Contos com uma bossa nova mas sem camelos I

Tinham como amigos comuns apenas as personagens secundárias de romances que não bestsellerizaram, os heróis esquecidos de epopeias mal resolvidas e os anjinhos anónimos e meio debotados dos quadros renascentistas. Amavam-se, mesmo, e acompanhavam-se mútua e gueixamente nesse mundo tão real como a música que ouviam juntos. Pintavam a quatro mãos, ao som de Toquinho em ‘Aguarela’ e inventavam cores só deles, sombreados só deles, curvas só deles. Tinham também um andar só deles - mistura de ronda de guarda fiscal com deambulação de frade em ruminação de vésperas – e gostavam de se perder para o treinarem melhor em ziguezagues devidamente disfarçados. Um dia cantaram juntos Caetano e as notas saíram-lhes tão puras que ‘com cinco ou seis rectas fizeram o castelo’ onde se beijariam no ‘silêncio da noite’ ‘juntando o antes, o agora e o depois’. Perceberam que quando Deus inventara o tempo dispensara-os das suas tormentas, dos seus enganos e deixava-os agora embalados com o ‘aconchego’ da ‘estrela mais linda’ cantada pela Elba Ramalho. Um dia ficaram tensos por causa dum personagem perverso que baralhava o ciúme iniciático com a inveja decadente e apenas o desejo cirurgicamente reprimido ao som duma Simone qualquer lhes conseguiu remendar o rasgo; decidiram daí para a frente cultivar amizades apenas com personagens de lirismo moderado, sem ambiguidades explícitas, com gostos gastronómicos bem fixados e sem traumas nem de classe nem de educação. Evitariam Vinicius – especialmente no ‘minha namorada’ – e, apesar de poderem consumir Elis em doses moderadas, era-lhe vedada a ‘Fascinação’. Brincavam até com os ditos amores platónicos, chamando-lhes, rindo-se, deboche, pois estavam convencidos que quem não soubesse amar como eles, um amor sem teorias clássicas por armadilha, estaria destinado a viver apenas a comer peixe em conserva, enlatado num carinho previsível e embebido num óleo para facilitar o escorrimento da vida.

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