Da curiosidade (dos 'contos' e da vida pelas cartas da Senhora Baronesa)

Ter-se-á passado mais de um ano sobre o acaso da leitura de um post num blog cujo nome não retive - e de que apenas me recordo estar alojado no Wunderblogs - sobre a, para quem necessitar de classificações, chamada 'escrita feminina'.

Numa recente passagem por alguns blogs novos - pelo menos para quem se fidelizou a uns raros três ou quatro, todos quase contemporâneos deste -, supostamente escritos por mulheres, vinha-me frequentemente à ideia a crítica mordaz lida nesse post. Crítica essa em que, se calhar não por acaso, a autora Clarice Lispector - de quem, de resto e mau grado o óbvio de uma escrita aforística em que se ensaia a intelectualização por transferência do território instintivo das vivências próprias ou alheias, aprecio algumas obras - era um dos alvos. O que li nesses blogs femininos encaixa - apesar da abissal diferença de Lispector, no que à qualidade da escrita se refere,
em relação à rudimentaridade, tantas vezes limite, da linguagem usada nos blogs a que me reporto - em pleno na crítica antes referida. Porque, ao contrário da Zerlina de Hermann Broch a que parecem aspirar assemelhar-se, falta-lhes a capacidade de mediação estratégica entre os territórios do erótico e do discursivo. E nessa medida mesma, o que se pretende fazer passar por discurso erótico mais não passa de arremedo de linguarejar ético, constituindo-se pela insuficiência de recursos (quiçá de propósitos, também) na incapacidade de ajuizar o produto que assim se converte aos olhos de quem o lê, seja por inabilidade seja por inocência, no seu próprio carrasco.

Diz a Zerlina a certo momento: "as cartas da Baronesa, que dantes tanto despertavam a minha curiosidade, agora só me causavam asco". Mas a Zerlina está muito longe, na altura em que faz esta afirmação, de ser "uma jovem e inocente camponesa". E sabe que "parvoíces [daquele] género deitava ["a cabeça de galinha", Srª Baronesa] cá para fora às dúzias". Como sabe, fruto de uma sageza fundada em percursos tão difíceis quanto pedagógicos, que entre os leitores masculinos há "homens que colocam as mulheres ou nos píncaros ou nas profundezas, e que por isso têm de as servir com o seu corpo, enquanto que com a alma não as podem ter em consideração". Homens que "não podem amar, não podem senão servir". E que, como Don Juan, "servem, em cada mulher que encontram, aquela que não existe, mas que amariam se existisse, e que por isso não é mais que um mau espírito que os subjuga". E a que uma mulher que os ame mais não resta como forma de auxílio, se não para a tarefa impossível da libertação pelo menos para a exequível da vindicação, que a impiedade (ou a maldade) de anular a força do ódio pela fraqueza da ternura. E assim ser mulher. E, se isso ainda fizer algum sentido depois de (se) ler enquanto mulher pelo olhar de um homem como Hemingway ou Broch, sendo "o pudor [...] como uma roupa" - pelo que convém não esquecer a qualidade do design nem a do tecido - escrever 'como mulher'. E rematar tudo, mas sobretudo o que saudavelmente se deitou para o cesto dos papéis ou para o recycle bin, com uma enorme e inevitável gargalhada.

Excertos assinalados por "": Broch, H. (1988) "A Criada Zerlina". Lisboa: Difel. (pp 43-50)

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