A Berloqueoteca de Babel

Zbigniew Poborsky tinha sido um escritor mediano com algum sucesso numa série de romances policiais em que o herói-detective chamado Zoran Pavel Dubrovni Zibrinsky sacava a maior parte das confissões quando, utilizando um prosaico expediente humorístico, exasperava os criminosos ao tentar soletrar o seu nome. A dado momento Zbigniew Poborsky sentiu que podia dar algo mais à literatura e enveredou por uma experiência entre o romance de costumes e o romance psicológico, algo a que ele resolveu chamar de romance de atitudes, se bem que ao arrepio do seu editor, que temia a chacota dos críticos, mesmo amaciados com dois coqueteles por mês num hotel de meninas e brandys finos em Varsóvia.

Mas Zbigniew era daquele género de pessoas persistentes, sem chegar a visionário, e seguiu em frente na renovação da sua carreira. Inspirado num guerreiro medieval de Renânia, de seu nome Radoslav Dudek Klos, conhecido por ir mudando de nome consoante as princesas que desencaminhava, Zbigniew Poborsky criou um heterónimo para esses romances de atitude, Miroslaw Kukielka Kovalewski, que escrevia como narrador em primeira pessoa, tendo sido precursor dessa modalidade na literatura polaca do entre-guerras. Miros Kuko, como ficou conhecido pela revista literária Kaluznya Apopletica, sedimentou a sua fama pela utilização de metáforas gastronómicas, cirurgicamente colocadas nos momentos de maior intensidade dramática dos enredos, tendo até logrado uma entrada no Dicionário de Figuras de Estilo e Abreviaturas de Gdansk, com a expressão: ‘regurgitei o requeijão da alma’ e que indicava um estado de espírito escrupuloso e recriminatório.

No entanto, Zbigniew Poborsky, a par de ser Miroslaw Kukielka Kovalewski nos romances de atitude, continuou a escrever os seus romances policiais com Zoran Pavel Dubrovni Zibrinsky como herói-detective, mas achou por bem começar a fazê-lo sob o pseudónimo de Tomasz Kaluzny Ratajczyk, em homenagem a um seu tio que o tinha ensinado a pescar safios e a grelhá-los posteriormente em pedra de feldspato polida.

Tudo parecia correr normalmente, tanto a crítica como os leitores até achavam original essa coexistência, se bem que a níveis literários diferentes, de Miroslaw Kukielka Kovalewski com Tomasz Kaluzny Ratajczyk, e Zbigniew Poborsky começou a ser cada vez mais indicado para prémios literários de relevo. A sua escrita paralelamente foi ganhando fulgor, e equilibrou-se naquele difícil patamar entre a fantasia e a verosimilhança apenas ao alcance dos mais dotados. Os personagens pareciam ter vida própria e entre elas, Zbigniew e os diversos ónimos, construiu-se uma cumplicidade quase religiosa.

Mas algo de estranho começou a acontecer. Miroslaw Kukielka Kovalewski, o heterónimo, e Tomasz Kaluzny Ratajczyk, o pseudónimo, acharam que estavam a ser postos em segundo plano, e, pior, Tomasj Kaluzny Ratajcyk começou a ter ciúmes de Miro Kuko por este, ao já ter uma entrada no Grande Dicionário de Figuras de Estilo e Abreviaturas de Gdansk, passar mais tempo e recolher mais cuidados de Zbigniew. As manifestações de ciúmes entre heterónimos e pseudónimos não eram correntes, e fomentaram-se discussões acaloradas em toda a comunidade literária, que já não se envolvia de forma tão entusiástica desde que se tinha descoberto que a tuberculose de Tcheckov afinal era apenas alergia à combinação de bebidas gasosas com caju.

Miroslaw Kuko assumiu desde início uma atitude sobranceira e deixou para Tomasz Kalu Rata (que entretanto também se tinha estilisticamente abreviado) as despesas da agressividade movida pelo despeito. O próprio Zbigniew Poborsky quis manter um certo distanciamento no início, procurando não tomar partido por nenhum dos seus emulados, mas foi muito pressionado pela opinião pública para se pronunciar, e assim apaziguar os ânimos da sua polinomia, que já estavam a criar algum desconforto na comunidade literária e, inclusivamente, o tinham afastado do prémio Abássidas & Fatímidas, que estava praticamente certo por, num dos seus livros, o heterónimo Miroslaw Kuko ter descrito com brilhantismo uma sessão de escarradelas num judeu loiro de Cracóvia.

Mas o ciúme destrói, como se sabe, e Tomasj Kaluzny Ratajcyk não saiu ileso da contenda. Passando de pseudónimo distinto, e já com provas dadas, Zbigniew Poborsky concedeu-lhe o lugar de um novo heterónimo que se dedicaria a escrever cartas românticas a uma amante luxemburguesa que, supostamente, Zbigniew tinha conhecido num passeio a Trieste. Mas Tomajz Kalu Rata não estava talhado para os grandes mistérios do coração e mostrou-se um amante frágil, inseguro, verboroso e, no fundo, banal. Onde antes se tinha mostrado capaz de gerir um detective perspicaz, com a ironia própria dos grandes decifradores, agora revelava-se inquietante e confragedoramente sofredor e maçador.

Zbigniew Poborsky tinha agora perdido um pseudónimo seguro, e ficara no colo com um heterónimo arrogante e outro miserável. E, ainda para mais, nem se podiam ver um ao outro. A situação estava a caminhar para insustentável até que um dia da editora veio o telefonema salvador. Um escritor espanhol de romances históricos sobre a guerra dos trinta anos, farto de inventar conversas entre Richelieu e Descartes, queria enveredar por um romance que fosse mais apelativo ao público, à afición taurina e às promoções do corte inglês. Era a grande hipótese de despachar por bom dinheiro Miroslaw Kukielka Kovalewski e, depois, com mais calma e carinho, recuperar Tomasj Kaluzny Ratajcyk. Zbigniew Poborsky nem hesitou e dois meses foram bastantes para que Tomasj Kaluzny Ratajcyk recuperasse a forma, tendo mesmo convencido Zbigniew Poborsky que podia fazer-lhe de pseudónimo e heterónimo ao mesmo tempo, nem levando mais dinheiro por isso.

Hoje, Zbigniew Poborsky leva uma vida sossegada a pescar safio, Tomasj Kaluzny Ratajcyk , pseudo-heterónimo, casou com a luxemburguesa e escreve - por fora, e à comissão – romances de viagens, enquanto Miroslaw Kukielka Kovalewski, comprou a sua alforria de heterónimo e passou a vaticanista, tendo escrito uma biografia revolucionária em que demonstra que foi a serpente que atirou com a maçã na carola de Newton, e, em ricochete, acertou na moleirinha do bom do Galileu que ficou a ver planetas à roda em vez de estrelas.

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