vida teremos de saber vivê-la também com uma fralda de fora.

Humana Condição

«Tenho um animal singular, meio gato, meio cordeiro. É parte da herança do meu pai. (…)

Quando brilha o sol enrosca-se no parapeito da janela e ronrona, no campo corre como louco e ninguém o consegue apanhar.(…)

Alimento-o com leite doce, é o melhor para ele, sorve-o em tragos lentos por entre os dentes de predador.(…)

Aninhado contra mim é como se sente melhor. Não é tanto uma lealdade invulgar, mas sim o instinto certo de um animal que tem no mundo muitos parentes, mas nenhum irmão de sangue mais próximo.(…)

Tem o desassossego de ambos, do gato e do cordeiro, por muito diferentes que sejam. É por isso que a pele lhe é demasiado apertada.

A salvação do animal talvez fosse a faca do açougueiro, mas como herança tenho de lha negar.»

(Excertos do conto «Um Cruzamento», de F. Kafka; ed. Relógio d’Água)

trompe d'oeil

Cornelius Gijsbrechts (1670). Reverse Side of a Painting. Óleo s/ tela, 67 x 87 cm. Copenhagen: Statens Museum for Kunst.