Conto sem assador

Acordou mulher bomba. Vestiu-se à pressa e meteu qualquer coisa à boca. Sim, essa mesma boca que o tinha beijado horas antes. Correu para o autocarro, sentou-se a olhar pela janela para lado nenhum como tinha visto num filme e pôs-se a pensar na vida. Sim, essa vida que nunca tinha vivido. Não parou mais de dois segundos na mesma cena, passou pela infância que nem um foguete, fez a baixa adolescência num abrir e fechar de olhos, e nem perdeu tempo com a perca da virgindade. Sim, ela já tinha sido virgem. Encalhou no primeiro amor, como todos aliás, mesmo aqueles que nunca o tiveram. Sim, principalmente esses. Um ligeiro solavanco apanha-a numa discussão com o pai, subitamente sobe-lhe pela espinha uma saudade desse homem que o coração agora arquivava como referência. Sim, tinha coração de arquivista. Não se muda de flashbacks com facilidade e com a inevitável cabeça atirada para trás suspira uma contrariedade inesperada, vinda dum período confuso, tão cheia de homens como de perfumes, tão cheia de dinheiro como de azedumes. Felizmente um inconsciente bem treinado fá-la atravessar esse período sem embaciar muito a janela. Sim, uma mulher também pode não conseguir chorar. Começou a sentir um nervoso miudinho, estavam quase a aparecer-lhe os filhos, aquela prisão com cheiro a camomila, sem querer riu-se, apesar do motorista não ter notado, mas também faz parte da função destes motoristas especiais que transportam vidas em balanço serem o mais discretos possível. Sim, estamos todos sozinhos quando se trata de filmar com a alma. De repente o pensamento tornou-se errático, aquilo tecnicamente até deixou de ser pensamento, porque deixou de ter meio e saltava constantemente dos princípios para os fins. O banco começou a incomodar, o corpo fez sinal de que havia vidas para matar. Deu o encontrão ao bêbedo aforístico que aparece sempre nessas alturas e saltou para a rua. Desgraçadamente estava um dia radioso, às vezes dão raiva dias tão bons, céus tão esplendorosos, deuses com tanta misericórdia, acordes com tanta melodia. Sim, a terminação a felicidade atrapalha certas rimas. Vinha-lhe uma música à cabeça, um folk mal amanhado, arrastado quase gospelianamente, e deixou-a parada no passeio procurando uma montra para fingir outro olhar. Calhou-lhe uma drogaria em promoções. Era o dia da benzina. Nunca mais o sonho foi o mesmo, uma nódoa não estraga um vestido, a vida é para ser esfregada e continuada. Meteu a bomba no saco e só não foi comer castanhas assadas porque era verão. Sim, para celebrar o regresso à normalidade dão sempre jeito umas castanhas assadas para o estômago se preparar. E ela tinha uma cintura tão bem desenhada que era uma pena aquele cinturão de dinamite. Era preferível encostar-se numa esquina a snifar a benzina.

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